A história da Abécula é uma história triste. Portanto, desenganem-se os que procuram neste texto algum desanuviamento para as canseiras do dia-a-dia. Aqui não encontrarão consolo. Correm ainda o risco, se forem tão perspicazes como o autor que adiante atentamente se subscreve, de verem retratadas de forma crua as vossas frustrações na história da nossa triste Abécula. Fujam, mudem de canal, vão ver televisão ou comprar um daqueles romances bonitos enfezadinhos envoltos em cetim à venda nas prateleiras!
Aqui encontrarão a dureza da vida em toda a sua violenta monotonia.
E tenho dito!
A Abécula nasceu nos loucos e gloriosos anos 60, anos de hipes e de rocalhada e droga e folia. Consta que foi nesses anos que um artista americano do roque enfiou um balde de dejectos na cabeça em pleno concerto. Diz-se também que algumas seitas prodigalizavam o sexo como forma de libertação; outras bebiam sumo de laranja envenenado para encontrar os anjinhos mais cedo; outras adoravam os ratos, outras odiavam os ratos; algumas amavam os homens e outras afirmavam ser o homem a única e possível salvação de si mesmo e outras tolices que tal.
Onde a nossa Abécula nasceu não existia nada disto. Apenas meia dúzia de casas, muita terra para trabalhar, um café e uma igreja com padre. Emparedada neste mundo, dois extremos se debatem na sua vida com igual veemência: os jogos de futebol dos gaiatos, único espectáculo que lhe é permitido porque conciliável com a lide de casa, já que a janela da cozinha tem vista para o terreiro; dois: o pau de marmeleiro do pai, cujos contornos, como diria o romancista, eram já seus velhos conhecidos. O caminho de casa para o ribeiro é trilhado quase unicamente pelos seus pés, mas um malfadado dia outros pés fazem o caminho desse ribeiro, e a virgindade da nossa Abécula é profanada por um velho putanheiro lá da terra.
Não se sabe, como é óbvio, se a pobre da moça tirou algum prazer do acto. É possível que não, é possível que sim. De qualquer das formas, se não tirou deveria ter tirado, porque por aqueles breves momentos de penetração desajeitada haveria de pagar toda a sua vida.
O velho cometera a malvadez (e convenhamos, vulgaridade) de ejacular dentro das entranhas da rapariga. Os dias foram passando… o velho, como se não bastasse, teve ainda a desfaçatez de morrer de ataque cardíaco, a barriga cresceu e os pais da moça, que não eram tão católicos ao ponto de acreditar na virgindade da virgem Maria, ou então que a sua Abécula era uma Maria virgem, puseram-na fora da porta depois de uma valente sova de pau de marmeleiro. O pai esmerara-se na sova, de forma que toda a aldeia ouvisse essa requiem final da Abécula ao som da sinfonia de dor na qual era algoz e maestro.
A moça fugiu para a cidade, e como era (apesar do que diziam na aldeia e ao contrário do que lhe chamou um puto com cara de rafeiro no último olhar que lançou ao amontoado de casas) uma moça séria, não foi pelo caminho da vida fácil, tentação a que se entregam muitas campónias mal se vêm livres das amarras do campo.
Empregou-se como sopeira já com sete meses de gravidez, e graças à boa vontade da governanta, pôde dar à luz e ficar de cama uma semana sem correr o risco de despedimento.
Entretanto, o rapaz cresce, e diga-se que não foi preciso crescer muito para que a moça compreendesse que se não quisesse que o seu filho fosse um indigente e ela uma pedinte toda a vida, teria que encontrar rapidamente um outro trabalho. Encontrou. Como empregada de balcão num centro comercial. Neste momento, o seu horário de trabalho dividia-se da seguinte forma: das 07h00 – 18H30 - sopeira; das 19h00 às 23h00 – empregada de balcão.
O rendimento melhorou bastante. Resolveu comprar uma casa a prestações e meteu o filho num infantário privado. Acontece que os dois salários tornaram-se também insuficientes, pelo que decidiu arranjar um terceiro emprego: caixa de estação de serviço. Assim o seu horário de trabalho passou a ser: das 7h00 às 18h30 – sopeira; das 19h00 às 23h00 – empregada de balcão; das 24h00 às 05h00 – caixa. Com um pouco de jeito ainda durmo duas horas nos transportes, pensou.
Alguns vizinhos lembram-se da moça. De todo o emaranhado acessório que contaram, apenas duas notas fortes e credíveis ressaltam: 1- ao pequeno nunca lhe faltou nada; 2- Tinha umas olheiras até ao rabo.
terça-feira, 18 de outubro de 2011
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário