domingo, 14 de outubro de 2012

Recordação de Uma Fronteira



 Interrompendo o serpentear da cintura muralhada da cidade, ergue-se um imponente aqueduto com cerca de oito quilómetros e oitocentos e quarenta e três arcos de extensão. À vista desarmada, estamos perante um Coliseu desmembrado, segundo fontes da época, obra complexa e onerosa. Mas ficou, e perante a vista que alcança a cidade pelo lado oeste parece tão só o primeiro obstáculo não natural nas vastas planícies que deixa para trás – uma via rápida para a capital do Império.
Na verdade, a cidade resume-se ao seu centro histórico, bastante fácil de identificar: começa quando começam as várias construções muralhadas. Estas conservam fragmentos de todas as épocas, como é costume nestes casos, um fenómeno da sobreposição, sinal de que as coisas quando não se fazem por imitação, fazem-se porque os seres humanos, qualquer que seja a época em que vivem, sentem necessidades muito parecidas. Estas sucedem-se: a muralha fernandina, a de D. Dinis e respectivas torres, árabes, góticas, romanas, celtas. Todos partilharam a mesma obsessão: muralhar, abaluartar, fortificar, couraçar, defender.
Do outro lado da parte alta da cidade, a primeira povoação do país vizinho encontra-se plantada em campo aberto numa planície árida. Parece ignorar olimpicamente o que se passa do outro lado, quando do cimo das inúteis fortificações couraçadas a contemplamos. Sentimos ainda hoje a ordem imperiosa de vigília, atenção, desconfiança.
O caminho do velho castelo medieval ao centro leva-nos direitinhos à Sé Catedral, um curioso edifício em frente do qual se espraia o coração cívico e comercial da cidade. Contemplados pelo velho astro da religião do alto dos seus séculos de indiferença divina, materializada em pedra gasta e amarelada, não restam senão idosos em torno da praça para mais um fim-de-semana de pasmo e miséria contida. Nada indica que seja diferente durante a semana. Os velhos já não se dão ao trabalho de conversar ou jogar às cartas. A impressão fundamental é a de que esperam. O quê? Um dos velhos salta alguns pregões fogosos: «Ah, sua cambada de velhadas! Estes já não fazem mal a ninguém! Deveriam era morrer todos! Anda o estado a gastar dinheiro com esta gente para quê?» Dito isto, levanta-se em sobressalto da parede onde se encontra apoiado e os seus olhos vivos percorrem nervosamente a toda o entorno como se procurasse algo por entre o vazio. Quem é apanhado no ciclo vicioso da pobreza, por mais ignorante que seja, revolta-se, esbraceja, esperneia. Conclui, apoiado por todos os argumentos da razão, que a sua situação é inaceitável e desumana e em diante não há nada e não acontece nada, e o progresso louco, imparável do mundo continua sobre a solidão até normalizar o anormal.
De costas para a justiça divina, encontramos o pelourinho da cidade. Está bem conservado. Talvez por isso tenha sido recentemente considerado património da humanidade. Ostenta um belo pedestal, um alto fuste rematado pelo capitel em forma de prisma onde ainda hoje encontramos os ferros da sujeição, talhados em forma de cabeça de cão com uma língua comprida e achatada como se estivessem esganados. Seguram as argolas dos tempos da pena capital, onde morriam os condenados ao suplício final. Não custa imaginar que em terras de fronteira, num qualquer dia de auto de fé, se encontrassem os quatro espigões ocupados com a função para a qual foram concebidos. O seu aspecto grotesco seria uma espécie de ironia final para os acusados que, segundo dizem os sobreviventes da experiência, atentam especialmente aos pormenores nos seus últimos segundos de vida. Do lado direito do pelourinho, uma espécie de arco do triunfo de uma qualquer ordem de cavalaria que batalhou contra os mouros. Quais mouros?
Pela estreita calçada medieval, dois rapazes descem. São as criaturas mais feias e assustadoras que vi em toda a minha vida. O mais alto apresenta uma cara disforme e olhos de maldade, uma cicatriz no nariz aparentemente quebrado várias vezes no mesmo sítio. O outro é baixo e magro. Veste umas calças largas e uma camisa colorida, usa o cabelo pintado de um tom indeterminado. Parece uma daquelas figuras ridículas dos filmes de terror, capazes de cometer os actos mais atrozes.
Já sei, são os descendentes desses outros criminosos que em tempos eram levados aos espigões implacáveis da justiça de Deus. Teriam, no máximo, uns vinte e cinco anos. Nasciam e cresciam nos bairros pobres da cidade, onde os esperava a servidão nos mesteres das corporações ou nos campos à volta, o exército e a certeza de uma morte prematura ou, a opção mais apetecível de todas: a bandidagem, normalmente, o tráfico. Nesta última hipótese, a sua vida seria também miseravelmente curta, mas iluminada por miragens de liberdade e pelos prazeres furtivos da saciedade e do sexo. Tinham ainda tempo, antes de acertar as contas finais com O Criador, de fazer dois ou três miseráveis garantidos em raparigas adolescentes dos bairros populares, daquelas que aos quinze anos espelham nos olhos a tristeza de quem é maltratado pela vida.
Acaba-se a visita com a impressão inevitável de que a função daquelas couraças e fortificações é a manter prisioneiros os seus próprios habitantes, com cujo sangue era regada a poeira dos rigores do clima do sul quando os Deuses se achavam indisposto.