quarta-feira, 23 de novembro de 2011

9- A Gaiola Dourada

No dia em que desapareceu A. Tomic, ninguém estranhou a sua falta no café da esquina, que religiosamente visitava às quinze horas. Apenas o copeiro, o virtuoso Sr.K, alçou a mão para tirar uma imperial no momento exacto em que Tomic a costumava pedir, mas dando falta do freguês logo se entreteve com outras coisas.
Podemos dizer que na pacata cidade de J. a ausência prolongada e, por vezes definitiva, de um dos paisanos, é considerada normal, senão mesmo desejável aos olhos de quem manda lá no sítio. A este propósito, convém acrescentar o vigor e persistência com os líderes apregoam as vantagens do desaparecimento. Mas a verdade é que são raros os testemunhos do além que nos possam afiançar do que quer que seja. Os poucos que regressam limitam-se a pronunciar uma ou outra palavra sem nexo, e são ainda menos os que podem formar uma frase completa como: “ninguém nos vê, ninguém nos conhece”.
Precisamente pelo seu carácter dúbio, estas asserções não nos permitem pôr em causa a versão oficial. Pois se são tantos os que não voltam, é quase seguro que algo de muito especial existe para aquelas bandas.
Há quem prefira ficar, mas sublinhe-se, duas vezes, quem quiser partir é sempre livre de o fazer.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

8- Just like a Game

Tudo correu como o previsto. A neve caiu, o inverno foi-se, voltou a primavera com as minhas crises alérgicas irritantes. Não é maravilhoso quando tudo corre como previsto? Nem me espantou de ver durante o sono o implacável coordenador da empresa Y saltar à corda. Parecia divertir-se. Com um sorriso indicava um pequeno ecrã de fundo negro no centro da sala. Nele saltitavam sequências de números e equações a um ritmo vertiginoso. Uma sala enorme, diga-mos que com umas boas centenas de lugares (pergunto-me se os da retaguarda viam o que se passava no ecrã). Assistiam os homens impávidos. De resto, nada de especial… como previsto. O cão persegue o gato, o gato persegue o rato, o rato o escaravelho. E a toupeira? Diz-se que nos dias felizes oferece o lombo a umas mordidas. Mas regra geral, diga-se, regra geral, não tem predador na imensa cadeia alimentar.
Entre toda esta monótona violência, apenas o coordenador implacável goza um bom bocado: « Bora lá rapazes”, “Just like a game”, diz extasiado.

domingo, 6 de novembro de 2011

7- Os dissabores de um vencedor

Ninguém escreve nada para si próprio. Ninguém o é para si próprio.
Posto isto e por isto, depois de um acidente que me molestou severamente as pernas, resolvi dar um revés no destino. Procurar dentro de mim as forças que são a chave de saída do impasse físico. Mas não o fiz só por mim. Fi-lo por todos.
Resolvi adoptar a luminosa ética empresarial em todos os componentes da vida de um Ser-Humano. Assim como é possível optimizar os recursos de uma empresa com vista à melhoria até ao infinito, a vida quotidiana pode tirar proveito dessa maravilhosa lógica.
Encontrar a redenção em diagramas de felicidade. Foi assim que nasceu o coaching e os seus frutuosos rebentos: o polígono da vida, o pentágono do amor, o trapézio dos negócios. Foi assim que me autopromovi em especialista da felicidade. Foi assim que a minha noiva me deixou depois de termos feito amor um sem-número de vezes. Na nossa última conversa, insinuou que quando o fazíamos, tudo não passava de uma espécie de masturbação a dois, sem verdadeira entrega – aqueles momentos – que entre nós se tornaram numerosos e permanentes, em que vemos o outro como uma realização da nossa fantasia. Tudo muito complicado, não é verdade?
Depois… depois era vê-la passar na rua… perdida… irremediavelmente perdida, perguntando-me que força era essa que me impedia de a beijar e apalpar-lhe o rabo, coisa que nem vinte e quatro horas antes eu faria impunemente. Tudo muito complicado, não é verdade?

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

6- Les petites memoires

Hoje, soberana de madura idade, projecto-me respeitosamente num texto bucólico de um manual primário do estado novo. Aquela ingenuidade maldosa não podia senão fazer-me lembrar a tua pessoa.
Confesso que decorei as tuas habilidades muito rápido. Nem eram assim tantas, talvez apenas as suficientes para unir dois desesperados da vida.
Lembro-me como dispensámos as palavras na primeira vez que fizemos amor, vislumbrei de relance toda a porcaria e desolação que o nosso mundo abraçou, e uni-me a ti apenas num conjunto de verbos conjugados no infinitivo, proposições que pedem acusativo aguentam com um dativo e outras frases deliciosamente mal conjugadas.
Depois, como previsto, afastei-me.
Lembro-me como te embrenhaste numa montanha filosófica de rompante. Passava de manhã na biblioteca e via-te com duas torres de livros. Gritavas-me em furor: «olha, afina o Sócrates também era sofista! A filosofia começou com Platão!»; «olha, o Nietzsche é tão escolástico e romântico como os seus comparsas alemães!», olha..., olha… Confesso que muitas vezes foi a piedade cristã que me fez ouvir.
Choveram ainda poemas! Centenas deles! Quadras, vilancetes, decassílabos, heptassílabos, rimas, paronímia e verso branco. A maior parte das vezes passavas desinteressado à cafetaria da esquina, olhando para um ponto invisível enquanto fumavas.
Hoje, confesso, sei muito bem o que tudo isso significava. Aquela portentosa armadura conceptual, a parafernália de silogismos, as aliterações, oximoros, metáforas e antíteses: uma carta de amor, uma densa e interminável carta de amor.
Mas que básicos que os homens são.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

5- Fim da História

Fui ensinada a acreditar. Afinal de contas, fui criada entre gente boa. Na minha infância era aquilo a que chamam uma wunderkind. As professoras apresentavam-me sempre como modelo quando havia inspecções na escola. Acontecia mesmo de não me deixarem responder às perguntas, pois sabiam de antemão que já era senhora daquelas lições. Esta foi a minha proto-história.
A minha adolescência foi como que um alvorecer helenístico. Dominava como ninguém praticamente todas as línguas do mundo civilizado. Ainda a primeira borbulha despontava no meu rosto e já as prelecções de Tales a Aristóteles não me eram desconhecidas.
Entretanto, o fim da adolescência abalou as minhas crenças e uma barbaridade desejos e sensações irrompeu pelas minhas fronteiras. Vesti-me de negro e deixei a pele empalidecer. A reclusão do meu quarto alternada com as saídas furtivas aos clubes góticos tornara-se um hábito, até que subitamente tudo me pareceu aborrecido e prepotente.
Entrei na Idade Moderna da minha vida e dois amores me deixaram como uma terra escombros, o primeiro, por ingenuidade, o segundo, por vingança de ódios antigos…
Disseram-me que a história se compunha com uma espécie de equilíbrio misterioso, algo profundamente misterioso mas certo.
Hoje vejo a minha figura reflectida no espelho, o cabelo começa a perder elasticidade, as carnes tornam-se flácidas cada dia que passa e dos olhos despontam já as primeiras rugas de expressão. Já assim, na idade do respeito, tratam-me como uma criança que necessita ser corrigida, a mim, desempregada, só, um pouco fútil. Fim da história.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

4- A viagem

Construí a minha casa numa colina em Dahir-es-Salem. O clima não é tão agreste como se pensa por aí. Na verdade, é bastante ameno a maior parte do ano. A terra é cor de sangue e ventilada de tempos a tempos com as areias queimadas do deserto. As árvores frutificam, como o previsto, e o rio presenteia-nos duas vezes ao ano com um estranho milagre de multiplicação.
A minha casa é espaçosa. A entrada encontra-se dividida em duas abóbadas ao jeito dos califas, ricamente ornamentadas cada vez que há festa, o que infelizmente acontece frequentemente. De resto, a maior parte do ano é o silêncio…
Foi por esta altura que comecei a ouvir a voz.
Inicialmente, nos fins de tarde pachorrentos de verão, sussurrava-me apenas uns gemidos difusos. Levantava-me na esperança de ver apenas qualquer altercação entre a criadagem, mas enquanto nada descobria a voz voltava.
Digo num suspiro que com o tempo se tornou mais intensa e audível, dando-me a impressão, no intervalo do grito, de pronunciar um ou outro nome desenterrado do mundo dos mortos.
Não tive alternativa senão fugir, fugir para longe, percorrer esse país infinito onde, em certos lugares a escassez de água mataria até o mais sagaz dos viajantes.
Apenas nas noites instáveis do deserto, depois de deitado tudo ao poço da perdição, a verdade desenhava-se com clareza no fumo da fogueira, e via o nome dela escrito nos astros.

sábado, 22 de outubro de 2011

3- Américo V., da vila de S.

Que vulto é aquele que se expande lentamente? É nada menos que Américo V., emérito cidadão da vila de S.
Américo tem cerca de sessenta e cinco anos, estatura baixa, cabeleira grisalha e farta. O seus olhos ensanguentados conservam ainda o fulgor suevo que habitou já aquelas paragens.
Américo claudica, tem uma bicicleta velha e a sua boca não alberga um único dente são. Bate na mulher todos os fins-de-semana, não porque isso lhe proporcione prazer mas por espírito de dever. Ela aceita os sopapos resignadamente.
Américo gosta do clube de futebol da terra e de música popular. Sabemo-lo porque assiste religiosamente todos os domingos aos jogos, acompanhado pela esposa que lhe transporta o velho rádio tailandês de onde escuta o relato de outros jogos em simultâneo. Sabemos também que todos os sábados, e por vezes também aos domingos, coloca a sua música favorita no terraço de sua casa em alto volume. Os vizinhos divertem-se.
Américo descobriu tardiamente que era insignificante e a música subiu de volume.
Não se sabe até quando durará Américo. Porém suspeita-se que quando sentir a morte por perto, a música tocará a um volume nunca antes ouvido e fará um chinfrim danado.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Histórias tristes para pessoas alegres

2- Manelito, o Maneta

Na aldeia onde cresci sempre fui feliz, principalmente durante a infância. Os miúdos reuniam-se sempre ao fim da tarde para fazer das suas. Tínhamos sempre a agenda muito preenchida. Ora eram as pequenas rixas entre nós, ora a caça de grilos que posteriormente eram usados como gladiadores, ora as idas aos ninhos, ora as épicas demandas de sardões assustadores.
Pela altura das festas, fazíamos bombas com a pólvora seca dos foguetes que não rebentavam. Foi numa destas brincadeiras que o Manelito, o mais valente entre nós, perdeu a mão quando tentava cortar um foguete com uma faca de cozinha. Lembro-me como se fosse hoje de ver a sua mão desfeita em sangue e pedaços de carne. O alvoroço que não foi…
Crescemos e estas brincadeiras foram substituídas por uma que agradava a todos: o galanteio das mocitas da zona. O Manelito também ia connosco, nervoso, cabisbaixo. Quando avistávamos uma ou duas mocitas conhecidas de algum de nós fazendo gazeta no muro da escola ou nas imediações do supermercado, os mais ousados logo se punham a tagarelar, e o Manelito enfiava o toco que lhe restava no bolso. Se não o conhecessem, talvez por alguns momentos ainda pensassem que era um rapazito vulgar com a mão no bolso. Lá se desenrolava a conversa (sobre quê?) e o Manelito lá se via obrigado a tirar a mão do bolso. Quando o fazia, as moçoilas logo descobriam o seu segredo. Então surgia uma súbita e inexplicável atenção para com o Manelito, e risinhos amáveis, e amaciamentos de pêlo, e o Manelito gostava, e o Manelito corava.
Chegava-se a hora de jantar e voltávamos a casa. O Manelito agarrava um pau com a sua mão sá, e um pouco afastado dos restantes varejava tudo o que encontrava pelo caminho: pedras, casas, flores, chão, paredes, mato. Depois olhava-nos de relance com um ar de incompreendido. O silencia começava a reinar entre nós. Pelos vistos, todos o compreendiam.

1- História e vida da Abécula

A história da Abécula é uma história triste. Portanto, desenganem-se os que procuram neste texto algum desanuviamento para as canseiras do dia-a-dia. Aqui não encontrarão consolo. Correm ainda o risco, se forem tão perspicazes como o autor que adiante atentamente se subscreve, de verem retratadas de forma crua as vossas frustrações na história da nossa triste Abécula. Fujam, mudem de canal, vão ver televisão ou comprar um daqueles romances bonitos enfezadinhos envoltos em cetim à venda nas prateleiras!
Aqui encontrarão a dureza da vida em toda a sua violenta monotonia.
E tenho dito!

A Abécula nasceu nos loucos e gloriosos anos 60, anos de hipes e de rocalhada e droga e folia. Consta que foi nesses anos que um artista americano do roque enfiou um balde de dejectos na cabeça em pleno concerto. Diz-se também que algumas seitas prodigalizavam o sexo como forma de libertação; outras bebiam sumo de laranja envenenado para encontrar os anjinhos mais cedo; outras adoravam os ratos, outras odiavam os ratos; algumas amavam os homens e outras afirmavam ser o homem a única e possível salvação de si mesmo e outras tolices que tal.
Onde a nossa Abécula nasceu não existia nada disto. Apenas meia dúzia de casas, muita terra para trabalhar, um café e uma igreja com padre. Emparedada neste mundo, dois extremos se debatem na sua vida com igual veemência: os jogos de futebol dos gaiatos, único espectáculo que lhe é permitido porque conciliável com a lide de casa, já que a janela da cozinha tem vista para o terreiro; dois: o pau de marmeleiro do pai, cujos contornos, como diria o romancista, eram já seus velhos conhecidos. O caminho de casa para o ribeiro é trilhado quase unicamente pelos seus pés, mas um malfadado dia outros pés fazem o caminho desse ribeiro, e a virgindade da nossa Abécula é profanada por um velho putanheiro lá da terra.
Não se sabe, como é óbvio, se a pobre da moça tirou algum prazer do acto. É possível que não, é possível que sim. De qualquer das formas, se não tirou deveria ter tirado, porque por aqueles breves momentos de penetração desajeitada haveria de pagar toda a sua vida.

O velho cometera a malvadez (e convenhamos, vulgaridade) de ejacular dentro das entranhas da rapariga. Os dias foram passando… o velho, como se não bastasse, teve ainda a desfaçatez de morrer de ataque cardíaco, a barriga cresceu e os pais da moça, que não eram tão católicos ao ponto de acreditar na virgindade da virgem Maria, ou então que a sua Abécula era uma Maria virgem, puseram-na fora da porta depois de uma valente sova de pau de marmeleiro. O pai esmerara-se na sova, de forma que toda a aldeia ouvisse essa requiem final da Abécula ao som da sinfonia de dor na qual era algoz e maestro.

A moça fugiu para a cidade, e como era (apesar do que diziam na aldeia e ao contrário do que lhe chamou um puto com cara de rafeiro no último olhar que lançou ao amontoado de casas) uma moça séria, não foi pelo caminho da vida fácil, tentação a que se entregam muitas campónias mal se vêm livres das amarras do campo.
Empregou-se como sopeira já com sete meses de gravidez, e graças à boa vontade da governanta, pôde dar à luz e ficar de cama uma semana sem correr o risco de despedimento.
Entretanto, o rapaz cresce, e diga-se que não foi preciso crescer muito para que a moça compreendesse que se não quisesse que o seu filho fosse um indigente e ela uma pedinte toda a vida, teria que encontrar rapidamente um outro trabalho. Encontrou. Como empregada de balcão num centro comercial. Neste momento, o seu horário de trabalho dividia-se da seguinte forma: das 07h00 – 18H30 - sopeira; das 19h00 às 23h00 – empregada de balcão.
O rendimento melhorou bastante. Resolveu comprar uma casa a prestações e meteu o filho num infantário privado. Acontece que os dois salários tornaram-se também insuficientes, pelo que decidiu arranjar um terceiro emprego: caixa de estação de serviço. Assim o seu horário de trabalho passou a ser: das 7h00 às 18h30 – sopeira; das 19h00 às 23h00 – empregada de balcão; das 24h00 às 05h00 – caixa. Com um pouco de jeito ainda durmo duas horas nos transportes, pensou.
Alguns vizinhos lembram-se da moça. De todo o emaranhado acessório que contaram, apenas duas notas fortes e credíveis ressaltam: 1- ao pequeno nunca lhe faltou nada; 2- Tinha umas olheiras até ao rabo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Eu e a minha miúda

Eu e a minha miúda gostamos muito um do outro. Porém, ao contrário do que se possa pensar (e pensa-se tanto hoje em dia!), esta relação a que eu chamo, sem mais delongas, de uma relação de amor, não nasceu espontaneamente, como uma flor de alecrim brota da terra nas condições mais inóspitas. Foi apenas depois de uma aturada reflexão, e sobretudo muito civismo de ambas as partes, que chegamos a um ponto que em economia chamamos de “ponto óptimo”.
Passo a contar.

Desde muito cedo compreendemos que éramos profundamente diferentes. Ela gosta de pintura. Eu sei disso. Eu tenho um fascínio genuíno por dinheiro e gente rica. Ela também sabe disso. Embora tudo apontasse para um choque imediato de personalidades, as nossas almas sentiram que ninguém, por si só, é compatível com um único ser humano em todo o nosso vasto e azul planeta. Cognoscentes desta realidade, resolvemos alargar deliberadamente as nossas esferas de individualidade, unindo-nos apenas nas ocasiões estritamente necessárias, digo, estritamente necessárias. Quando quero sair saio. Não dou satisfações a ninguém. Ela tem a mesma liberdade. Por isto mesmo, o tempo que passamos juntos é sempre maravilhoso e cheio de novidades, incólume a toda essa pestilência sentimental de que se nutrem as relações doentias.

Não contamos as nossas desilusões, nem os nossos desejos. Mesmo as nossas virtudes parecem sair discretamente pela porta das traseiras quando nos inebriamos apenas com a presença um do outro. Foi desta engenhosa maneira que racionalizamos a nossa relação.

Às vezes ela chega tarde e embriagada. Deduz, presumo, que àquela hora já estarei a dormir o sono dos justos. Mas não. Tenho o péssimo hábito (que nunca lhe contei), de acordar todos os dias, pontualmente, às seis horas da manhã, deixando o meu corpo repousado na cama até à hora de ir para o trabalho, enquanto a minha mente vaguei pelos locais mais insuspeitos. Sinto que ela se aproxima da cama e me observa, embora eu não a veja. Quando finalmente se deita, depois de arrastar vagarosamente as suas roupas para fora do corpo, uma miscelânea de cheiros invade o nosso leito quase conjugal: álcool, tabaco (muito) e sexo (muito). Percebo imediatamente que anda a dormir com outro ou outros homens. Não lhe pergunto nada nem a censuro por isso. Afinal também não sou nenhum santo.
Recordo que acontece também o contrário. Quando chego a casa e a encontro prostrada no sofá, sei imediatamente que algum dos seus encontros furtivos falhou à última da hora, facto que, por um milésimo de segundo me provoca aquilo a que vulgarmente se chama prazer. Ela pergunta-me qualquer coisa muito rápida, e quando ouve uma qualquer sms chegar vitoriosa ao meu telemóvel, sinto no seu olhar algo a que podemos chamar ciúme, embora se desvaneça rapidamente.
Foi num desses momentos em que, não há muito tempo, resolvi partilhar o sofá com ela. Coloquei-me por detrás e abracei-a. Tentei-a beijar e ela recusou. Conformado, encostei o meu ouvido ao seu peito, e pareceu-me mesmo que ouvia uma espécie de gotejar inaudível na sua respiração. Essa cadência fluía para um charco sem fundo, de onde se esvaía uma fumaça que rapidamente inundava a sala de estar. Nela pairavam nomes sem corpo, corpos sem nome… vidas e indulgências fingidas. Senti-me como que aturdido. Levantei-me bruscamente e dirigi-me à varanda para fumar um cigarro. Enquanto assim fazia, pensava em como as grandes cidades e civilizações forjaram os seus gloriosos impérios em planícies e vales ricos em água, que só por um grande acaso normalmente se localizam sobre falhas tectónicas, locais de risco elevado para a ocorrência de sismos e erupções vulcânicas. Pensava também nos mistérios do corpo e do ser humano, e de como neste século em que graças às maravilhas da ciência médica, nos achamos condenados a uma longa vida. Na minha mente, milhares de terminações nervosas e fluxos arteriais teciam o labirinto infinito do ciclo vital, enredado num fluxo agora muito bem conhecido da ciência, ao mesmo tempo que pensava que fenómenos raros como a alergia à água (algo insólito tendo em conta que o nosso corpo é constituído em sessenta por cento deste elemento), continua tão misterioso como há quinhentos anos atrás.
O último episódio que guardo destas demonstrações de fraqueza aconteceu quando há pouco ela se cruzou comigo. A pobre não me viu, nem podia ver uma vez que uma larga avenida nos separava. Reparei nela por acaso. Vi que se entretinha a olhar para uma montra qualquer, com ar inocente e distraído. Nesse momento senti um abalo e um aperto enormes no peito que por pouco não me fez desfalecer. Nauseado, agarrei-me a um poste de iluminação pública e tentei recuperar o equilíbrio. Durante breves segundos, o meu cérebro implodiu num turbilhão terrível, até que me restabeleci. Voltei a cabeça para o local onde a vira, recobrei os sentidos e a vida voltou ao seu trilho.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Jonas e a Baleia

Consta que, em tempos, um homem viajou durante três dias dentro de uma baleia. Julgo não serem necessários mais alongamentos nesta matéria, não só porque esta é, a par de todos as outras profecias dos evangelhos, uma das histórias reproduzidas de sempre (e só não terá sido teatralizada tantas vezes como a Paixão de Cristo, dadas dificuldades de produção de tal espectáculo e ausência de uma quadra específica para o fazer); como também pelo facto de, e incorrendo já no risco do provincianismo, ser sempre importante tirar grandes e proveitosas ilações morais, como por certo o leitor o fará.
Para a nossa narração, apenas dois factos nos parecem relevantes:
a) Jonas decidiu empreender uma viagem. Fosse porque Deus assim o quis, fosse porque se encontrava acossado pelos inúmeros inimigos de Israel, ou por vontade missionária ou simplesmente para mudar de ares, o que é facto é que empreendeu de forma mais ou menos voluntária. Era contudo, aquilo a que podemos chamar um exilado da pátria, isto porque não temos critérios tão estreitos como a moderna teoria das relações internacionais que não considera assim os refugiados económicos, vulgo – imigrantes;
b) Jonas teve um acidente de percurso durante a viagem marítima que o levava às praias douradas do oeste, e tendo sido jogado borda fora pelos companheiros de fortuna, que sabiamente adivinharam nele a pestilência do azar, foi resgatado por uma providencial baleia, que generosamente o alojou no seu ventre durante três dias e três noites até o devolver à segurança do solo firme.
Como bom cristão que sou, tirei deste episódio bíblico algumas conclusões bastante proveitosas.
Durante a minha vida recheada de peripécias, fui, eu próprio, exilado várias vezes, a maior parte das quais de livre vontade. Primeiro, por necessidade de aventura, de conhecer… enfim! Todas aquelas coisas em que os jovens se julgam inteiramente originais e que ao fim de contas são mais comuns. Durante as minhas aventuras dentro e fora da pátria mater, tive dezenas de quartos, companheiros de casa, discussões com senhorios e aventuras sexuais. A maior parte das vezes faltou-me dinheiro, mas era precisamente nessas alturas malfadadas que descobria a verdadeira utilidade das coisas. Descobri porque é que as gentes de Leste e os asiáticos bebem tanto chá. Segundo a minha dedução empírica, uma vez que estes povos periodicamente são assolados por vagas de fome, é de todo proveitoso que bebam chá com fartura. Pois sendo uma bebida que (venham lá com as histórias que quiserem), é basicamente água quente com um pouco de aroma, tem por efeito dilatar o estômago e assim se alivia a sensação de fome.
Descobri também porque é que os italianos chamam “pomodoro” ao tomate. O termo italiano faz mais sentido do que todos os outros, porque “maçã de ouro” é ao que o tomate mais se assemelha. Realizei esta importante descoberta quando, estando eu refugiado em Itália, se me acabou o dinheiro. Gastei os meus últimos tostões num maço de tabaco de contrabando num beco de Nápoles. Note-se que chegar ao local com o dinheiro intacto era já um feito!
A minha patroa da altura, vendo as minhas carnes diminuir dia para dia, e ficando um pouco sensibilizada com isso, já que trabalhava para ela em regime “não pago”, resolveu matar dois coelhos de uma só cajadada: fazer caridade e contribuir para a salvação da sua alminha (e quem sabe fazer caridade a mais alguém). Passou a oferecer-me, todas as sextas-feiras, um cesto de tomates, que eu, claro está, agradecia com o melhor sorriso e levava para casa. Lembro-me que a primeira vez que o fez, rifei-lhe umas moedas de 50 cêntimos de colecção que ela tinha expostas e fui comprar pão. Cheguei a casa e fiz uma bela sandes de tomate, que passou a meu menu diário.
Estas e outras histórias que, estou certo, qualquer pé-rapado as deve ter em número bem mais abundante e recheadas de bastantes mais pormenores de fazer chorar as pedras da calçada, fizeram-me tirar bastantes conclusões úteis para a minha vida (e haverá coisa mais útil do que a utilidade?). A mais importante de todas, confesso, é que mais vale rico e com saúde do que pobre e doente.
Quanto a Jonas e à baleia, lembrei-me deles, quando há pouco molhava os pés no mar. Olhava para o longo firmamento (onde algures será a América) e pensava que talvez um dia a baleia voltasse e me trouxesse algo. Por momentos, imaginei-a à beira mar a vomitar alguma coisa minha. Talvez uma par de calças rotas, umas meias e uns óculos de sol antigos.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

V - O Poço da morte

Sim, conheci-o na minha infância. Era um rapaz muito calado, mas inteligente. A verdade é que quando alguém lhe ligava alguma, o que acontecia sempre por razões negativas, perdia amiúde a vontade de repetir a experiência. Você acredita nessas pessoas cuja existência se funda exclusivamente na expiação? Creio que o António carregava esse estigma. Bem, estigma? Será que lhe podemos chamar assim? Não sei.Ainda na escola primária fui um dos poucos que se interessou pelo seu caso. Sabe como é, aquela amizade pueril das crianças. Já pensei muitas vezes nesta questão nos seguintes termos: a infância constitui aquilo que podemos chamar um segundo regresso aos tempos primitivos. Pense bem: a formação de grupos, uma estratégia de sobrevivência tão antiga como o ser humano; a selecção dos mais fortes como líderes do grupo; a demarcação de territórios. Em tudo isto as crianças podem representar a mais encarniçada crueldade e o mais bonímio dos seres. A minha relação com o António baseava-se na amizade, mas não aquela amizade zoófila que alguns têm pela diferença. Não penso que fosse, de todo, um miúdo nervoso ou fraco. Pelo contrário, era daquele tipo de crianças que dão, em toda a sua figura, um aspecto geral de fragilidade, mas quando chamadas a responder a qualquer situação surpreendem pela valentia. Mas o pobre não podia ter feito muito mais do que o que fez. A professora e alguns dos amiguinhos ganharam-lhe um ódio de estimação. Ninguém sabia porquê. Lembro-me que andava já no quarto ano quando ele entrou para escola, e todos os intervalos lhe via as mãos negras da palmatória. Aquela era uma professora à antiga. Disseram-me que fazia uma espécie de divisão social na sala: os meninos ricos na frente, os remediados no meio e os pobres atrás. Assim, como uma ordem de preferência de aprendizagem. Um nojo! Como deve imaginar, o pobre do miúdo encontrava-se nesta última classe.Lembro-me que uma vez acabou-se-lhe o caderno. O miúdo estava preocupadíssimo, por isso emprestei-lhe um dos meus cadernos da catequese. Quando a professora descobriu isto, chamou-nos a todos da nossa classe fora da sala, trouxe o António por uma orelha e deu-lhe um arraial de bofetada ali mesmo na nossa frente. Pobre miúdo...!Um outro episódio estranho que se deu nessa escola foi quando descobriram um poço no meio do recreio, assim, um poço sem mais nem menos! Aconteceu quando um dos rapazes que jogava à bola tropeçou num buraco. Rapidamente os miúdos repararam que não se tratava de um buraco qualquer, para já, porque apesar do diâmetro reduzido, parecia ser mais profundo do que o habitual. A rapaziada juntou-se em torno daquilo, começou a escavar com as mãos e o buraco ia alargando, alargando. Chamaram os professores, que apercebendo-se do perigo da situação chamaram os homens da junta de freguesia para ver o que se podia fazer. Os homens chegaram, isolaram o buraco para os miúdos não se aproximarem e começaram a investigar, assim com ares de burro a olhar para um palácio. Como não sabiam o que fazer com aquilo, os homens chamaram malta da Câmara Municipal, que de imediato procedeu às investigações necessárias. Claro! Tudo com a competência que os operacionais camarários nos habituaram. Puseram-se a medir a profundidade do poço, mediram e mediram e não tinha fim, pelo que diziam os funcionários mais linguarudos. Chamaram os homens do ministério que, após algumas investigações, puseram cimento (literalmente) sobre o assunto e não se falou mais nisso. O recreio foi mudado de lugar e a zona foi isolada.O acontecimento em si talvez não seja tão insólito como se pensa, até porque isso do poço não ter fundo foi um mito que correu lá pela rapaziada. O que verdadeiramente me intrigou foi o António. Desde que descobriram o poço, passava dias e dias - todas as horas que tinha vagas a olhar para o poço. Olhava, acocorado sobre as suas pernas delgadíssimas, com os braços formando um trapézio sustentado nos joelhos para apoiar a cabeça. Mexia os lábios como se mastigasse em seco, esgueirava os olhos como se conseguisse ver o que ninguém via, o fundo do poço ou talvez outra coisa qualquer. Nunca lhe perguntei o que via ele, aliás, todos sabíamos que o miúdo era estranho, por isso, ou ninguém se deu ao trabalho de lhe perguntar, limitando-se a apupar ou, no meu caso, aceitar essas "fraquezas" do meu protegido como parte da embalagem.Esse episódio coincidiu também com uma das últimas vezes que vi o António enquanto miúdo. Sei que depois os pais mudaram-se para outro lado, e com toda a certeza ele também mudou de escola. Depois disso, voltei-o ver cá na terra, tinha ele já uns dezasseis ou dezassete anos. Estava com os pais a passear, por altura das festas da Nossa Senhora das Aflições, digamos, uma festividade que ninguém que se diga filho desta terra pode perder. O António estava já um homem feito para a idade que tinha. Apenas o reconheci pelos dentes e pelos olhos, duas características que tinha inconfundíveis. Continuava franzino, como sempre fora. Olhei de relance, hesitei ainda um ou dois minutos antes de o abordar, mas depois vi bem aqueles olhos e aqueles dentes e pensei: não, de certeza que é o António. Acho que ficou contente por me ver. Falamos durante um bom bocado de tempo. Disse-me que estava com o pai, que tinha vindo passar uns dias à terra e daí a pouco tempo voltava para Torres.Voltei-o ver uns dias mais tarde. Confesso que o achei um pouco sinistro, de semblante carregado caminhando sempre na mesma direcção. Foi nessa mesma semana, no domingo, que o encontrei na cercania de uma atracção conhecida por Poço da Morte. Uma das mais foleiras, por sinal. Não compreendo bem porque é que quem quer que seja se submete a um espectáculo degradante daqueles, melhor, paga para isso...! Talvez já tenha visto, já? Bem, aquilo é uma espécie de construção em forma cónica, toda de madeira claro está, uma vez que se destina a ser desmontada e transferida para outro lugar periodicamente. Normalmente, o cume dessa construção cónica é coberto por uma tenda normal, semelhante às do circo. O objectivo daquilo consiste em um, dois ou mais motociclistas tornearem o barril a alta velocidade. Por efeito dessa mesma velocidade, a moto ganha equilíbrio, dando a sensação de que se está a fazer a coisa mais perigosa do mundo, e porventura seria, se por algum momento de loucura um deles resolvesse travar ou lei da gravidade resolvesse abrir um excepção. Aquele poço da morte que vi lá na terra, por sinal, era dos mais velhos e decadentes que alguma vez havia visto. Cá fora, em frente da barraca, um jovem com os seus dez anos, montado em cima de uma moto que se mantinha em funcionamento enquanto rolava por duas esferas instaladas no chão, punha-se de pé na moto, largava pernas, braços, uma espécie da demonstração de perícia que esperava os espectadores lá dentro. Ora, o António vidrou-se naquilo, tanto foi o que compreendi pela conversa que tivemos cá fora. Segundo me contara, ele e o pai tinham ido a um desses espectáculos no domingo anterior. E não é que o moço engraçou com aquele espectáculo degradante?! Foi isso que percebi, a julgar pela primeira vez que em conversa com ele toquei nesse assunto. Ele ria-se e desculpava-se sempre de forma lacónica, o que era bem característico seu.Quando já se aproximava o fim da semana de festividades, e suponho, os tipos do Poço da Morte se preparavam para abalar para outra terra, vi-o novamente a passar para o mesmo sítio, especado em frente da entrada. Não resisti e perguntei-lhe:- Mas ouve lá, então porque é que voltaste este fim-de-semana a comprar o bilhete para ver esta porcaria? Vista lá algo de especial? Aquilo tem alguma graça?- Não sei! É suposto ter graça?...- Diz-me tu! Nunca vi ninguém tão fascinado com esta merda! Se queres que te diga, acho que isto nem devia ser permitido!
- Porque dizes isso? Perguntou. Porque é perigoso?- Nada disso! Exactamente pelo contrário! Porque é uma fraude. Para fazer aquela bosta basta manter a velocidade da mota estável e não ter amor-próprio bastante para ganhar dinheiro à custa dessa proeza!
- Explica-te melhor, continuou ele,
- Oh António! Não evitei o riso. Parece que não és deste mundo!- Não Carlos, aquilo não tem que ter graça nenhuma, explicou-me. Apenas tive algumas ideias curiosas durante o espectáculo da semana passada.- Curiosas? Como curiosas?- Já te digo. Por exemplo, na semana passada, enquanto observava os primeiros motards que faziam o círculo perfeito a toda a velocidade, ocorreram-me algumas ideias que podes achar interessantes.- Então que ideias foram essas?- Pensei que o que impedia aqueles homens de cair das motos era a própria natureza.- A natureza...- Sim, a natureza, as leis da física. A força propulsora da velocidade, conseguida graças ao peso do objecto, cria aquilo que permite este tipo de movimentos assumir um equilíbrio gravitacional: o referencial de inércia.- Hmm. Parece interessante. Mas continuo a achar que vamos sempre saber o que é a lei da gravidade, bem como as suas excepções, sem que precisemos de saber o que é um referencial de inércia...- Carlos, para que saibas, o referencial de inércia é precisamente a lei da física que estabelece o equilíbrio necessário para que a terra descreva, em círculos concêntricos, as sua rotações em torno de si mesma e em volta do sol. No fundo, é graças a essa lei que todos vivemos.- Então e se algum dia ela se lembra de abrir um excepção? Gracejei eu...- Não sabemos. É possível. Aquilo a que chamamos leis da física, grosso modo, independentemente da regularidade e evidência que apresentem, terão sempre na sua base aquilo a que se chama "believe", ou seja, a crença de que assim vai continuar a ser até à eternidade.- Pois bem António... E se um dia as leis se defraudam a si próprias e abrem a tal excepção, por exemplo, para aqueles desgraçadotes que andam lá de moto de um lado para o outro.···- Precisamente esse é outro das coisas que me fascina.

- Eles, seguindo esta ideia do believe, são mais crentes do que todos os outros. Estão mais dependentes da lei da física do que todos os outros. Podemos mesmo dizer que a constância das leis da física é para eles o seu modo de vida, por isso o risco é para eles também um estilo de vida. Pois se um dia a física resolve abrir uma excepção de que tanto falas, serão eles os primeiros de todos nós a senti-lo.

Sendo assim, pensei que tudo poderia fazer sentido numa lógica dentro da lógica. Pensava em grupelhos, seitas e outras merdas. Uma religião que adorasse um rato, e que se fosse fundamentada com o mínimo de rigor, poderia convencer um, dois, uma dúzia ou duas de malucos que saberão todas as suas canções e preces e para mim, um ser racional e pós-religioso, quando me deparasse com essa cena grotesca rir-me-ia interiormente (ou até na cara deles, quem sabe). Se tão só soubesse que agora mesmo, neste momento em que me afasto do António e daquele maldito poço penso em como tudo é estranho, como o acaso escolhe as pessoas que entram nas nossas vidas e como elas permanecem estranhas. Aquela moça, sim aquela, a da barriguinha saliente, não, não outra … a outra da mala verde. Mas seria verde a mala, poderia ser castanha ou aquela que gosta de rock ou hardcore ou metal ou house. Ah, como é belo este mundo e como é belo Portugal. Sempre que chego a uma cidade nova tudo me parece mágico, como são amáveis e dóceis as pessoas do meu país e como ele e eu (sim, ele e eu) permanecemos com os nossos destinos de mãos atadas.

Uma outra vez encontrou-me, e sem que me desse qualquer oportunidade (vinha com uns estranhos olhos esgazeados) de dizer um bom-dia que fosse, contou-me uma história bizarra:

- Sabes Carlos, a história daquele tipo, já não me lembro onde e em que circunstâncias, estava preso numa espécie de prisão mongol. Foi deixado durante três longos meses numa cela minúscula, sem qualquer janela ou saída de ar, na solitária, portanto. Ao bom estilo mongol, já nem sei se eram mongóis os tipos que o prenderam, nem a cortesia de um balde para as necessidades tiveram a amabilidade de lhe deixar. O nosso malogrado homem, que apenas por acaso era um famoso matemático que o destino levou àquele país de loucos, viveu durante três meses, envolto numa atmosfera pútrida, com 200 gramas de pão por dia e a dormir e sentar no mesmo lugar onde cagava e mijava, percebes? Acontece que era matemático, e a maneira mais proveitosa de escapar à solidão, violência e loucura foram os cálculos. Sim, os cálculos. Passava o dia a fazer cálculos, claro que sem qualquer meio para os anotar onde quer que fosse. Mediu com os pés a largura da sua cela (que, segundo sei, rondava os 1,20m) e calculou o número de passos, através do cálculo proporcional que o distanciavam do seu país, um país muito distante… a liberdade.
- É um bonita história.
- Sim, bonita e real. Mas será que o teu herói atribuiu algum significado transcendente à sua reclusão ou fez isso por puro instinto de sobrevivência, tal como um cadáver cuja electricidade estática faz o cadáver mexer os braços?
- Não sei o que dizes. Se é o que penso, não acho que seja assim tão importante. O que é importante é que sobreviveu. A única forma de escapar à barbárie… um último reduto da dignidade, o seu intelecto que nem o mais bárbaro dos mongóis poderia tirar.

Este é apenas um dos exemplos interessantes das conversas que mantivemos nessa curta estadia do António.
Sei apenas que com este tipo de comédias, como o observar um espectáculo ridículo sem que qualquer lógica sustente, pode enlouquecer um homem. Acho que é nessas ocasiões que um homem enlouquece, quando aprende a pensar a lógica fora da lógica, como se visse algo tão aterrador, ainda que por um minuto – a loucura para o resto da vida.
Depois foi o que se soube.
Mais uma vez, sem que qualquer lógica o sustentasse, o António, um rapaz inteligente, se bem que com um feitio peculiar, é verdade, juntou-se àquela máfia de bêbados fura-vidas. Não acha cómico tudo isto?
Depois disso não soube muito mais dele. Ouvi dizer que fugiu com um sujeito lá para os quintos dos diabos. Não sei… Sinceramente não sei…

domingo, 13 de fevereiro de 2011

IV- Pióguin e o Palhaço

1.-
Um dia sucedeu comprar um desses jornais sensacionalistas. Para começar, não sou um habitué neste tipo de leituras, aliás, abomino a imprensa tablóide. A verdade é que tinha boas razões para isso. Desejava evitar o confronto com uma certa pessoa - um chato que me perseguia há já algum tempo, e a maneira mais eficaz que encontrei de o fazer foi esconder a minha pesssoa num desses quiosques de rua. O jornal chamara-me a atenção apenas por uma notícia que figurava na capa. Falava de um jovem"asfixiado e degolado de seguida", algo insólito mesmo para quem já viu um pouco de tudo. Exlicava-se que a vítima apresentava escoriações na zona do pescoço, uma marca típica de asfixia mecânica, assim como um golpe, por sinal bem profundo, na mesma zona. Porque o faria o agressor, uma vez que a autopsia provara que a vítima já se encontrava morta aquando da segunda agressão? Seria algum ritual? Alguma força oculta exacerbada pelo ódio? Bem, não sabemos.. A verdade é que este tipo de agressões post mortem são relativamente raras, estado estritamente relacionadas com factores culturais e até históricas: veja-se o caso da damnatio ad eternum, largamente usada entre os povos da antiguidade.Telefonei ao meu colega Pereira, que a essa hora estaria no laboratório, e perguntei-lhe se sabia alguma coisa do cadáver. Respondeu-me que o o cadáver já não se encontrava na morgue, tendo sido naquele mesmo dia resgatado pela família. Porém, quem o tinha autopsiado dois dias antes confirmou, grosso modo, a informação do jornal - o corpo apresentava escoriações ligeiras na zona pélvica, hematomas diversos, um trilho de cicatrizes antigas (que são um verdadeiro livro da história pessoal do falecido). O relatório relevava, tal como o jornal, a cicatriz post mortem (facto que se afere pela coagulação sanguinia no local do golpe, que aliás, foi produzido por uma arma corto-contundente. Finalizava ainda que o jovem era cadáver há vários dias, apresentando livores na zona lombar (mais um sinal cadavérico bem clássico) e rigidez acentuada.
Assim que tive algumas folgas do serviço, resolvi usar a minha influência junto dos órgãos da administração e seguir o rasto do jovem. Pedi algumas informações ao Pereira e dirigi-me ao registo civil, onde trabalha o meu caro amigo Serafim. Pedi-lhe nada menos que uma busca de identificação civil pelo nome, um meio eficaz e certeiro de chegarmos a bom-porto, oo qual se nos desvelou passados alguns minutos de pesquisa: o finado (embora a data de óbito ainda não figurasse no registo) chamava-se António Manuel Moreira, nascido em Setúbal, a 2 de Março de 1976, filho de Maria do Rosário Galvão e de Manuel Moreira. Por aqui pudemos constatar o seguinte: o jovem tomara o primeiro nome de seu pai como segundo nome; nascera dois anos depois da Revolução dos Cravos, e pouco mais.
Depois de três dias de preparativos, fiz a minha primeira viagem até Setúbal, onde o GPS do meu carro me levou sem dificuldade até à morada que constava no registo civil de António. Como todo o bom detective que pretende resultados rápidos, dirigi-me ao tasco da zona, bebi um café e meti conversa com aquele que se veio a identificar mais tarde como o proprietário. Quando digo mais tarde, refiro-me ao facto de ter passado largos minutos em frente do balcão sem que vivalma se apresentasse para me servir. Um grupo de velhos locais jogavam um qualquer jogo, um outro velho mais abandonado fazia uma raspadinha no canto do café e um grupo de jovens, quiçá desocupados, falavam furiosamente à porta do café. Com esta cena tive o meu primeiro impacto com a cidade de Setúbal, se bem que este poderia ser o pano de fundo de uma qualquer narração em qualquer cidade dessa portugalidade profunda. Foi então que já preparado para sair, um dos velhotes que jogava às cartas se levantou e me perguntou o que desejava. Pedi uma bica e desejei que o homem não voltasse ao seu jogo, desejo este que se realizou (pelos vistos, a presença de clientes no balcão intimidavam-no). O silêncio já pesava entre mim e o velhote, e já cansado de fingir ler o jornal, resolvi-lhe falar do rapaz e da notícia do jornal. Como é mais do que óbvio, o bom senhor sabia perfeitamente de quem se tratava, não só porque conhecera os seus pais e o próprio quando ainda era pequeno, como também era assinante do jornal. Então pensei que a notícia tinha feito furor entre os habitués durante aqueles dias, a julgar pelas duas ou três cabeças que se voltaram na minha direcção quando ouviram alguns fragmentos da conversa.
-É essa paneleiragem que anda praí, meu caro! Essa paneleiragem! Atirou o dono do café.O rapaz, pelos vistos, andava com um homem mais velho para todo lado. Talvez daí se tenha presumido que ambos eram homosexuais. Achei estranha esta catalogação imediata da vox populis, dado que não existia nenhuma referência à orientação sexual dos visados na notícia, sendo certo que esse facto, a ser conhecido, não escaparia à curiosidade do jornalista. Ainda segundo o proprietário, o rapaz "não era muito de vergar a mola", "de maneiras que se meteu por aí a vadiar, crava este crava aquele, pega neste pega naquele, e vai que quando já estava queimado em terra se aventurou no mar: Lisboa". Esta parte da biografia do moço já não era tão bem conhecida do proprietário, pelo que se depreende que todos os seus relatos desta época da vida do defunto se baseiam em suposições e conjecturas. Sabia que o moço, a dada altura, se meteu com essa malta do circo: os saltimbancos, e andava aí pelas terriolas a dar música à malta. A partir daqui, ao conjectural do relato juntou-se o caótico, tornando-se impossível discernir os factos. Resolvi tentar a minha sorte noutros lados. Perguntei ao homem se sabia onde viviam agora os pais do rapaz, ao que ele me respondeu que "lá prós lados de Alhandra".É óbvio que não confiei.
Tentei novamente a minha com o Serafim a minha sorte para procurar a morada dos pais do António, e se da primeira vez me livrei das perguntas, o mesmo já não aconteceu da segunda vez em que lhe fui pedir um favor:
- Mas ouve lá! O que é que tu pretendes com isto afinal? O homem é da tua família? Devia-te alguma coisa? Perguntou o Serafim.
- É pá, não! Estou a fazer um trabalho lá para o meu departamento e achei o caso deste moço interessante. Não tenho nada com o defunto, mas ele apresentava algumas lesões post-mortem que me interessam para um trabalho que estou a fazer sobre o papel da coagulação sanguínea na determinação do momento da morte. Fui lá a Setúbal, mas não encontrei nada de especial.
O Serafim abanou a cabeça como quem não compreende os incógnitos desígnios da Medicina Legal, os meandros da tanatologia que tanto sucesso faz hoje nas séries televisivas, e voltou à pesquisa pelo nome, aos resultados que já conhecíamos, a uma outra pesquisa pelas declarações de IRS, também inconclusiva, uma outra pesquisa pelo registo da segurança social, o que finalmente revelou alguma coisa. Os pais do rapaz não viviam para os lados de Alhandra, como tinha dito o raio do bêbado, mas sim na zona de Torres Novas, numa vilazita lá perto que me propus visitar no primeiro fim-de-semana que tivesse livre
Cheguei a Torres Novas por volta das três da tarde, onde utilizei uma técnica semelhante àquela infrutuosa da visita a Setúbal. Fui ao café da zona, perguntei pelo Sr. Manuel e pela Sra. D. Maria Rosa. O dono do café conhecia-os mal, "só de de vista", mas sabia de um tipo da limpeza do condomínio que os conhecia melhor. Talvez me pudesse dizer onde os encontrar. Assim esperei mais uma hora no café, tempo estimado pelo dono para encontrar o tal sujeito, que de facto chegou. Contei-lhe o motivo que me levava lá e foi-me sugerido que esperasse pelas seis. Enquanto a hora se aproximava, as incertezas assaltavam-me. Como iria lidar com duas pessoas que acabavam de perder um filho, para mais de forma tão trágica? Como me apresentaria? Jornalista? Psicólogo do Estado? Quanto à primeira hipótese, se é certo que pessoas há que se desnudam diante dos jornalistas sem que lhes seja necessário pedir duas vezes, a verdade é que casos há em que os visados fogem dos homens do microfone como os gatos da água. A jogar pelo lado mais arriscado, decidi-me apresentar como enviado do Instituo Médico-Legal que, de resto, era o que estava mais próximo da realidade. Deveria falar tão rápido e sem menor hesitação, tão natural como a respiração.
Encontrei os senhores passava já um pouco das seis da tarde. Eram um casal com cerca de 60 anos cada um, aparentavam humildade e preparavam-se para abrir as portas do edifício.
- Boa tarde! O meu nome Gabriel Silva, venho do Instituto Médico-Legal e gostaria de lhes fazer algumas perguntas, se for possível... O homem olhou-me com olhar pesaroso, exibindo duas olheiras enormes de quem já não dorme correctamente ou simplesmente não dorme há vários dias. A senhora lançou-me um olhar um pouco mais evasivo, uns olhos vermelhos de tanto enxugar como se estivessem marejados de lágrimas durante vários dias.
- Entre, faça favor, disse o homem a meia-voz. Subi.
2.-
A conversa começou de forma entrecortada, como não poderia deixar de ser, com uma breve apresentação da missão da minha visita. Enquanto falava, pude observar alguns dos retratos que enfeitavam a sala-de-estar. Vi molduras do casamento dos pais de António, algumas fotografias nas quais figuravam três elementos, pelo que supus que esse terceiro seria o seu filho. Em todas as fotos que aparecia era criança. Pelo menos, não consegui ver uma única foto em que reconhecesse os traços da criança num adolescente ou num adulto.
Explicaram-me que o António fora sempre uma criança sossegada e, realce-se, com um talento natural para a escola. A mãe, aviltando para o céu uns olhos azuis aguados de loucura, dizia-me que o António tirava notas excelentes a tudo. Começara na escola muito entusiasmado, mas a dada altura, sem que ninguém o conseguisse explicar, começou a andar triste e cabisbaixo. Não se lhe conheceram amigos de brincadeiras ou aquelas namoraditas de escola que todos os miúdos têm, como explicou o pai. Ia para a escola, regressava a casa e enfiava-se no quarto. Não tinha posters de super-heróis nem de “heroínas”. Ao que parece, o seu fiel companheiro, mesmo quando não transportava consigo a sacola, era o seu caderno, que o acompanhava para todo lado.
Assim andou até que se mudaram para Torres. Nessa altura tinha já idade de ir para o liceu, no entanto, ainda segundo a mãe, a rotina do jovem não sofrera quase nenhuma alteração, até que um belo dia avisou os pais que ia mudar de cidade. Ninguém o conseguiu impedir, pelos vistos, a esse rapazola que já era maior de idade. Depois soube a mãe por pessoas conhecidas, que o António se tinha junto a um grupo de saltimbancos e seguiu a carreira de palhaço. Pelos vistos, quem o metera lá fora um tal de Pelagio, um velho bêbado lá de Torres.
- Se o vejo ainda lhe rebento com a cabeça, explodiu o pai. Esse paspalho bêbado desencaminhou o meu filho. Ninguém sabe o que lhe fizeram para se juntar àquele grupo de ociosos ignorantes! Se não tivesse encarreirado por aí talvez ainda fosse vivo e tivesse uma boa vida.
Mas Deus assim não quis, acrescentou a mãe.
Perguntei-lhes se sabiam onde podia eu encontrar esse tal de Pelagio, ou talvez a sua morada. O pai disse que não sabia ao certo, mas ouvira dizer que o sujeito estava num lar de terceira idade lá em Torres. Sabia ainda que, pelos vistos, o velho ainda bebia como uma cabrita.
Não difícil encontrar o Lar onde supostamente se encontrava Pelágio. Bastou o primeiro nome na recepção para que me respondessem afirmativamente.
Conduziram-me a um quarto velho por entre uns corredores de tinta descamada, uma espécie de antecâmara e representação do ser que albergavam.
Talvez o termo "acabado" definisse com precisão toda a figura de Pelágio e o ambiente que o circundava. Os seus cabelos escasseavam no cimo da cabeça como as espigas erectas escasseiam num campo de milho após a poda; o seu bigode esbranquiçado ostentava uma enorme mancha amarela que nos fazia adivinhar o seu hábito desde há muitos anos. A sua estatura era mais para o baixo do que para o alto. As peles descaídas enfeitavam uma dessas caras que já viram muito , deformadas pelo cortejo de horrorres da vida, e um dia já viram tudo e continuam perdidas nessa floresta de enganos. Víamos numa pequena dobra acima da testa as canseiras do dia em que se acabou o dinheiro para comprar leite para a filha ainda bébé, e como desesperado correu toda a vizinhança à procura de um mísero pacote de leite e todos o negaram até que em desespero se dirigiu ao hospital e conseguiu alimentar a menina. Aquela pálpebra a pender sobre o olho fala-nos de todos esses trilhos e caminhos de terra que percorreu com os miseráveis do circo, as tardes inteiras a montar tenda e abalar a sete pés quando a coisa corre mal. Do fundo do olhar transparente, vê-se a imagem de uma menina que não queria ser miserável, cantar cançonetas num circo de terceira e apanhar porrada do pai, e um dia se torna-se uma bela mulher, embora já longe, muito longe...
Encontrava-se sentado numa cadeira de repouso junto à cama dos anos vinte que lhe tinham generosamente cedido. Via televisão, um qualquer programa da manhã, parado, como quem está e não está. Quando o segurança lhe anunciou que tinha visitas, Pelágio olhou com indiferença na minha direcção, como que estranhamente esperando a minha visita, ou tomando a nossa visita pela visita de outra pessoa. Apertou-me a mão, revelando um vigor inesperado dos braços, embora fosse claro pelo seu estado de ânimo, que não era mais um desses pobres velhinhos que aproveitam qualquer oportunidade para pôr a conversa em dia, falar das suas aventuras passadas, do seus amores (sempre concretizados). Pelágio parecia escapar a este estereótipo. As primeiras palavras que me lançou pareceram sair a contragosto. Talvez por isso resolvi ir directo ao assunto e perguntei-lhe se tinha trabalhado no circo "Irmãos Carvinali".
-Ah sim, esses bandalhos! Tive a infelicidade de os acompanhar durante algum tempo da minha vida.
- E conheceu um rapaz que era palhaço? O António?
- Sim, também me lembro desse bandalho. Andou por lá alguns tempos, pelo menos enquanto ninguém teve coragem de lhe dar um chuto no cú. Andava sempre bêbado como um cacho, se bem que eu, e todos nós, preferiamos ver o tipo bêbado. É que quando estava sóbrio dava pena olhar para ele. Sempre melancólico com os olhos no chão, a pensar na morte da bezerra. Um dia perguntei-lhe em que é que raio é que ele pensava. O safado apenas me respondeu :"-coisas". E prontos, lá estava... Só fazia porcaria! Olhava com cara de estúpido para toda a gente, uns olhos estranhos os daquele bardameco... Ficava com as bochechas e a ponta do nariz vermelhos como um tomate e abria um risinho estranho com os dois dentes da frente muito abertos à vista de toda a gente.
- Então e quanto tempo andou ele convosco?
- Eh sei lá! Aí uns dois anos. Um dia demos uns espectáculos aí numa terriola onde Judas perdeu as botas e as coisas deram pró torto. Houve um Domingo em que ficamos sem som e sem trapezista. Esse também era um bom bandalho, era... O gajo partiu as costelas, esteve no hospital uns tempos e depois ninguém mais o viu. Já o bandalho do Tony (assim chamava ao rapaz), um desses dias lá na terriola, foi lá um gajo falar com ele depois do espectáculo. Era um velhote careca, com cara de quem é mais mau do que a ferugem! A malta chegou a dizer que os dois eram ravetas. Não digo que não!... O outro gajo tinha uns olhos tipo... verdes .... e fundos... sem expressão. Parecia o raio de um demónio!
- Não sabe, portanto, o que lhe aconteceu depois? Continuei.
- Eh pá, não sei ao certo. Sei que um dos nossos, O Sansão, a quem nós chamavamos assim porque o tipo era o homem de ferro lá do circo, viu-os uma vez em Lisboa a dar espectáculo na rua. Na altura disse-me que não percebeu bem o que os gajos estavam ali a fazer. Só reparou que o careca falava alto para um grupo de pessoas e o Tony estava vestido à zé-povinho, com aquela cara de estúpido a olhar pra toda a gente. Vá lá um gajo saber... Se calhar eram mesmo paneleiros!
- Olhe, Sr. Pelágio, sabe onde anda agora esse tal Sansão?
-Ah, esse sei! Esse é bom moço! É trabalhador! E Moço esperto! Parece que agora é segurança numa casa de meninas lá em Lisboa. Ai esse bandalho!
- Obrigadíssimo Sr. Pelágio, nem sabe como acaba de ajudar!
- Mas lá o bêbado do Tony meteu-se em alguma foi?
Pensei um pouco antes de responder, e como não estava com tempo nem disposição para explicar tudo de novo, esperar todo um coro de interjeições e bandalhos para trás e para diante, resolvi abreviar a conversa limitando-me a responder que não, que eram só os pais que queriam saber dele.
- Entretanto precisa de alguma coisa, Sr Pelágio?
- Meu amigo, se me pudesse arranjar um cigarrito. Aqui ninguém vende e já cravei demasiadas vezes os mesmos macacos.
Dei-lhe o que restava do meu maço.
3.-
Há momentos em que não se faz nada de produtivo. Essa doce sonolência que a rotina traz aos dias abateram-se sobre mim como um torpedo nos dias seguintes à conversa com o "bandalho" do Pelágio. Tentei pôr as ideias no lugar e desenhar as futuras estratégias para seguir o rasto a António. Porque tinha ele abandonado os pais para se juntar a um bando de saltimbamcos no limiar da miséria? Porque deixou ele tudo para ir com aquele homem sinistrio com dotes de orador? Seria a sua homosexualidade, se de facto era homosexual? Porque tudo vale o que quer que seja, talvez o acto mais nobre da vida de um homem seja pôr cobro ao anonimato de uns e outros que passeiam pela vida, esses, que mortos viverão na memória de alguém. Mas a vida e identidade de um vale o anonimato de todos, um único organismo: as sensações, amor, sofrimento, alegria, tortura, injustiça de todos.
Não foi fácil encontrar Sansão, pois porque Sansão não era o seu nome verdadeiro. Depois porque o Pelágio só sabia o primeiro nome do homem de ferro, pelo que se bloqueou a hipótese de recorrer novamente à ajuda preciosa do Serafim. Resolvi seguir por um caminho espinhoso. Não sendo eu frequentador desse tipo de estabelecimentos desdobrei-me em esforços para visitar uma dessas casas de perdição, conhecida de passagem.
A minha primeirissima experiencia nesses ambientes foi péssima. Apenas acabado de chegar, uma mulher cuja cara parecia já ter sofrido topo tipo de injúrias, albergado todas as agressões e secreções humanas, perguntou se lhe pagava um copo. Repugnou-me, como me repugnavam todas outras. Bebi apenas uma imperial (que me custou os olhos da cara), dirigi-me ao segurança e perguntei-lhe se conhecia um tal de Vítor, segurança como ele numa casa da "especialidade", na esperança de ser verdade aquele mito que diz que no mundo incógnito da noite todos se conhecem (para o bem e para o mal). Talvez fosse um bom ponto para começar. De resto, acertar à primeira era quase impossível, pois Lisboa tem tantas casas de putas como o as flores abundam no jardim, facto bem conhecido desde o célebre General de Eça de Queirós.
O segurança franziu a testa com estranheza e disse que não. Lembrei-me então de perguntar pela alcunha: o Sansão, e esse sim, que conhecia, que trabalhava lá numa casa para os lados do Cais do Sodré. Mas porque queria falar com ele afinal, perguntou-me o troglodita. Respondi-lhe que era colega do guinásio e precisava de conversar com ele sobre uns assuntos. O troglodita franziu mais uma vez a testa, não deixando de achar estranho que uma figura franzina como eu frequentasse o ginásio, mas lá aceitou a resposta por boa.
Chegado ao outro local, trôpego no sufragar convidativo da noite Lisboeta, jovem virginal durante o dia, puta durante a noite, do local retive imediatamente o aspecto geral de chique foleiro, a luz vermelha ténue que sai das janelas e as mesmas caras que havia visto no lupanar anterior. A luz amarelada do Cais do Sodré, donde outrora se esperava a chegada de um Messias, estendia o seu braço de maresia de mortos ao mundo dos vivos, lambendo generosamente o edifício. A primeira figura com que me deparei à entrada foi um homem com os seus 34 anos, ligeiramente calvo e de aspecto robusto, embora não do género bovino como o seu colega. Deu-me uma boa noite em maus modos, e apeava-se já contra a parede para me ceder passagem, quando estranhou a minha hesitação na entrada. Perguntei-lhe se era ali que trabalhava o Sansão.
-Talvez... Quem deseja falar com ele?
- O meu nome é Gabriel e preciso de falar com Vítor. Um amigo dele, o António, faleceu há umas semanas atrás.
- É da polícia? Quem lhe disse que o Vítor era amigo do António?
- Se era amigo ou não, disso não tenho a certeza. Estou aqui pelos pais do António, que estão em grande sofrimento e precisam de ver esclarecidas as circunstâncias da morte do seu filho.
- Já não vejo esse sujeito há alguns anos. Há dias reconheci a foto dele no jornal.
- É você o Vítor?
- Sim, sou eu. A malta chama-me Sansão mas prefiro que me trate por Vítor.
- Muito bem! Encantado!
- Isto fecha daí a uma hora. Por volta das quatro já estarei disponível para falar consigo. Encontramo-nos aqui à porta.
- Muito bem, combinado, disse eu.
Resolvi não me afastar muito do local. Embora esteja arredado destas lides nocturnas há já alguns anos, sempre que me lanço no seu abraço negro atrai-me, como diria o contista, "uma estranha força". Resolvi então apear-me numa roulotte da cercania de uma discoteca e comer alguma coisa enquanto observava os grupos de jovens (alguns muito jovens) cambaleando embriagados para os bares e discotecas. Via alguns grupos ainda maiores, às vezes com raparigas apenas, numa embriaguez em que até as pedras da calçada parecem caminhar bêbadas, vacilantes a cada passo que as pisa, flutuando em ebriez geral com os edifícios decadentes.
Acabei o cachorro e caminhei a passo acelerado para a porta do lupanar, onde encontrei Vítor à minha espera fumando um cigarro.
- Peço desculpa, esperou muito por mim?
- Não, estou aqui só há dois minutos. Não se preocupe. Podemos ir ali a um after comer alguma coisa e falar um pouco.
- Venha, podemos ir no meu carro. Está ali estacionado, disse eu.
- Não se preocupe. O after é já na rua paralela. Podemos ir a pé.
Caminhamos lado a lado, eu e Vítor, em silêncio, cruzando-nos com os mochos piadores habituais de Lisboa, os mesmos grupelhos, jovens de ar sinistro, prostitutas de rua, sem-abrigo. Encontramos o after, que me pareceu uma tasca normalíssima e sentamo-nos. Apenas dois bêbados enfeitavam o balcão com a cabeça apoiada nas mãos.
- Então, come qualquer coisa? Perguntou Vítor,
- Não não! Muito obrigado! Acabei de comer.
- Então vou pedir alguma coisa para mim.Vítor pediu uma bifana e uma imperial. Comia sem me dirigir a palavra. O silêncio começava a tornar-se pesado, quando resolvi quebrar o gelo. Afinal sentia-me nessa obrigação, já que tinha sido eu o provocador de tudo aquilo.
- Porque é que acha que aconteceu aquilo, Vítor?
- Aquilo o quê? fez-se de desentendido.
- Aquilo com o António. Leu a notícia, não leu?
- Sim, li. Não me espanta nada.
- Porque é que diz isso? Há uns dias atrás falei com um senhor que disse ser seu antigo colega dos tempos em que trabalhava no circo. Conhece o Sr. Pelágio?
- Sim coheço! Isso foi há muito tempo. Sinceramente, é uma parte da minha vida que prefiro esquecer.
- Mas porquê, não gostava do que fazia?
- Não.
A partir daqui compreendi que não valia a pena insistir no assunto, pois que o meu interlocutor se mostrava de todo indisposto para continuar nesse tema.
- Mas ainda não respondeu à minha pergunta, Vítor. Porque acha que aconteceu aquilo ao António. Acha que ele se meteu com más companhias? Foi isso que o Pelágio insinuou...
- O Pelágio é um velho bêbado! Desde que se zangou com a filha que não bate bem da bola.
- Ele disse-me que o António abandonou o circo para ir com um homem sinistro que conheceu após um espectáculo desastroso. Lembra-se disso? O Pelágio insinuou mesmo uma relação homosexual...
- Não me parece, cortou Vítor. O António estava doente.O que aconteceu depois foi apenas uma conclusão natural do que já era suposto acontecer.
- Estava doente? De que tipo de doença sofria? Os pais do António não me falaram nada sobre isso.
- Estava doente mas não de uma doença daquelas que se curam com medicamentos, umas visitas ao médico e uns dias de cama. A sua era uma doença da alma, uma espécie de cancro na alma que si ia espalhando até se tornar fatal.
- Como é que sabe isso?
- Reconheço-o pelos sintomas...
- Pelos sintomas? O Pelágio disse-me também ter sido você foi o último a saber o paradeiro do António. Viu-o cá em Lisboa com o tal sujeito sinistro, não foi?
- Pióguin. Esse sujeito chama-se Pióguin.
- E acha que o Pióguin tem algo a ver com a morte do António?
- Não sei. Como lhe disse o bêbado, a última vez que o vi foi há algum tempo, talvez uns dois anos. Estava com o Pióguin perto do Chiado.
- Mas estavam a fazer o quê, concretamente? Esta parte do relato do Pelágio não compreendi bem. O que fazia então esse Pióguin, e o que fazia o António com ele?
- Pióguin é um pregador. Creio que lhe podemos chamar Pregador.
- E o que prega ele?
- Ao que consegui ouvir e ao que me disseram algumas pessoas que também ouviram, parece que falava num tal "Recomeçar da História". Não me pergunte o que queria dizer com isso. Tudo o que posso dizer é que tinha uma cabeça calva ameaçadora e um olhar vazio, mas tão vazio e tão amplo de espaço que tudo poderia caber lá dentro...
- Que fazia o António com ele?
- O António não fazia nem dizia nada. Limitava-se a ficar calado, vestido de palhaço, com aquele olhar e risos sinistros olhava fixamente todos os presentes como se os ameaçasse de algo, mas sem palavras. Lá ficava, com as bochechas e nariz rosadas, uma figura ainda mais cómica do que a do palhaço convencional, mas o que é certo é que ninguém se ria.
- Então afinal o que vinha a ser aquilo? Disse eu.
- Não sei. Sei que só o Pióguin falava em gestos lentos e decididos, enquanto o António acompanhava o discurso calado e sorrindo para todos. O mais estranho é que os presentes só olhavam para o António. Ninguém parecia olhar para o Pióguin.
- Estranho... Faz ideia do que queria dizer ele com aquilo?
- Não.
- Recomeço da história... Acha que alguma vez a história parou?, disparei eu.
- Acho que não, mas talvez aparente ter parado. A única coisa de que não tenho dúvidas é que personagens como o Pióguin surgem em contextos muito especiais.
- Como assim? Perguntei eu.
- Não é que eles não existam noutras épocas, mas como que ficam hibernados durante esse tempo, até que farejam a altura certa para sair do casulo.
- Sim, compreendo... Qual achas que é o papel do António no meio desta história?
- O António? O António é o palhaço! Conhece alguma comédia sem palhaços? Toda aquela gente que se fixava assustada no António via-o como o seu espelho de medo.
- Mas medo de quê, perguntei eu?
- Medo do que está para vir.
- Então e você Vítor? Porque acha que tudo isso é como diz? O que acha que levou o António a acompanhar o Pióguin?
- Não, sei. Talvez a mesma razão absurda que me colocou na posição de lacaio numa casa de putas de terceira, em vez de numa bela zona residencial da cidade, com uma esposa bonita e dedicada e com dois filhos inteligentes.
- Compreendo Vítor... Mas isso incomoda-o assim tanto?
- Já não incomoda. São apenas sombras, eu, você, o António e o Pióguin. Todos sombras.
A partir daqui a conversa voltou a banalidades, como sempre acontece numa conversa de trintões, o tempode acabarmos de comer, pagar e sair.
De novo na rua, uma estranha névoa da primeira luz do dia envolvia as ruas do Cais do Sodré, e os edifícios agora semi-descobertos pareciam-se conformar na sua inevitável ressaca, Despedi-me do Vítor. Observava-o enquanto atravessava a estrada, como o seu imponente físico parecia adelgaçar com a distância. Não se voltou nem percebeu que ainda o observava, nem mesmo quando, sem que ele me observasse, levantava a mão numa saudação eterna e dizia a meia voz:
- Adeus homem-de-ferro! Adeus...

III- Gabriel e o Anjo

1.
Na quinta-feira passada decorreu a apresentação do primeiro livro de poesia de Gabriel Meteco, na casa do livro desta cidade. Sim, foi poesia que se leu, ouviu e comentou durante todo aquele tempo. Alguns pensam, quiçá com razão, que publicar poesia tornou-se um pouco obsoleto, mas o nosso herói já se habituou a lutar contra as adversidades, e após muita persistência e espírito de guerreiro, lá conseguiu publicar os seus versos.
Existe ainda a questão levantada por algumas estranhas opções do mercado editorial, dando-se mesmo o caso de se publicar poesia sentimental. O que fazer, afinal, se mesmo os melhores dizem que se tornou impossível fazer poesia depois de Pessoa…!?
Com Gabriel encontrava-se o director da editora, o senhor Marmeleto que, segundo se diz até à exaustão na imprensa da especialidade, tem sido um autêntico Porto-Seguro da produção literária neste país. Era um homem calvo, alto e de tendões bem salientes no pescoço, ainda mais destacados pela forma como se inclinava na direcção do público. De resto, o auditório da Casa do Livro estava, como se diz na gíria popular – refeitinho, decorado por uma assistência nada despicienda para eventos desta natureza. Entre os presentes poderíamos encontrar:
*Marta Sofia Cavaleiro Miranda
Carolina Martins
Jennifer Collins
João Ribeiro Mendes
Carlos Meteco
Tiago Martel
Carlos Maciel
Martim Pontes
Júlia Crisóstomo
Rui Martins Salcede
Luís Miranda Neves
Maria Quintanilha
João Ferreira
Paulo Cunha Martins
Sandra Oliveira
Helder Santos
Helder Marques
Silvia Meteco
Vítor Matias
Sérgio Ribeiro
Bárbara Calisto Mendes
Custódio Campos
Patrícia Fialho.
Não se pode dizer que fossem todos especialistas da matéria, mas eram, pelo menos, pessoas interessadas quer pelo tema, quer pelo autor. Em boa verdade, a maioria eram seus amigos e conhecidos, que pelo menos, honra lhes seja feita, se deram ao trabalho de estar presentes, o que não é coisa pouca neste tempo de iliteracia.
No fim da apresentação, após a leitura de um par de poemas (o tempo era escasso), o nosso autor reiterou os agradecimentos que havia feito no início, não sem acrescentar um último poema, tirado do bolso num papel amarrotado à última da hora:
"Se me dou a conhecer
Fico fora do baralho,
Comprai minhas obras,
Remunerai meu trabalho"
Os convidados sorriram e quase todos quiseram dar dois dedos de conversa com Meteco, nem que fosse apenas para o felicitar. Sabemos mesmo, de fonte segura, que um ou outro levava já empunhado o seu livro em caça do autógrafo. Falou-se muito e de tudo: sobre as crises, que vão e que voltam, não sem deixar alguns náufragos irreversíveis, como perspicazmente afirmou um senhor gorducho que desde o início da sessão apalpava o pescoço. O Senhor Esteves, segundo outros tantos, uma autoridade nas "Economias", como ele gosta de dizer, no plural, foi mesmo peremptório quanto à necessidade das crises. "Assim se limpa o mercado de quem não interessa", afirmou com poses graves.
Segundo dizem os seus conhecidos, e o próprio Meteco confirma, as questões práticas, como sejam a economia, a política, o corta aqui e põe acolá, não lhe interessam, "porque todas ignoram o substrato essencial do ser humano, que é ser Homem e reflectir sobre e na própria existência". Certo que hoje, nesta assistência composta por gente mais ou menos aficionada, Gabriel não terá que se digladiar em argumentos desesperados com os desgraçados dos tecnocratas, esses que nunca tiveram tanta razão como nos dias de hoje. Normalmente, o seu trunfo tirado da manga consiste num "mas a técnica socorre-se das ferramentas da imaginação!" , coisa que resulta incompreensível para os seus ouvintes.
Os petiscos continuam a rolar pela casa fora, servidos pelas mãos velozes dos funcionários da empresa de Catering, e os convidados lá vão conversando animadamente.
Como anfitrião cortês que é, Gabriel vai deslizando de grupo em grupo, adaptando a conversa sempre que necessário, ora fazendo rir a senhora entradota, ora gabando a beleza da filha ou da netinha - "E toca piano, para além de ser boa-aluna", não raro lhe dizem as matriarcas. Sorri, desliza para o grupo dos cépticos, o grupo dos que nada sabem de poesia, dos que apenas conhecem as anedotas e temas eróticos do Bocage, mas que avaliam a qualidade de um dos seus pelo respectivo sucesso, seja em que domínio for. Cada um dos membros deste grupo tem uma espécie de pontuação imaginária, que sobe ou desce de acordo com os seus feitos, evolução da carreira, etc. Se se evolui no respectivo grau e título académico, o peito do visado incha um pouco no próximo evento social com os comparsas, que naturalmente já lhe prestam a devida reverência. Ninguém mais se atreverá a dar a garfada na área do nosso hiper-graduado sem pensar duas vezes, já que a presença da sumidade da matéria tem o efeito galvanizador de que o grupo "já se encontra composto" quanto àquela matéria. No caso de Meteco, a verdade é que foi sempre com alguma condescendência que o aceitaram, nas conversas de esplanada de Domingo ao. Meteco não passa de um vulgar funcionário público que, como se não bastasse o imobilismo já inerente à profissão, permite esta que os amigos saibam, em via aberta e publicada, cada movimento de progressão da sua carreira e respectivo salário que lhe acresce, de maneira que se encontra numa posição delicada para quem gosta de fazer "bluff". A atitude do grupo para com o poeta mudou radicalmente a partir do momento em que souberam que ia publicar algo. Digamos que, quando soou nos seus ouvidos a frase "O Meteco vai publicar um livro de poesia", apenas retiveram a palavra "publicar" de todo o conjunto. Depois, por associação, veio-lhes à mente a palavra "fama", a palavra "vendas" e "editora" e, não por remota associação, a palavra "dinheiro".
Foi também do grupo dos cépticos que surgiu uma personagem estranha. Um homem com os seus quarenta anos, de calças de ganga coçadas e camisa à pescador, o que o distingue claramente, pela indumentária (e pela negativa) dos restantes. Apesar disso, os cépticos parecem não reparar nele, embora o integrem num círculo perfeito, como se um amigo de longa data se tratasse. Quando perdeu o fio à meada na conversa, Meteco resolveu dar dois dedos de conversa com o único elemento do círculo que permanecia calado. Quis saber quem era. Perguntou-lhe o nome,
- Anjo.
Meteco riu e elogiou o bom sentido de humor e disposição do seu interlocutor. Mas certamente que mesmo os anjos têm nome!!
- Chama-me apenas Anjo…
- Ok, um brincalhão... Pois então senhor Anjo, gostou da apresentação, está a pensar comprar o livro? O Anjo franziu a testa e respondeu-lhe a contragosto;
- Pois tenho eu outro remédio senão dizer que gostei e que lhe vou comprar o livro? Meteco reagiu com um assombro momentâneo, logo controlado pela sua atitude aristocrática,
- Pois calma meu amigo! Não é obrigado nada! Não fique maldisposto! Estamos aqui entre amigos e entre amigos não se encontra pruridos desse género!
- Pois!, riu o Anjo, vai dizendo isso para ti próprio que ainda te convences! E desata numa risada maliciosa que irrita profundamente o nosso autor.
Para disfarçar o nervoso miudinho que lhe percorreu todo o corpo, Meteco bebeu um trago largo de whisky. Quando voltou a olhar em frente já não viu o Anjo. Entretanto, para aliviar a tensão, voltou-se para o companheiro da direita e disse: - Viste-me só este tipo que estava aqui?
– Qual tipo?
– Este que estava aqui à minha frente de calças de ganga e camisa xadrez.
- Deves estar a sonhar! Aí não estava ninguém.


2.

Aquela foi aquela a que podemos chamar: a primeira aparição do Anjo. Partimos do princípio, ainda sem dados suficientes, para afirmar que se tratou ipso facto de uma aparição. Vejamos melhor: segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa, Vol1, Verbo edit, p. 284 : "Aparição:(do lat. Apparitio, -õnis) (1) Acto de surgir, de aparecer – Aparecimento chegada (2) Manifestação súbita de um ser sobrenatural sob uma forma visível; (3) Visão de fantasmas, espectros ou de outros seres sobrenaturais; (4) Fantasma, espectro, alma do outro mundo; (5) Começo de alguma coisa – Aparecimento origem (6) Rel. Festa instituída pela Igreja Católica para celebrar o dia em que Cristo apareceu aos apóstolos, após a Ressurreição.”. Perante tal auxílio bibliográfico, não temos a menor dúvida em subsumir o insólito acontecimento no qual foi interveniente Meteco a qualquer um destes significados (excepto o referido em (6), como é óbvio). Assumindo igualmente que aos entes de outro mundo é suposto "aparecer", para que se lhes dê o estatuto de atrás referido, devem estes também "desaparecer" subitamente e sem deixar rasto. A segunda fonte de que nos podemos socorrer para atestar a "Aparição", prende-se com a briosa cultura do nosso país, onde (não tão raro como se pensa), senhoras vestidas de branco aparecem em cima de azinheiras a crianças de coração puro. Seguimos essa tradição, bem como os relatos da época, para classificar o insólito como algo de inatingível ao olho humano e, pois claro, algo de ímpar beleza. Aqui já não nos é tão generoso o apoio das fontes, dado que estamos já em condições de saber que o suposto ente aparecido nada tinha que se assemelhasse a angelical, sendo antes aparentado do marginal. Uma personagem semi-andrajosa que, como se não bastasse, insinua de forma não muito subtil aquilo que todos os lúcidos presentes já sabem: que a poesia de Meteco é lamentável e que é o próprio seu maior admirador. Não será mesmo difícil admitir, caso o talento não se repercuta nas vendas, que o autor atribuirá tal descalabro à nova censura levada a cabo pelo mercado editorial, à concorrência desleal do autores consagrados e até, quiçá, à terra que não se deixa salgar...

3.

A verdade é que, como não poderia deixar de ser, houve lugar a uma segunda aparição, que ao contrário da primeira, não se poderá chamar com plena propriedade de aparição. Isto porque desta vez foi Gabriel que apareceu ao Anjo, e não o contrário. Viu-o debruçado num quiosque de rua, pouco antes de comprar um daqueles diários modernos que escorrem crime e assombro. Assim que reconheceu a figura do Anjo, o que não era difícil até porque a indumentária não tinha mudado, Meteco correu atrás da figura que se começava a confundir na multidão. O Anjo não desapareceu. Foi alcançado pelo poeta, que lhe colocou a mão no ombro e virou de forma suave. O Anjo reconheceu imediatamente a figura familiar e esboçou uma espécie de sorriso irónico.

- Ora viva! Bom os olhos o vejam! disse-lhe Meteco;

- Viva!, disse o Anjo não muito surpreendido,

- Então lembra-se de mim? Sou Gabriel Meteco. Encontrei-o anteontem na apresentação do meu primeiro livro - um livro de poesia. O Anjo fitava-o com ar zangado:

- Pois, como poderia esquecer, se fui ver PRECISAMENTE a sua apresentação?! E se aí fui para o ver A SI! Meteco estremeceu,

- Ena! Que mau feitio! Sabia que se lembrava de mim! Era uma pergunta retórica! Olhe, gostaria de continuar a nossa conversa devidamente irrigada por um cafézito? Podemos ir já ali à esquina.

- Sim, claro..., responde o Anjo a contragosto.

Chegados ao café, o poeta ajeitava nervosamente as mangas do sobretudo, pois tornara-se já claro que a figura do Anjo o intimidava, essa figura semi-andrajosa recostada na cadeira de meio-sorriso cheio de uma ironia e segurança que faz tremer até os mais convictos.Sem saber como quebrar o gelo à discussão, Meteco arriscou algo bastante evasivo:

- Então há muito tempo que gosta de poesia?

- Sim, de boa poesia, há bastante tempo

- mmm.... Muito bem! Então gostou da minha apresentação?

O anjo franziu a testa como quem evita responder, ou como quem já sabe o que vai responder mas não o faz para não matar logo à partida a discussão ou quem sabe, imbuído de paixão cristã pelo autor? Meteco compreendeu o que significava aquele gesto, por isso atreveu um pouco mais o discurso:

- Com toda a franqueza, sei que por vezes nos inventamos como o reflexo do quem queremos ser. Pode ser também que as pessoas não são tão sinceras connosco quando se trata das nossas realizações, enfim! Por simpatia... Mas a si, que já vi que não é hipócrita… O que lhe parece a si? Sinceramente...

O Anjo irrompeu zangado:

- O que é que isso importa compadre? Não acha que um dia todo fluirá para o mesmo caos, nada importando quem e o que é que se faz de bom ou mau?

- Não queria pensar em termos tão abstractos... Assim... quer dizer, nada valia a pena de nada!

- E se calhar não vale. O certo é que nada valerá...

- Então como sabe? Adivinha o futuro? É algum bruxo?

- Bruxo não sou e também não adivinho, mas porque não sou bruxo e não adivinho posso dizer que SEI, o que é bastante diferente de adivinhar não acha?

- Ahh! Mas isto está a melhorar? Então afinal é mesmo um Anjo, e não estava simplesmente bêbado quando se apresentou há dois dias atrás?!

- Ah ah ah! Você para além de poeta é idiota!

- Muito bem! Entra-se na brincadeira. Então diga-me lá, senhor Anjo, porque é que V. Exª, com tantas personalidades ilustres infinitamente mais importantes do que este humilde servo de Deus, resolve-lhe aparecer para anunciar banalidades?

- Calhou, por acaso... Não pense que o Patrão está tão ocupado que não repara em si, mas quanto à minha aparição, isso, é puramente casual.

- Mas se é puramente casual, certo que tem algo para me dizer… Ou caiu do espaço só para anunciar que é um Anjo?

(…)

- O espaço... sabe Meteco, qual foi o primeiro homem no espaço?

- Sim, sei. Foi o cosmonauta soviético Yuri Gagarin.

- Sabe, em 1961, quando Yuri Gagarin foi lançado para o Espaço, houve uma grande expectativa quanto ao que ele poderia ver por lá. Como sabe, a humanidade sempre idealizou o céu como a "Casa de Deus". Quem sabe se Gagarin não poderia ver por lá o Reino dos Céus? Talvez por isso, numa das suas primeiras declarações após o regresso à Terra, tenha dito que não viu Deus, apenas matéria escura. Uma quantidade infinita de matéria escura...Meteco bocejava como quem não dá demasiada importância ao que se diz, tomando a pequena incursão histórica como mais uma zombaria,

- Mas, Sr Anjo, ainda não respondeu à minha pergunta... O Anjo recompôs-se e soltou com ar desdenhoso

- Oh, já me esquecia. Vim para lhe dizer que vossemecê está doente.

Meteco olhou com ódio o Anjo, como quem está prestes a impor um murro nas fuças, mas mais uma vez o seu sentido de humor o salva de uma situação embaraçosa:

- Mas agora o Patrão preocupa-se com quem está doente, é? Há milhões de pessoas doentes no mundo, e todos os dias umas adoecem, outras morrem de doença e outras curam-se!

- De acordo Meteco. Também não vejo o que isso tenha de especial, mas insistiu tanto que lá tive que lhe dizer alguma coisa, não é?

- Se o meu amigo o diz... E posso saber de que tipo de doença sofro?

- Caramba Meteco! Também não sou médico! Sou um simples Anjo!

- Um Anjo que se deu a todo este trabalho apenas para me dizer que estou doente!

- Exactamente! Os Anjos dos tempos modernos têm estas funções muito pragmáticas, muito terra a terra. Quantos Anjos destes não terá encontrado na sua vida?

-Não sei do que está a falar, respondeu zangado,

- Alegre-se homem! Uma coisa lhe garanto: pior do que agora nunca será, compreende?

- Ah, muito bem Sr. Anjo! Mas posso saber então do que se trata?

- Oh Meteco, mas acredita mesmo nisso?

- Nisso? Em quê?,

- Isso de existirem pessoas doentes e pessoas saudáveis? Olhe para ali! O Anjo apontou pela montra do café para uma multidão indistinta que caminhava a passo acelerado para a boca do metro. Crê que ali existe um único saudável?

- Até pode ser que não, mas pelo menos não têm Anjos a profetizarem a desgraça!

- Isso é apenas um pormenor sem importância. O facto de eu estar aqui ao seu lado a dizer-lhe todas estas coisas, precisamente a SI e não a um DELES é pura casualidade. Agora, se me dá licença, tenho mais que fazer. Foi um prazer falar consigo Meteco. O Anjo levantava-se e preparava-se para sair;

- Espere, disse Meteco. Vou voltar a vê-lo?

- Nunca se sabe, nunca se sabe...

3.

Escusado será dizer que nos dias seguintes, a vida de Meteco deu uma volta considerável, para não dizer de 360 graus, como concluem os mais espirituosos. Encontrou-se subitamente num verdadeiro frenesi de procura de médicos, embora tivesse que começar, digamos assim, pelo início. Consultou o seu médico de família que, conforme os ditames das boas práticas profissionais, lhe prescreveu umas análises para avaliar a bioquímica - uma espécie de check-up. Fez os exames e passada uma semana voltou com eles ao seu médico. O médico não viu neles nada de especial, aliás, não virá nada de especial até ao momento em que resolveu efectuar um exame tópico de reflexos no seu paciente. Feito isto, emudeceu e limitou-se a escrever, escrever. No final da missiva indicou que gostaria que o nosso poeta fosse consultado por um médico neurologista, assim "só para ter a certeza", "para ficar-mos de consciência tranquila". Esqueceu-se apenas de dizer quem deveria ficar de consciência tranquila com a nova consulta, mas essa última parte também Meteco não teve curiosidade de saber.

Pouco tempo depois consultou o médico neurologista, um homem jovem, de cerca de trinta e três anos, em quem era bem visível o pouco tempo que tinha de especialidade. O doutor fez o mesmo exame tópico que o médico de família lhe fizera, embora com um pouco mais de paciência e de desenvolvimento. Sentou-se na poltrona que servia de cadeira de trabalho e começou por escrever algo, e talvez Meteco compreendesse um pouco mais do que estava a ser narrado naquela missiva se soubesse ler de pernas para o ar. Acabada a carta, o médico neurologista fez um novo exame físico ao paciente, pressionando alguns nervos do braço esquerdo ao mesmo tempo que lhe pedia que contraísse os músculos. Gabriel colaborou em tudo o que lhe foi solicitado, até porque no relatório que o médico escreveu no seu computador pessoal contava, na rubrica: "estado psicológico do paciente", o seguinte: "Paciente calmo, coordenado e colaborante". Ordenou, finalmente, a Gabriel um exame conhecido por TAC (Tomografia Axial Computadorizada) para, segundo o clínico, obter um diagnóstico mais completo.
Nesse mesmo dia, Gabriel ligou a um amigo seu médico, um homem muito competente e simpático - um progressista dentro da sua área profissional, segundo lhe chamam alguns colegas com quem simpatiza. Pois escreveu recentemente um artigo sobre o uso de células estaminais e manipulação genética que vai muito além do que alguns querem admitir, invocando estes últimos considerações de ordem ética para inquinar as investigações. Gabriel ligou ao seu amigo por duas razões: primeiro: porque não confia nos médicos. Sempre que as circunstâncias o obrigam a visitar essa espécie humana dotada de particular cinismo, segundo a sua opinião, tem a sensação de que lhe ocultam algo, seja porque é grave, seja porque não o consideram relevante. Em segundo lugar, porque para além da estranha sensação de não saber de tudo, Gabriel encontra-se quase paralisado por um medo animal que lhe percorria todo o corpo, impedindo-o de ter o mais breve pensamento positivo que fosse.

Depois de narrar sucintamente o seu historial clínico recente, o amigo respondeu-lhe algo que já tinha ouvido por duas vezes. Que os sintomas dos quais se queixa são comuns a um número infindável de problemas, que apenas se pode tirar conclusões quando se tiver mais resultados de exames (daí a importância de um diagnóstico tão completo quanto possível) e que enfim, mais valia acalmar-se e descansar.
Chegado a casa, razoavelmente mais tranquilo, Gabriel cumpriu basicamente todas as tarefas rotineiras que costuma cumprir, a saber:
- Lavou a louça com detergente da loiça, marca "Lavatudo", recipiente de 250cl;
- Cozinhou um magnífico rolo de carne (de porco e legumes), assado no forno com batata:
- Bebeu quarenta centilitros de refrigerante, marca kopiCola;
- Fumou um cigarro, marca Marbello;
Quando terminou a ceia, Gabriel lavou novamente a loiça e procurou enfiar-se na cama. Ainda antes de dormir, continuou a leitura de um livro que há já algumas semanas figura em lugar de destaque da sua mesa-de-cabeceira: um livro de desenvolvimento pessoal chamado:”Como ser espontâneo em dez lições". Adormeceu no sono dos justos, mas por volta das quatro horas da madrugada acordou em silêncio, completamente suado. Virou a cabeça ainda zonza do sono para ligar a luz. Acendeu o candeeiro, tirou a camisa do pijama, bebeu um copo de água e voltou-se a deitar. Ainda antes de dormir, pensava no mundo e como há tantas coisas e tanta gente, e como a sua dor, vista universalmente, é insignificante. Pensava e via retratos imaginários na parede e um grito surdo que ecoa quase indistinguível de todo o resto, mas ali, presente. E porque ninguém vê, ninguém sente, esse grito que ecoa pelas paredes, como a vibração natural da terra desde o Big Bang.

4.

Na manhã seguinte, Meteco levantou-se com uma pesada dor de cabeça. Afrontou-lhe o seu rosto no espelho, as rugas que se lhe cravavam com cada vez maior nitidez nas fontes. Há muitos anos que olhava o mesmo espelho e parecia que desde então a sua cara não mudara, pelo menos desde a adolescência.

Pelo caminho encontrou ainda o seu amigo de infância - Colosso, um homem alto de 43 anos que lhe resumiu a sua vida recente. Despediu-se com um breve adeus que poderia querer dizer até já, ou até breve ou até nunca mais.

Chegou ao edifício onde deveria fazer o exame marcado para aquele dia, fazendo pouco caso de como os edifícios que se ocupam da sanidade são exteriormente indiferentes a ela. A sua vez chegara. Despiu a sua roupa e subiu para a máquina que examinaria as suas entranhas. À medida que deslizava pelo tapete pareceu que faria aqui a sua primeira viagem espacial, o cosmonauta das entranhas. Convém dizer que o aparelho onde agora Meteco se encontra a postos para a sua primeira viagem é uma máquina de terceira geração. Quer isto dizer que mal deslizou para a forma esférica de cerca de setenta centímetros, o gantry, ou ampola de raios X que serão emitidos através do corpo do poeta e recepcionados pelo lado oposto da esfera, que por sua vez enviará a informação ao sistema informático instalado para o efeito. Recorde-se que este prodígio tecnológico só é possível graças ao "capital" que constitui o corpo humano, que ao recepcionar a radiação e assim dar uma imagem de acordo com a respectiva quantidade de radiação absorvida pelos tecidos (radiodensidade). A imagem assim transmitida permitirá ao analista identificar pontos nodosos ou simplesmente "duvidosos".

A máquina descreveu mais uma volta completa, e enquanto o fazia Gabriel recostou a cabeça e viu ainda uma imagem fugidia do Anjo. Depois fechou os olhos e viu apenas matéria escura. Uma infinidade de matéria escura tal como outrora tinha visto Yuri Gagarin e que tanto desiludira o mundo dos vivos.

* Os nomes aqui expostos foram compostos aleatoriamente. Qualquer semelhança com nomes de pessoas REAIS é pura coincidência.