sábado, 24 de outubro de 2009

O último aforismo de Guilherme Pais

No passado dia 3 de Setembro de 2009 faleceu o líder do último partido genuinamente marxista de Portugal, e quiçá de toda a Europa. Estou a falar de Guilherme Pais, mítico líder do PCAOP (Partido Comunista dos Agricultores e Operários Portugueses). Poucos meses antes de soltar o último suspiro, Pais havia escrito um texto que podemos interpretar como um testamento, e que nos permitimos agora reproduzir sem mais demoras.

«Esperar muito da vida é a mesma coisa que apanhar uma enorme ressaca após uma noite ébria. Era isto que pensava no final de mais uma das minhas aulas de filosofia. Continuo a pensar que a filosofia é uma disciplina imprópria para ser ensinada. Nada estranho que Nietzsche perdesse a voz perante os seus (talvez) não muito interessados pupilos suíços.
Limitei-me a observa-los passada a hora de terminar a aula. Quando eu me sinto precisamente sob o ponto de tocar em algo celeste, falo-lhes das grandes correntes filosóficas dos séculos XIX e XX. Descobrira uma vida de enganos para tantas dessas almas nobres, que tudo passava em silêncio e tudo se desfazia, que mais importante era o mundo que os esperava lá fora, como os via, em passo acelerado, voltando ao mundo aniquilador. Sim, aniquilador. E disto isto não preciso de acrescentar nada.

Surgia-me então um outro pensamento. Qual seria a diferença, sim, a diferença, se eu, Guilherme Pais, professor e político, senhor de uma biblioteca interna de vários volumes, eu, senhor de ossos, músculos, tendões, braços, pernas, cabeça, afectasse esses mesmos músculos, tendões, braços, pernas, cabeça ao único fim para o qual parecem ter sido concebidos: viver – mas é de outro modo de vida que falo, aquela que desconheço ou da qual não tenho memória. Fruição. Como um animal que usa apenas a sua capacidade de abstracção em sintonia com a finalidade para a qual se adaptou: caçador-recolector. Não sou Darwinista, mas essa foi e continua a ser a nossa sina, essa que para nós caiu em esquecimento. Não admira pois que cada vez que a esquecermos só encontraremos infelicidade.

Quando em horas funestas olho para esses jovens que desejam tirar proveito da vida, hedonistas à sua maneira. Pelo menos de uma maneira que julgam que é a sua, e que ao fim e ao cabo é a de todos. Que sonham viajar e salvar as criancinhas esfomeadas do Sudão, salvar mulheres muçulmanas do patriarcalismo radical islâmico, resgatando-as das garras da morte. Quando vejo toda esta gente tão cheia de vida, tolerante, organizada, bondosa – terrivelmente bondosa, com devaneios calculados, os filhos do mundo globalizado a quem fizeram crer que tudo é possível. Quando vejo a um só, a todos, a nenhum, enfim, são todos iguais, apenas desejo ser como eles e viver a vida com um sorriso nos bons momentos, um ligeiro amuo nos maus, viver e envelhecer e um dia pousar levemente a cabeça no travesseiro e dormir o sono eterno. Por certo sei que não será assim.

Disse chamar-se Lola. Lola tinha 30 anos e falava pelos cotovelos. Lola era baixita e tinha o cabelo curto. Falava convulsivamente em avalanches verbais que rolavam até ao esgotamento do fôlego. Quando pensávamos que daquele sopro já não sairia mais nenhuma palavra Lola surpreendia. Era assim Lola. Tinha 30 anos Lola. Aos 30 anos todos chutam uma mulher para canto: os patrões, os gajos, tudo…
Um dia deste deram-me a entender que um logicista da minha casta deveria ser perfeito. Não porque nascesse perfeito, mas porque os ossos do ofício o exigiam. Quem constrói a realidade como uma montanha de blocos, uma pirâmide ordenada nada mais tem a fazer do que ser perfeito e exigir dos outros nada menos que a perfeição. Pobres loucos estes! Se soubessem que ainda hoje desejei tão ardentemente aquela jovenzita de quinze anos mais as suas carnes tenras, saberiam como tudo isto é vida e tudo isto é arte.

Lola bombardeou-me com informação autobiográfica. Se fosse minimamente perspicaz Lola notaria perfeitamente o meu desinteresse pelo enredo intricado das impressões da loucura da sua vida. Mas amo-te assim Lola. A ti e à tua vulgaridade, porque essa é a vulgaridade de tudo, e é ela que nos faz apaixonar pelo mundo. Nada parece fazer sentido se pensares, Lola, que tudo o que nos apega terrivelmente às coisas tem um substrato volátil. São essas sensações fugazes que nos fazem, Lola. É por elas que julgaremos tudo o que temos de mais precioso.

Saí para o mundo e ele tinha mudado. Apenas vi sombras disformes, mas guardei-o para mim. De que adianta falar, quando todos caminham alegremente para a perfeição? Porque seria eu a estragar o bom ânimo da festa, como me disseram um dia. Compreendi perfeitamente. Compreendi que uma nova fé universal se propagava pela Europa, e que os seus sacerdotes eram mais terríveis que os seus predecessores, precisamente porque trocaram a espada pelo sorriso. Compreendi que já ninguém era levado a sério se não falasse como um desses sacerdotes dos tempos modernos, se não abusasse das suas palavras vazias. O mais terrível seria pensar que me acolheriam com um sorriso ainda mais aberto se descobrissem que não sou um dos deles. Que os quero ver mortos. O Deus empresa prepara o seu pontificado.

Lola, querida, achas mesmo que me ficam bem estas calças? Olha que, magro como estou, com estas calças vão julgar que sou um problema de saúde pública.

Essa chusma de babosos que agora se passeava nas empresas era justamente igual a outros. Esses homens fracos que se pavoneiam como nos corredores ao longo da história, arrancando do fundo do peito fingido odes apaixonadas à natureza, a Deus, à Razão, a tudo, a nada…
Pior do que tudo, (e aqui reside a verdadeira decadência porque nem decadente é), falam agora não mais num tom grave mas sereno, da sua empresa e das suas ninharias. Falam de enriquecer e de outras veleidades como quem falava da revolução em tempos de utopia, e isto sim, isto é o século XXI: merda! Gente a mais que se mata por ninharias. Pior! Não se matam! Mais valia que o fizessem…
Que enfiassem no rabo todas as suas desditas, a igualdade de direitos, os pobrezinhos da Etiópia, os seus merdosos espaços assépticos (tão limpinhos que quase se pode comer no chão), que não sabem mais que fazer. Multiculturalismo (deste nem me atrevo a falar)?. Sussurravam até, veja-se lá, a transformação da linguagem, que até aos dias de hoje ignorou o género feminino – querem transformar o plural masculino. E dizem-me que há lugar para o que quer que seja neste mundo, onde os revolucionários são recebidos pelos ricaços com um sorriso? E isto é o mundo? E isto é a Europa? Mais valia nunca ter passado de um promontório asiático dominado por Atila, o Huno. Mais valia que Hitler e a sua máquina racional sob ímpetos irracionais conquistara todos os cantos desta terra maldita. Aqui deixam-nos viver e sorriem-nos sempre e fazem-nos crer que tudo é possível e que somos todos iguais e que um dia todos seremos presidentes ou reis ou que quer que seja. E isto é a puta da Europa?

De certa forma, Lola vivia num mundo fantástico, onde seres inanimados ganham voz, mortos ressuscitam e presidentes de vários organismos a assediam constantemente para cargos muitíssimo bem remunerados, que invariavelmente declina. O seu fervor persistente em dobrar roupa na loja da esquina prevalecia sobre tudo. Pelo menos era a única dedução possível, atendendo às suas próprias palavras. A sua caminhada estóica reduzia-se, suspeito que involuntariamente, a essas quatro paredes.
Lola vivia oprimida por uma doença imaginária que, ainda segundo a mesma, aguentava trabalhando para não sobrecarregar o Estado. A sua preocupação pela sustentabilidade do Estado Social levava-a a tal sacrifício.

A minha experiência marxista diz-me que nenhum Estaline deste mundo precisa de inventar os seus verdugos. Eles existem e por vezes encontramo-los pasmados nas esquinas. Só então alguém lhes coloca uma vara na mão e diz: “vai e conhece o mundo!”
O verdugo recém-inventado nada tem que o distinga do vulgar ladrão, do vulgar charlatão, do vulgar assassino. Apenas a sua legitimação pelo sistema o distingue dos espécimes citados. O verdugo não tem que ser culto e inteligente (normalmente não o é). Apenas tem que ser suficientemente covarde e cego de valores para fazer (como operacional) aquilo que o regime espera dele: torturar, delatar, matar, o que, repito, é comum a todas as épocas - ou seja, todas as épocas e sociedades têm os seus, sejam quais forem as circunstâncias. O grande quid specificum do verdugo é que apenas tem coragem de espreitar por detrás da amurada quando é protegido pelo sistema. A segunda grande diferença é a sua extrema heterogeneidade e capacidade de mutação. O verdugo pode ter sido um ex-chefe da polícia, um artista medíocre, um jovem arrivista ou até mesmo uma dona de casa. Todos têm em comum o verem na nova posição que o sistema lhes oferece uma oportunidade. Uma oportunidade de carreira, em primeiro lugar; uma oportunidade de dar largas à sua malvadez, em segundo lugar.
Os verdugos odeiam toda a gente. Ou porque a sociedade não lhes deu no passado aquilo que julgavam merecer, ou até porque esse é o seu mais profundo instinto animalesco, que convém em libertar.
Uma terceira razão pode residir pura e simplesmente no medo e no desespero. Medo de ser o próximo visado por essa máquina brutal e inumana; desespero, tão só porque a época é de desespero e só o miserável de rua que nada tem a perder não está desesperado.
De tudo isto convém reter que é a própria máquina cega e brutal que elege e selecciona os seus verdugos. Depois diz-se que a ideologia está morta, que desde a queda do Muro de Berlim o capitalismo continua a sua marcha triunfante, sem uma proposta alternativa credível ou exequível. E é este crer na inevitabilidade da história e dos factos, este determinismo, que começa a verdadeira morte do último marxista.

Criei o meu Partido Comunista dos Operários e Agricultores Portugueses numa época em que se acreditava em algo mais, ou senão em algo diferente que não o dinheiro. Estamos a falar de um tempo em que grupos de jovens se sentavam à bord de la seinne para filosofar e praticar o amor livre. Olho para os jovens de agora e não posso deixar de chegar à conclusão que até o idealismo se tornou algo insuportável. Análises económicas da literatura, atitudes optimizadoras, coaching e outras merdas. Tudo é útil e tudo tem que ser útil – no limite, optimizado, como se essa fosse uma escatologia irrenunciável, mas digo, até os jovens idealistas se tornaram insuportáveis. Não por serem ricos, ou burgueses, ou vaidosos, o que foram características de muitos grandes homens ao longo da história, que nem por isso deixaram de ser grandes homens. Crítico apenas aquilo que neles é artificial, armado, fabricado, protocolar, como se fosse suposto ser bombista na adolescência e conservador na idade adulta, essa idade em que os antigos bombistas se vangloriavam em salões da moda perante os seus comparsas, de copo de wisky na mão, dos seus tempos bons de juventude, e quão bons eram, e quão bom era voltar, e de como tudo isso é impossível hoje, de como não há revolucionários, nem pides, nem padres inflamados contra a invasão vermelha, nem nada que se pareça. Depois de tudo voltarão aos seus lares, onde se deitarão nas suas belas poltronas, ou na sua confortável cama com a sua agradável mulher, com quem farão amor toda a noite (quiçá com a ajuda de medicamentos para aumentar a potência sexual), e dir-lhes-ão palavras bonitas enquanto fazem amor, e falar-lhes-á de coisas amáveis quando descansarem do coito libertador, e depois tudo isto é vida…

Porque trazes hoje presa no cabelo uma flor vermelha? Porquê Lola? De onde vem esse vermelho. Do sangue? Da fleuma? Do trauma de ser vulgar? Dizes-me que gostas… Fica-te bem, Lola. Fica-te bem…

Mas vezes houve em que me revoltei contra o povo, aliás, penso que os marxistas modernos mais não têm feito do que se revoltar contra o povo. Se somos herdeiros de uma ideologia que coloca o povo no seu centro gravitacional, porque não votam em nós? Nós, os que defendem os seus interesses. Porque votam nos partidos que defendem os interesses do patronato? Porque têm mais dinheiro, e porque dominam os meios de comunicação social, e assim conseguem captar o eleitorado com mais eficácia? Não me ocorre melhor resposta do que esta: o povo não existe. O povo já não existe. Já só existem indivíduos, indivíduos que não precisam ser dispersos por maquiavélicas leis anti-ajuntamento, mas que se isolam voluntariamente. Se imaginarmos uma sociedade onde o indivíduo não pode parar de pensar, pensar em como pagar o crédito que vence no dia X, da prestação da casa que vence no dia Y, do seu emprego que breve se extinguirá. Se mantivermos a sociedade como uma massa amorfa em constante movimento não precisamos de máquinas repressivas estatais. O próprio cidadão, por sua livre e espontânea vontade, parará de pensar, resignar-se-á com todo o prazer àquilo que lhe for dado. Por isso, esses verdugos não precisam de se organizar em torno do Estado. Instalam-se nas empresas onde toda a sociedade civil funciona. Isto não pode deixar de gerar uma situação inédita e paradoxal: o Estado passa a bom da fita e os particulares dão-se ao luxo de o ignorar, e fazendo-o sabem que o fazem impunemente, e esta será uma das novas facetas do Estado. A outra será a sua faceta punitiva: multas, regulamentos, normas. O seu único objectivo é arrecadar normas que possam suster o já decrépito Estado social. Enquanto houver Estado social o povo não se revolta, pensam. E a verdadeira razão da opressão permanece mascarada sob os bons preceitos do politicamente correcto: higiene, segurança, previsão, erradicação do caos, e tão pouco saberão que estamos a ser preparados para normas ainda mais intrusivas, que prepararão, quiçá, a tomada de assalto final do Estado pelos verdugos.

Sabes Lola, de todas as leis, as únicas que respeito são as da dor. Talvez sejam as únicas que devam ser respeitadas, porque no fim tudo se resume a isso. Quando imagino as diversas situações que a vida me trouxe e me imagino deitado numa cama de hospital, anónimo, deitado, apenas um corpo diminuído, não posso ver aí alguma dignidade. Não existe dignidade alguma, pelo menos no sentido que os grandes senhores da história lhe deram. Por isso só a vida que procedeu esse momento miserável pode ter tido alguma dignidade. Mas tu Lola, que nada percebes de dignidade a não ser ter o tão pãozinho na mesa e uma cama fofa para te deitares, não verias nada de indigno nessa imagem ridícula, e eu amo-te por isso.

Mas digo-vos, povo, que vos perdoo tudo. Perdoo-vos a vaidade, a inactividade, o conformismo, se continuardes a ser homens no pleno sentido da palavra. Digo isto com a consciência de se tratar de um lugar comum, e com uma consciência oculta ainda mais forte de saber em quantas formas e quantas línguas isto pode ser e já foi dito. Como dizer algo, nos nossos dias, sem que não tenha sido dito por um número indeterminado de personagens do assombro, sobre tantas formas e roupagens diferentes?

Alguma vez me perguntaste, minha querida, como é que o medo assentou arraiais na minha pessoa? Sabes muito bem que passei a ter medo de tudo, e foi o medo que me levou a tudo. Foi em homenagem ao medo que construí o meu império, e foi no seu altar que realizei o meu primeiro holocausto.


E sigo, sob a minha fé marxista. Bani Estaline e a magnífica sociedade que crescia debaixo dos seus braços abertos e os seus bigodes de ratazana. Bani Lenine e essa pretensiosa nova facção que procura reabilitar a sua imagem, e ter morrido novo, e ter proposto uma nova política, e os enfartes, e o maldito Estaline. Bani Trotski e o Anti-Estalinismo, e o pathos, e a picareta, e a agonia. Não sei o que fica. Marx? Criemos mais um Deus imaginário e gritemos o seu nome até à exaustão. Bem sabemos que, ao contrário dos homens, os Deuses ouvem-nos sempre e se pensarmos que tardam nas suas respostas, isso é apenas fruto da impressão contingente que temos do tempo, que o que é para nós uma infinidade de tempo é para os Deuses uma fracção de segundo.

Não quero mais hoje nada teu Lola. Nem o teu sorriso, que me dá descanso aos olhos, nem os teus pés, que me massajam as costas, nem o teu sexo, que conheço já como a palma das minhas mãos. Se inventasses outra língua diria tudo aquilo que sinto por ti, e aí ficarias a saber, e talvez já não me amasses de forma tão pura. Dizias que eu não descansaria enquanto não voasse com as aves, mas estavas enganada. Não te queria abandonar e trocar pelas aves. Queria ir com os vermes. São eles os que sabem mais da vida. Mas o amor, esse… esse nunca esquecerei. Lembras-te como o teu corpo te fazia subir aos céus para logo de seguida te atirar para o Reino dos Infernos? Como incerto moravas nesse Reino para um dia voltares e gritares de novo: isto é a vida! Não te esqueças que só isso vale a pena, querida Lola.»

sábado, 17 de outubro de 2009

O Parque

Tragédia em cinco actos

Inês saiu de casa por volta das 7:30.
Embora o seu domicílio distasse cerca de 30 km do Parque, os meios de transporte altamente eficazes da sua cidade permitiam-lhe chegar em apenas cinco minutos.
Apanhou o primeiro comboio, um dos muitos que faz do Parque uma das suas paragens obrigatórias. Como de costume, o comboio encontra-se apinhado de toda a massa matutina de trabalhadores: senhoras de etnias e proveniências diversas (algumas até envergam o traje típico dos seus países de origem), homens com pequenas bolsas (presumivelmente o seu lanche), estudantes sonolentos, uns conversadores, outros trabalhadores (com o portátil aberto àquela hora da manhã). A maioria lia os jornais gratuitos distribuídos à porta da estação (Inês pegou também um para si); algumas pessoas (poucas), progrediam nas suas leituras pessoais folheando o romance de ocasião.
Primeira estação: Luxembourg. Saem alguns turistas. Notícia de capa do jornal: “Recente estudo revela que cerca de 80% dos crimes na nossa cidade são perpetrados por imigrantes”. Os passageiros fixam os olhos no jornal, quiçá apenas pelo pretexto de não cruzar olhares. Talvez um atavismo desse tempo em que se acreditava que se alguém captasse o nosso olhar roubar-nos-ia a alma.
Segunda Estação: Port-Royal; segunda página do jornal: Recente estudo levado a cabo por universidade britânica prova que as mulheres sentem maior atracção e atingem mais facilmente o orgasmo com homens de conta bancária saudável. Saem alguns estudantes e alguns turistas. Não entra quase ninguém. Fecham-se as portas. O último senhor a entrar, muito provavelmente gaulês, não se sentou, apesar da abundância de lugares vagos. Terceira página do jornal: “Grupo de portugueses detido em Aversa. Um grupo de passageiros sem o respectivo título habilitante tentou empreender, sem sucesso, a viagem Nápoles-Roma no passado dia 1 de Maio. O grupo de desordeiros procurava assim manter a tradição e entrar “à portuguesa” no dia 1 de Maio. A ordem foi imediatamente restabelecida graças à pronta intervenção das nossas forças policiais”. Terceira Estação: Denfert-Rochereu: saem alguns passageiros, estudantes. Entram outros tantos. Cerca de cinco polícias entram no comboio, provavelmente porque imediatamente antes deles entraram cinco jovens com aspecto magrebino. Soa o sinal. O comboio avança. Os jovens não se sentam. Quarta página: “Saiba como vencer a crise. Técnicas de auto-motivação e procura de emprego. Por apenas mais 10 euros adquira o suplemento: “O que é que as empresas procuram?”. Por apenas mais 5 euros adquira também o suplemento “Dá mais visibilidade ao teu cv.” Quarta estação: cité universitaire. Saem muitos estudantes. Entram algumas pessoas. Fecham-se as portas. Quinta página: “ Existem famílias a viver em regime poligâmico na localidade de Clichy-sur-Bois”. Quinta e última estação: Parque. Inês saiu. Chegou ao seu destino. Ainda á saída do túnel encontrou o seu amigo Z…
- Olá, tudo bem?
- Tudo. Contigo?
- Vai-se andando. Que tens feito?
- Isto e aquilo…
- Uau, que emocionante…
- Olha Inês, sabes quem foi Aristóteles?
- Sei, foi um filósofo grego.
- Boa! Conheces alguma cena que tenha dito?
- Não, só sei que foi um filósofo.
- Pois… Sabes que ele dizia que uma verdadeira tragédia deve acontecer dentro de 24horas?
- Ai sim? Isso é muito tempo… E em quantos actos?



O Parque

Para chegar ao Parque, Inês devia ainda apanhar o tram, cuja paragem se localizava mesmo à saída da estação de comboio. Apenas dez minutos de viagem. A cerca de três minutos do final da viagem já se avistava o Parque em toda a sua imponência. Era um recinto do tamanho de uma pequena vila e avistava-se ao longo em virtude da profusão de cores vivas da sua construção, e particularmente por três colossais torres em estilo romântico que constituam o seu ex-libris. Aí funcionava a administração do Parque. Inês desempenhava funções de guia neste Parque de fantasia. Toda a iconografia do Parque gira em torno de um conhecido mundo de desenhos animados outrora criados por um bom-homem. Diz-se que esse homem não queria envelhecer nunca. A sua juventude eterna e a sua visão de um mundo idílico, sem guerras, sem stress, sem dissabores – projectado em personagens imaginadas e humanizadas de animais. Teríamos assim: o “ratinho”, o “cachorrinho”, o “patinho”, o “periquito”, “o papagaio”, entre outros.
Dir-se-ia que esse homem, ao criar o seu sonho criou o sonho da humanidade inteira. As pessoas precisam de sonhos e esperança para viver. Os vendedores de sonhos sabem-no melhor do que ninguém.
Voltando à singular historia da nossa protagonista, Inês, como já foi dito, era guia turística no Parque. Conseguira o emprego graças ao seu extraordinário talento para falar diversos idiomas “praticamente sem sotaque”, como lhe viriam a dizer muitos dos visitantes do Parque das mais variadas origens.
Em tempos, também fora uma sonhadora. Aquando da sua meninice, desenvolvera uma paixão obsessiva – compulsiva pelos desenhos animados temáticos do Parque. Era mesmo proprietária de diversos peluches do ratinho e do cachorrinho, os seus favoritos. Cresceu e tornou-se uma mulher. Um dia apaixonou-se.
O seu namorado convencera-a a empreender com ele uma viagem em busca de uma vida melhor, noutro país. Fugira com ele. Não chegara a frequentar a universidade. Chegada ao país de destino, nem a imaturidade dos seus verdes anos nem o amor duradouro pelo seu parceiro de aventura impediram de reconhecer a dura realidade. Se no seu país, esse querido e pequenino país natal, que normalmente só se ama à distância, as oportunidades lhe estavam vedadas, isso acontecia também e por maioria de razão no país de acolhimento. Na verdade, não sabia muito bem qual era o seu sonho, mas era qualquer coisa diversa daquilo. Não que tivesse uma vida má, pelo menos o sentido material do termo (esse que normalmente tudo vence), e tão pouco tinha razões para infelicidade no plano pessoal. Tinha muitos e bons amigos (maioritariamente do seu país de origem) e um companheiro que a amava. Era qualquer insatisfação, qualquer vazio que nascia dentro de si, uma mancha negra que nasce como uma borbulha e que alastra e alastra até que toma conta de todo o ser. Apaga qualquer brilho nos olhos, seja de amor, ódio ou rancor. Antes os transforma em pedra, apaga a sua chama vital e impõe o morno da morte.
A infância não fora, contudo, apagada do seu imaginário. Tinha ainda o seu quarto decorado de motivos alusivos às mascotes do Parque, de maneira que o mundo ganhava uma inusitada unidade: do Parque ao seu quarto. A cidade era apenas uma imensa ponte a pulular de vida.
Voltando ao terreno, Inês dirigiu-se à recepção do edifício onde funcionava a administração, esse já referido, das três torres românticas. Devia depois descer dois lances de escadas laterais que a conduziriam a dois corredores separados por duas portas de serviço. Ao fundo do segundo corredor encontrava-se a central de segurança. Aí picaria o ponto e ser-lhe-ia atribuída uma hora de entrada.

A segurança era algo que fora pensado ao pormenor. Teríamos mesmo a sensação que fora a principal razão da construção deste Parque, a segurança. Um imenso furor preventivo escorria das suas paredes decoradas com câmaras, como se a todo o momento esperassem Átila e os seus hunos; como se a ordem do universo dependesse da câmara estrategicamente colocada num ponto morto da sala, invisível ao visitante desatento; como se todo o equilíbrio da natureza repousasse no olhar atento dos seguranças, vestidos a rigor, alguns até montados em cavaletes eléctricos, uma espécie de versão moderna de um ciclope. Adiante-se, só que alguns eram zelosos ate ao desespero. Tinham como função a observância do cumprimento das regras do Parque por parte dos visitantes e funcionários. Principalmente, quanto a estes últimos, e dada a especial prevalência que a administração concedia à imagem do Parque – a que se transmite ao público, os seguranças tinham como função verificar a correcção e observância pelos funcionários das regras de decoro. A saber: cabelos penteados, nada de piercings ou tatuagens expostos, barbas cortadas e uniformes limpos. Aqueles que tinham a seu cargo uma performance especial era-lhes controlado o rigor da prestação assim como o feedback pelo público. Por sua vez, os seguranças eram avaliados por auditores especialmente designados para o efeito. Estes possuíam uma grelha e uma escala de classificação. Por sua vez, os auditores eram supervisionados e controlados por determinados membros da administração que, de resto, não detinham qualquer função demasiado específica. Escusado será dizer que num mundo como estes, onde toda a gente controla toda a gente, onde o espaço é reduzido a um mínimo insustentável e o oxigénio artificial e rarefeito, haveria lugar a alguns respiradouros naturais, que sempre surgem em semelhantes circunstâncias.
Passo a explicar: embora fosse suspeita qualquer movimentação ou contacto prolongado entre funcionários do Parque, isto é, longas conversas e formação de solidariedades sólidas (que a administração procurava conscientemente evitar), casos aconteciam de trocas de fluidos em circunstâncias e locais duvidosos, escapados de todo à vigilância. À parte disto, toda a população funcionária do Parque parecia viver num desespero constante vertido em olhares indiscretos e libidinosos. Os seguranças usavam o zoom das câmaras de vigilância para ver de ângulo privilegiado os decotes das senhoras mais ousadas. Os restantes, quando não lhes calhava um posto de segurança junto do controle das câmaras, comentavam com o compincha do outro lado do edifício, através de intercomunicadores, a boazona que acabava de passar. Pode-se também dizer que toda, mas mesmo toda a actividade do Parque estava regulamentada ao pormenor. Não havia aspecto nem percalço, nem situação corriqueira estivessem em branco relativamente à agulha omnipotente do legislador do Parque.


Quando um dia começa bem

Nem por especial generosidade se podia dizer que Inês era uma pessoa simpática. Inês não era uma pessoa simpática, nem no sentido mais amplo nem corrente do termo. Não tinha sorriso fácil e dentado. O sorriso que a performance da sua posição lhe exigia, o que de resto não passava despercebido a vigilantes e visitantes, era arrancado a ferros, forçado, artificial, que facilmente poderia ser confundido com o acto de abrir a boca para morder. Ora, claro está que, embora o seu sorriso fosse forçado, o que não era de todo desejável aos olhos da administração, não era também facilmente sindicável pelos vigilantes. Apesar de toda esta paranóia e atavismo que lembra o período da Inquisição, em que algum Cristão-Novo podia ser preso e torturado por “falta de atenção na missa”, não é fácil fundamentar tal acusação sem se cair no extremo ridículo. Não que não se tenha o direito de ser ridículo. Antes pelo contrário…
Encaminhados os senhores turistas em tratos doces na sua língua materna, chega-se à hora do almoço. A cantina do Parque está apinhada de gente, como de costume. Inês não gosta de almoçar no Parque. A comida é de qualidade duvidosa e escassa – tudo feito ao barato.
Ainda não terminara de descer o segundo lance de escadas, Inês sentiu uma voz na sua direcção que lhe gritava: “Espera, espera!”. Esperou.
Por detrás de si surgiu uma figura masculina, alta e esguia, cabelos muito negros e pele morena, com traços evidentes de mestiçagem ibérica do Médio-Oriente. Inês parou. Quando foi alcançada voltaram, agora juntos, a encetar a marcha. Seria estranho pensar que mesmo depois desta irrupção violenta, os dois recém-amigos caminharam cerca de cinco minutos, lado-a-lado, em silêncio, como que mudos. Evidente que esta situação era insustentável. Então Inês decide quebrar o gelo e olha-o com certa perplexidade e de olhar esbugalhado. Esboçou um tímido e quase imperceptível “Olá!”, “Como te chamas?” “Pablo”, respondeu, “Sou teu vizinho”
- Vizinho?
- Sim, vizinho. Também moro no catorze.
- Ah! Que engraçado… Nunca te tinha visto por lá…
- Vi-te eu a ti
- Chamas-te Pablo… és espanhol?
- Sim. Sou de T…
- nunca lá fui.. Só conheço M… e B… De passagem, quase.
- Tu como te chamas?
- Inês
- Como?
- Inês
- É difícil pronunciar…
- Nem por isso… É uma questão de hábito…

Aí vai Inês… desce as escadas do refeitório. Pisa os degraus como quem pisa as estrelas. Talvez nunca saberás que é esta a matéria dos sonhos e todo o resto da tua vida o passarás em busca dessa primeira felicidade. Se ainda viveres o suficiente verás que apenas aí tudo é possível.

Visita ao Castelo


Por volta das duas da tarde, depois do almoço, Inês recebeu um ofício que a convocava para se dirigir à administração. Construiu o castelo e colocou-lhe umas pequenas pétalas no cume – um modesto adorno.
Subiu no primeiro elevador que chegava ao rés-do-chão sob o olhar vigilante do segurança. Premiu o botão dois e o Castelo levantou voo, alto, muito alto, até às estrelas. À medida que subia, via como tudo lá em baixo parecia pequenino, como de brincar: o Parque e o seu desenho ortogonal, as pessoas já como pontinhos até que desaparecem, os carros em torno do Parque que, primeiro perdem o movimento para depois desaparecer; os campos, pequeninos, como que desenhados.
Chegara finalmente ao segundo andar. Passou três corredores esquisitos e de cheiro duvidoso, até que abriu duas portas de serviço. Atrás de um compartimento provisório, dividido como que por um biombo dos tempos modernos, escondia-se a sua supervisora.
Alertada pela chegada de Inês, levantou-se de um salto e dirigiu-se-lhe com uma cordialidade pré-ordenada, protocolar, artificial. Inês compreendeu-o rapidamente, até porque sabia perfeitamente os limites que a posição supra-ordenatória de um supervisor lhe impõe.
- Boa tarde Inês,começou;
- Boa tarde
- Chamei-a aqui para tratar um assunto consigo
- Sim
- Sim Inês. Já agora, permita-me que lhe faça uma pergunta,
- Com certeza…
- A Inês tem família lá no seu país?
- Sim, tenho…
- Marido, filhos, irmãos, pais…?
- Sim, tenho… quer dizer, apenas pais e dois irmãos,
- Muito bem… Agora, voltando ao que interessa, a razão porque a chamei aqui prende-se com uma questão do regular funcionamento do serviço. Como sabe, aqui no Parque, e esta é uma das qualidades que se nos reconhece em todo o mundo, primamos pela excelência no nosso serviço. Neste sentido, a excelência do serviço, do nosso em concreto, significa estar à altura dos sonhos das pessoas. A Inês tem sonhos e esperanças… projectos?
Riu ao de leve e corou um pouco…- Claro que sim…
- Pois… mas assim em concreto… Por exemplo: eu sei que a Inês tem educação superior. É formada. Anda a prepara alguma tese, pós-graduação?
- Não,
-Pois Inês, mas olhe que nos dias de hoje parar é morrer… E tem, como hei-de dizer isto, um ideal de vida?
- Bom… Confesso que me apanha de surpresa com essa pergunta. Nunca tinha pensado nisso. Penso que o meu ideal de vida é o de toda a gente: viver.
A supervisora soltou um risinho irónico e maldoso, como que suspeitando que Inês reinava dela:
- Pois claro… É certo que esse todos temos, mas enfim! Como lhe dizia, aqui no Parque a excelência do serviço é sinónimo de estar à altura dos sonhos dos nossos visitantes. Passo a explicar: o mundo inteiro sonha com o Parque. Esperamos estar à altura desse sonho. O nosso objectivo é fazer com que entre sonho e a visita ao Parque haja uma continuidade onírica, a visita como que um prolongamento e materialização do sonho, embora com personagens e espaços reais – o realizar dessa explosão de imagens turvas e pantanosas que é o sonho. Não sei se me faço entender… Mas como já me respondeu, a Inês também sonha não é?...
- Sim…
- Já agora, diga-me, em alguns desses sonhos, digo, sonhos agradáveis, aqueles em que como que passeia entre as estrelas, tudo são imagens e sensações de prazer, certo?
- Pressuposto, respondeu Inês;
- Portanto, e porque a Inês é, para além de uma pessoa inteligente e bem apessoada, alguém que também sonha, compreende que o espírito e o projecto do Parque não se compadecem com caras amarradas…
- Como?!, exclamou intranquila Inês, como que acordando de um transe;
- Sim, Inês, continuou a supervisora. Nós sabemos que, tendo em conta esse espírito e projecto do Parque que, de resto, era já um pré-requisito no acto de aceitação de alguém ao nosso serviço: a simpatia, o sorriso afável para o público é exigida;
- Sim, mas…
- Temos informação que a prestação da Inês neste ponto em concreto fica aquém do desejável;
- E como obtiveram essa informação, se me é permitido saber? Inquiriu Inês;
- Sabe Inês, não é suposto responder-lhe a essas perguntas, mas porque se apresentou tão prontamente na administração quando tal lhe foi solicitado, e porque, à parte esta pequena observação, tem sido uma funcionária responsável, dir-lhe-ei em primeira mão as recentes mudanças em sede de gestão dos recursos humanos. Recentemente, isto é, desde que assumiu a direcção do Parque o novo administrador, alguém mais novo, com ideias modernas, procurou-se uma nova política, mais eficiente, de gestão de recursos humanos. A partir de agora todos os nossos funcionários estão sujeitos a uma avaliação periódica mensal. Tal avaliação consiste num formulário que os nossos agentes de segurança preenchem segundo alguns critérios. Os dados recolhidos são posteriormente inseridos num sistema que se encarrega da sua gestão. Finalmente, será elaborado um gráfico com a evolução da prestação do trabalhador, assim como será atribuída uma nota. Como é óbvio, não lhe posso revelar o que quer que seja acerca dos nossos critérios, mas posso garantir-lhe que dois deles são o sorriso e a alegria demonstrados. A Inês deve-se apresentar mais alegre. Sabe, é importante para a nossa política…
- Está bem, respondeu Inês,
- Já não desceu pelo elevador, mas por um belo balão cor-de-rosa prostrado à janela do castelo.


Dias cinzentos


Apesar da multiplicidade de cores e de sons emitidos à vez pela vida que pulula no Parque: gente feliz, funcionários contentes e castelos imponentes, não parece que as condições atmosféricas se queiram curvar à felicidade humana. Os dias parecem sempre cinzentos, e o tão desejado sol esconde-se, ora tímida, ora teimosamente, por detrás de uma nuvem escura. A natureza persiste no seu capricho e indiferença.
O balão de Inês poisou justamente junto de uma enorme roda onde se apinhava uma multidão. Por entre essa multidão destacava-se, pelo seu volume e altura, uma figura de peluche. Um ratinho, que ora pegava as crianças no colo, ora tirava fotos com os seus progenitores, adultos tornados crianças. Logo corria para alguém mais caricato por entre a multidão, interagindo, provocando a risada por entre o público.
Aproveitando o que restava do seu intervalo, Inês caminhou em direcção a um pequeno compartimento, bem discreto, no rés-do.chão de um dos edifícios da avenida central. Aí já se encontrava o ratinho, em descanso. Chamava-se Juha. Não é certo que esse fosse o seu nome, embora fosse conhecido assim em todo o Parque. Provinha de um qualquer país africano. Atravessara parte do mediterrâneo num caiaque fretado com mais de quarenta seus compatriotas. Uma outra parte atravessou-a a nado, evitando assim o comité de boas-vindas há muito organizado e estabelecido neste país para os cidadãos da sua origem. Uma vez em terra, Juha deambulara por uma conhecida cidade mediterrânica, pedindo esmola e roubando o que podia. Impressionados com o seu aspecto bovino, que contrastava fortemente com os seus enormes olhos aguados e amarelos, em muito assemelhados aos de um cachorrinho abandonado e pontapeado por todos os transeuntes, os patrões de ocasião empregavam-no em tarefas duras, a maior parte das vezes a troco apenas de comida, já que o dinheiro, esse, não tem dono. Um dia descobriu o Parque e uma alma caridosa procedeu à sua legalização. Desde então, Juha vivia do seu magro rendimento no Parque. Vivia sozinho e sem qualquer perspectiva de um dia regressar ao seu país de origem.
Na pequena sala, Juha fumava um cigarro ainda com a parte superior do peluche (que constituía a cabeça do ratinho) pendendo dos seus ombros.
- Olá Juha,
- Olá boneca
- Como vai isso?
- Ça va…
- Já fizeste muitos amigos hoje? Ironizou Inês,
- Não preciso de fazer amigos… respondeu Juha entre risos. Toda a gente é minha amiga desde que nasci.
- Deveras?! Uau… que sorte que tu tens!
Nesta altura da conversa, Inês reparou numa pequena ferida que Juha tinha numa das maçãs do rosto. Era realmente pequena, mas via-se claramente que era fresca e gotejava mesmo umas gotículas de sangue.
- O que é isso que tens na cara Juha? perguntou Inês;
- O quê? Isto? Perguntou Juha colocando bruscamente o dedo sobre a ferida;
- Sim, isso…
- É uma ferida muito antiga. Tenho-a desde que me lembro de ser gente…
- Mas como é isso possível? Como pode ser uma ferida assim tão antiga, se continua a sangrar?
- Bom, acontece…às vezes sangra…
- Deves estar a gozar comigo. Se isso fosse verdade há muito tinhas morrido com uma hemorragia… mesmo se são apenas pequenas gotículas de sangue… Como é possível que nunca tenha cicatrizado?
- Não! Não estou a brincar! É assim tão difícil acreditar que existem feridas que nunca cicatrizam? Por vezes o sangue estanca durante uns tempos, mas quando penso que vai sarar logo o sangue volta a correr. Primeiro em pequenas gotículas espaçadas no tempo para depois crescerem em volume e intensidade. Com o tempo a gente habitua-se. Já ouviste falar num senhor que disse que o maldito ser-humano habitua-se a tudo? Pois como não se havia de habituar a umas pequenas gotículas?
- Tens razão, Juha! Habituamo-nos a tudo… Ás vezes penso que morreria de desgosto se não fosse e não tivesse aquilo que sonhei para mim. As coisas foram acontecendo, e quando dei por mim… já não havia nada. Retiram-nos até o mais básico e singelo dos sonhos e, no entanto, continuamos a viver… Continuamos a sonhar… só já não sei se ainda estamos vivos ou apenas num sono sem sonhos.
- Pois… sono sem sonhos…
A conversa continuou mais uns minutos, o tempo de acabar o cigarro. Juha voltou a encapuçar a cabeça do ratinho e voltou ao trabalho com Inês. Entretanto, o céu continuava cinzento e ameaçava chuva.


Afinal é um palhaço!
Já regressada ao trabalho, conduzindo um grupo de turistas, Inês deparou-se com um amontoado de crianças que soltava gritinhos e palmas. Ao centro destacava-se um palhaço. Será possível? Um palhaço? Mas nos Parque não existem palhaços… existem ratinhos, cachorrinhos, periquitos e cowboys, mas não palhaços. Seria algum trapaceiro ou algum freelancer em busca de rendimento extra? Teria entrado no Parque com farda civil, ter-se-ia infiltrado com a roupa de palhaço escondida, ter-se-ia vestido e maquilhado rapidamente para ganhar os seus próprios trocos. É uma questão de tempo até ser descoberto.
À parte de ser, muito provavelmente (e excluindo ainda a possibilidade do Parque admitir palhaços ao seu serviço), um palhaço impostor, o seu aspecto em nada diferia de um palhaço qualquer. Encontrava-se trajado com roupas largas, de um vermelho, verde, amarelo e roxo berrantes, sapatos castanhos enormes, a cara pintada de branco com um enorme sorriso desenhado. Os olhos prolongavam-se artificialmente num desenho que acrescentava algumas lágrimas. O nariz era uma bola vermelha. Fazia pequenas figuras com balões: cabritos, flores, cães, etc. Inês parou no meio da multidão e observou mais algumas das suas façanhas. Quando este terminou seguiu-o cautelosamente. Viu que ele se escondera numa casa-de-banho. Intrepidamente, Inês entrou na casa-de-banho masculina e viu, numa das repartições, os sapatos enormes do palhaço. Não resistiu e empurrou a porta. Era Pablo.

Enquanto a noite não cai

-Ah, és tu, disse Pablo,
- Pablo ! Que pensas que estás a fazer ? Porque estavas vestido assim ? Que vem a ser isto? Não sabes que não são permitidos palhaços no Parque?
- Sei,
- Então?!
- Bem, qualquer parque precisa de palhaços. Antigamente precisavam de os contratar. Agora, como podes ver, já os há voluntários.
- Bem vejo,
Nisto, ouviram que mais alguém entrava na casa-de-banho. Pablo puxou Inês com força para si e fechou a porta do compartimento. Neste acto, Inês encostou instintivamente a cabeça ao seu peito.
- Faz pouco barulho, antes que nos descubram, disse Pablo.
- Isto é uma loucura Pablo! Se nos descobrem eu sou, no mínimo, despedida, e tu vais preso, com toda a certeza! Sussurrou Inês.
Dito isto, Pablo agarrou o seu pescoço com ambas as mãos e beijou-a, ainda com os lábios pintados da máscara. Inês não ofereceu resistência. Era um fulgor de pensamentos que não diziam nada, gestos que falavam, toques apaixonados, gritos mudos. Se se ouvisse alguma vez naquele aperto mudo que leva em si todo o sentido que as coisas possam ter, dir-se-ia, beija-me, e que a tua saliva seja como um ácido que escorre no meu interior, que apaga todas essas memórias sujas do mundo.
- Será uma questão de tempo até os descobrirem, Pablo,
- Sim, eu sei… já não estamos em tempo de palhaços.
Entretanto a noite caía.