sábado, 7 de julho de 2012

Às voltas com Gaspar


Ligava-me sempre por volta das cinco horas, lacónico, frio. Segundo o próprio, não gostava de telefones, o que pude muito bem comprovar quando esteve semanas a fio com o telefone desligado. Os nossos encontros seguintes, como que para compensar essa prolongada ausência, tornaram-se frequentes e prolíferos. O lugar escolhido era invariavelmente uma pastelaria dos arredores. Porquê? Nunca compreendi, já que ambos vivíamos no centro da cidade. Mas julgo que ambos nutríamos uma admiração irresistível pelos grandes subúrbios, embora por razões diferentes. Gaspar, quiçá por por razões estéticas, achava que os subúrbios são a exteriorização física dos seus habitantes: desertos de betão com grafitis berrantes, caixas onde se arrumam aqueles de que não se sabe o que fazer. Eu, por motivos políticos e individuais, via os subúrbios como uma espécie de escape da vida pesada do centro da cidade, onde a reclusão do lar encerra mil vidas que tinha ocasião de ver pelas janelas em mil fogos alumiados cada vez que entrava na cidade depois de um fim-de-semana prolongado. As pessoas tinham um ar despojado de preocupações com o status , essa maldição burguesa que fustiga os centros das cidades. No final de contas, talvez fosse apenas uma experiência exótica para meninos mimados…
A dada altura, a nossa relação assumiu contornos estranhos. As nossas combinações começavam a assumir, a julgar pelo seu tom de voz, o toque esotérico de seita política. Sussurrava-me nos momentos críticos, como que a desvendar uma mistério que uma vez descoberto parecia ter estado sempre ali à mão de semear. 
À parte das nossas conversas, pelo pouco que consegui avaliar da sua rotina, diria que era alguém bastante previsível. Como todos hoje sabemos (e o tempo que demorei a descobrir!), era revisor freelancer. Creio que trabalhava na sua ocupação principal duas ou três horas por dia. O resto do tempo passava-o a ler ou reler os muitos volumes que decoravam as paredes de casa. Disse-me várias vezes (mas julgo ter ouvido ou lido em qualquer outro lugar) que as verdadeiras leituras eram as releituras. Compreendia o que queria dizer, embora nunca o tivesse formulado por palavras. Dedicava também um pouco do seu tempo à música clássica, com um empenho de alguém que lida com uma paixão antiga, como se dois amantes de há muitos anos se encontrassem para relembrar os seus amores, mas era tudo diferente e irrepetível. As noites eram ocupadas nos cafés e lupanares da cercania, rodeado do seu bando. Eram muitos, e devo confessar que o número aumentava de cada vez que tinha oportunidade de o acompanhar nessas saídas. O seu carácter mudava violentamente com os ares nocturnos. Ninguém reconheceria naquele homem prático, sempre com planos sobrepostos para o caso de algum deles falhar, dividido entre as conversas filosóficas e a perseguição incansável do sexo oposto, o homem concentrado, generoso, sóbrio, que aparentava na sua barba sábia diurna. As impressões que retinha no final de cada noite eram sobretudo confusas. Era capaz de percorrer mil planos, construir uma Babel numa só noite para a destruir logo de seguida à força de tragos desalmados de cerveja e vinho barato. Compreendia então, como hoje ainda o compreendo bem, que era essa a única realidade possível. No plano das ideias tudo fazia sentido, a lógica discorria harmoniosa e serena e quem não se poderia sentir génio nessas circunstâncias, e na manhã seguinte era tudo mentira.
Era de esperar que com o passar do tempo essa faceta ganhasse terreno como aconteceu com tantos outros, empurrados por um destino injusto para uma vida de desassossego.
Foi assim que testemunhei aquele conjunto de homens e mulheres reunidos à sua volta, cada vez mais viscerais e promíscuos até ao ponto de me chocar, a mim que sempre fui muito permissivo nessas questões. A última vez que os vi dançavam uns com os outros quase nus ao som de música de segunda. O seu mestre, olhava impávido e triste como quem olha para a sombra de algo há muito perdido. Afinal, todos eram tristes, incluindo eu. Apenas o manifestavam refugiando-se no último enclave da miséria humana: o corpo. Talvez ainda algo mais do que isso, a prova viva e material da justa loucura de um homem. Não, disso não tenho dúvidas. Eram todos a mesma pessoa.