terça-feira, 28 de dezembro de 2010

II - O circo chegou à aldeia

Que cores são essas que se alongam pelo céu? Que barulho é esse que se espalha a toda a aldeia? O circo chegou, a aldeia é pequena mas nem por isso se pode dizer que não se fala de outra coisa. Os espectáculos são poucos, a televisão tem dois canais, a missa é de frequência obrigatória e o circo... o circo, só atrai as crianças...
Durante a semana, os miúdos tinham organizado algumas visitas informais ao espaço onde se encontra acampado o circo. Diziam que havia ursos. Bem, fui ver os ursos, mas quando lá cheguei a criatura que se me deparou era mais magra e menos peluda do que o meu cão! Atiramos algumas côdeas de pão ao pobre do bicho que as perseguia atarantado, tal era a fome que pairava por aqueles lados. Havia também um macaquinho ao qual os camaradas circenses davam o carinhoso nome de "chêta". O desgraçado mordia as grades com desespero cada vez que nos via, engolindo sem mastigar os pequenos pedaços de pão que lhe atirávamos. O urso rugia e abanava o atrelado, furioso e ciumento da popularidade do seu compincha! "-Olha lá os bichos Venâncio!", dizia um dos circenses para outro. "-Se vejo um destes fedelhos a atirar pedras aos bichos dou-lhes um tareia que nem sabem onde se metem!" Olhamos receosos e pensamos em ver aquela fauna em acção no Domingo.
Estamos nos anos noventa, e noventa por cento da população na região dedica-se à indústria. Em terra de operários não há muitos divertimentos, excepto aquelas historietas que vão passando de boca em boca, do fulano que anda com fulana, os cortes na casaca, os maridos que batem nas mulheres, as santinhas que fazem milagres, os bruxos e bruxas e endireitas cujo conhecimento da anotomia humana espanta todos os que a ele se dirigem. As raparigas casam aos dezanove anos com o primeiro namorado, que quando tem a "caça assegurada" só quer partir para outra, mas elas não querem porque é pecado e porque as cuscuvilheiras da vila vão comentar o caso, e porque nenhuma moça que se preze quer ser comentada ou ser como a fruta da feira que todos apalpam mas nenhum leva. As mais jeitosas vão mantendo a auto-estima em alta, mas os anos vão passando e as ondas crescem à sua volta como na ermida de S. Simião, e cercam-lhe as ondas e que grandes são...
O Domingo chegou para pôr cobro à nossa ânsia. Estamos a caminho da tenda, antes um campo abandonado, agora palco de proezas que nos vão deixar estonteados. Começamos por ver uma estranha fumaça ao longe, próximo do local da bicharada. Intrigamo-nos com aquilo. À medida que nos aproximávamos, víamos que o fumo provinha de algo vivo que se abanava em movimentos uniformes. Essa espécie de turbina castanha balançava-se ao ritmo da música pimba que saía dos holofotes. Quando chegamos suficientemente perto do local para ver do que se tratava, vimos que a turbina castanha era o ursito magro que ensaiva um desajeitados pulos, sucedâneos de uma espécie de dança certamente aprendida "a toque de caixa". Estranhei quando distingui claramente as costelas salientes no lombo do urso. Um rapazito vestido de palhaço de olhar triste na entrada da tenda suja dá as boas vindas aos recém-chegados com um aceno de mão mecânico tão forçado que dá pena. Entramos. As bancadas do circo rangem por todos os lados, dando a impressão que se vão despenhar a qualquer momento. Sentamos-nos, para desgraça nossa, tarde demais, junto de um funcionário da escola, o que nosso entender deveria senão impedir pelo menos limitar as nossas expansões. Começa o espectáculo. Uma senhora de meia-idade anuncia o início das hostilidades e apercebemo-nos que isso está para acontecer e o nosso coração dá três pulos de alegria. Entra o trapezista com corridas para trás e para diante, joga com um cone, dois, três quatro, tudo ao mesmo tempo. A criançada rejubila, o artista corre para trás e para diante. O número mais arriscado é anunciado pela apresentadora: "- E agora, o nosso trapezista Paquito vai tentar o seu número arríscadíssimo em conjunto com a sua filha: a pequena Natasha! Para realizar este número o nosso artista conta com um colchão, um belo colchão de paralelos!!" Quando acaba de dizer paralelos, a anunciadora desata uma gargalhada enigmática e triunfal, como se fôssemos testemunhas de algo inédito, que por grande sorte, para nossa grande sorte de campónios, estivessemos no ponto de ser brindados com a primeira vez em que um grande trapezista de longa carreira arrisca a sua vida. Correu bem, o levantamento da pequena Natasha para o trapézio, mesmo com a mão magoada de Paquito. Má sorte, a gargalhada da senhora acabaria por se tornar profetizadora. Logo de seguida, o nosso Paquito volta às habilidades em chão firme - o equilibrismo de pratos, mas eis que enquanto corre de uma fila a outra cai com o seu corpo no "colchão de paralelos" em grande estrondo soltando um grito lancinante. Todos nos levantamos e gememos como se partilhássemos da estupefacção e dor de Paquito, que quase heroicamente se levanta e continua o número com sacrifício visível.
A apresentadora entrou de novo e desculpou-se pelo sucedido e irrompeu com um inesperado périplo sobre a perigosa vida de artista e anunciou a vinda dos palhaços. Os palhaços entraram, pobres, com pouco jeito, um mais velhote que faria o papel de palhaço "sério", outro mais novo e já com olhos de bêbado, que faria o papel de palhaço sem-juízo. Mal tinham acabado as primeiras piadas do género: "-Lembras-te quando os teus pais casaram? Lembro!", o sistema de som falhou. Os palhaços olham um para o outro, olham para a apresentadora, olham para o público. Ninguém compreende o que se passa. A apresentadora ausenta-se um pouco e em breve está de volta em frente do público. Anuncia uma falha técnica no sistema de som do circo. Pede o silêncio geral do público para o a performance, já que agora os comediantes terão que actuar sem microfones e adverte os espectadores, quiçá inutilmente, que devido ao problema de som os estes poderão não compreender uma série de piadas. Acaba-se o espectáculo dos palhaços de forma tão desastrada que o público parece com vontade de chorar em vez de rir. Segue-se um novo número, um número com animais selvagens, anúncia a apresentadora. Entra um domador que mais parece arrumador (embora não existissem na altura) que coloca uma tábua entre dois barris. Entra o urso/cão, o pobrezito de costelas à vista, que para além de dançarino parece que também é trapezista. Sobe para um dos barris, o domador bate com uma vara e o urso começa a travessia. A habilidade do urso parece tão ridícula aos presentes, mormente quando recobra forças para uma nova passeata, que um dos espectadores solta: "-É bem mandado, esse caralho!" O resto do público solta uma risada geral. Termina-se, sem deixar saudade, o número do urso esfaimado. Entra o número dos animais domesticados: os cães - disputam um acirrado jogo de bola arbitrados por um tipo vestido de fato-macaco azul. Os canitos lá começam a partida, ora hesitando, ora correndo atabalhoadamente, ora ganindo, o árbitro lá os vai conduzindo. Subitamente, sem que ninguém o esperasse, sobretudo de cães com um aspecto tão frágil e maltratado, começam uma terrível briga entre si, forçando o árbitro a distribuir pontapés a torto e a direito. Não tinha ainda terminado a briga quando uma porca (ou porco) de dimensões consideráveis (parecia o único animal correctamente alimentado naquele circo) corre pela arena levando os cães a direito na sua fuga furiosa. O treinador tenta impedir a porca, lançando-se de braços abertos para o animal, que guina para o lado. Aqui o público solta pela primeira vez uma gargalhada poderosa e sincera. Nós os miúdos, até ali um pouco tolhidos pela presença intimidante do funcionário, perdemos todo o nosso escrúpulo quando vimos o nosso algoz completamente extasiado, ainda mais extasiado do que a porca. Dois outros circenses acorrem ao local e conseguem enxotar a porca a pontapé para a saída da arena. Ficamos sem saber se tinha sido capturada ou não. Número seguinte: a cantoria! Um menina com os seus dez anos entra na arena para cantar "a Cinderela", de Carlos Paião. Sobranceiro aos seus lindos cabelos, ostenta um portentoso olhos negro, sobre o qual interrogamos o funcionário: "-Sr. Chico, será que a menina caiu?", perguntamos; "-Elas é que lhe devem ter caído!", responde com uma gargalhada o pândego do funcionário. Faltava ainda a actuação do homem de ferro, que pelos vistos era a principal atracção daquela noite, a julgar pela ordem cronológica dos performers. Um jovem dos seus vinte anos entra na arena já em tronco-nú. Um lacaio de serviço dá-lhe algumas vergastadas no lombo para comprovar a sua robustez aos presentes. Ficam apenas as marcas da vergasta nas costas do jovem, e quiçá se não o acompanharão para ao resto da sua vida? Parte algumas garrafas de vinho e deita-se em cima, naquilo a que a apresentadora chamava orgulhosamente de "O Colchão". Quando se levanta, traz ainda alguns vidros colados às costas, sacudidos pelo capataz. As marcas da vergasta permanecem.
Continuam as trapalhadas até que o circo dá, finalmente, por encerrada a sessão. Olhamos uns para os outros com um ar triste e contido. Passamos pela cela onde novamente pontificam o urso/cão e o macaco "Chêta". Os circenses levantam a tenda no dia seguinte e ninguém mais os vê pela terra . Mais tarde, correria um rumor pela aldeia que o homem de ferro namorou durante essa semana um rapariga da terra, e que chegou mesmo a ligar-lhe algumas vezes.

sábado, 25 de dezembro de 2010

I - Um Homem Bom

João Silva é aquilo a que podemos chamar “Um Homem Bom”. Tem 45 anos, uma família (uma bela esposa, dois filhos inteligentes, uma casa, um cão), uma casa de duas assoalhadas e um carro de classe média. Na linha daquilo que tem sido nos dias de hoje uma raridade, João tem também um emprego. O seu emprego é bem pago e permite-lhe cobrir quase todas as despesas com a casa e a família. Recentemente começou a encetar esforços sérios para escrever de acordo com o novo acordo ortográfico.
Certa vez, em conversa com os seus amigos, alguém suscitou o caso de João ter aquilo a que se chama um emprego estranho. Digamos que seu emprego consiste em nada menos do que entrar numa sala (bastante limpa), sentar – se numa cadeira de madeira e carregar num botão. Alguém mais sagaz do grupo teve a curiosidade de lhe perguntar o que fazia em concreto. “Como em concreto? Carrego no botão e já está! É sobretudo um trabalho de paciência. Devo repetir o gesto de hora a hora, pelo que o controlo rigoroso do tempo é essencial! Reconheço que de início custa um pouco, isto é, torna-se um pouco monótono, mas com o tempo a gente habitua-se.” Um outro elemento do grupo, o qual poderíamos chamar de “o maledicente”, sorriu, como não poderia deixar de ser, com maledicência, e acrescentou: “Ok! Já percebemos isso! Mas queremos saber em concreto para que serve o que fazes. Os seus efeitos, compreendes? O que é que se produz?” João sorriu nervoso e respondeu que não sabia. Que se limita a carregar no botão. Depois, em jeito de justificação, teceu graves considerações sobre a especialização do trabalho, a informatização, a terciarização da economia de que o século XXI é o expoente máximo. Falou ainda na hiper-especialização e na informatização e na mudança do valor do trabalho. Quando terminou, poder-se-ia dizer, sem exagero, que todos estavam razoavelmente esclarecidos.
Dirigia-se para casa e reflectia sobre aquilo que havia pouco tinha dito. Não tinha pensado nisso nunca e sentia-se mesmo tentado a comentar o caso com a esposa, que foi o que fez.
O único comentário tecido pelo cônjuge ao recente problema existencial do marido não o satisfez. Limitou-se a dizer: “Cada um sabe de si e Deus sabe de todos!”. Com a esposa não se pode comentar o caso, parece líquido.
No dia seguinte voltou ao trabalho convencido daquilo que fazia. Daí que não surpreenda a segurança e convicção com que premiu o botão na primeira hora do dia. Mas dêem ao homem tempo e motivo e acabará por viajar aos quatro cantos da terra sem sair do quarto. Em boa verdade, o seu trabalho também se prestava a reflexões, já que não exigia muito de si. Para que fosse correctamente cumprido, bastava ter uma mão (já que uma chegava), dito de outra forma, uma mão com dedos (admitindo que se pode ser legítimo possuidor de uma mão sem dedos) e, sobretudo, a pontualidade de um britânico.
Na segunda hora, depois de ter premido pela segunda vez o botão, o bichito que tinha surgido no dia anterior depois da fatídica conversa, ganhou-se ares e cresceu a olhos vistos. Foi então que o nosso bom homem tomou uma das decisões mais arrojadas da sua história pessoal contemporânea : ainda antes do almoço interrogaria o seu Imediato sobre a questão. Foi o que fez. De início, o Imediato franziu a testa, notando-se algumas rugas jovens de quem não tem por hábito franzir a testa. A sinfonia de expressões inclui ainda um encolher de ombros, um levantamento de mãos e uma contorção de lábios, como que antecedendo a resposta de que não, que não sabia. João perguntou-lhe se poderia interrogar alguém potencialmente sabedor da resposta. O Imediato franziu novamente a testa, embora desta vez, à rugazita da perplexidade se tenha junto uma outra (como que renascida) a que poderemos chamar a ruga do medo. João compreendeu a situação, pois apesar de tudo é um homem perspicaz.
Há horas que maldizemos e que se nos afiguram determinantes, e esse hora maldita em que alguém colocou a felicidade de João em cheque parecia ter mudado o nosso bom-homem. A esposa queixou-se da sua atitude, que classificava de “estranha” e “apática”, dois adjectivos que bem poderiam ter sido proferidos pelo seu círculo de amigos mais próximo. Não era, porém, apatia que nascia na face do nosso homem, mas um certo tipo de curiosidade, quiçá, aquele tipo de curiosidade tão perigoso que tanto sofrimento espalhou ao longo da história.
Os dias de trabalho seguintes foram penosos para o nosso herói. Já não avançava com o dedo com aquela determinação que o antes o caracterizava, mas vacilava, hesitava, tremia com o dedo, chegando mesmo a padecer de ligeiros atrasos no cumprimento do seu dever periódico. Inspeccionava com o olhar, e tão só com o olhar, o espaço circundante ao botão, a parede asséptica que o abraçava e que parecia engolir todo o espaço envolvente, a cidade, a alma. Perguntava-se o que haveria para além da parede aparentemente inviolável. Começara a reparar no edifício onde trabalhava, um colosso de vidro e de metal e procurava pensar onde acabaria o edifício reproduzido em toda a cidade, envolto e pequenos casulos, envolvendo tudo.
Um dia resolveu ir um pouco mais longe. Aproveitara o fim-de-semana para inspeccionar o local, e qual não foi a sua felicidade quando encontrou uma fissura nas traseiras do prédio. Tratava-se de um pequeno rectângulo por onde era evacuado o lixo que se produzia no interior. Tendo penetrado no seu interior, João foi vencendo os sucessivos obstáculos que se lhe deparavam com o seu cartão de identificação, que ao contrário do que pensava lhe permitia a entrada em praticamente todas as repartições. O labirinto de corredores inexpressivos começava a desesperar João. Apenas distinguiu do resto da paisagem uma pequena passagem onde entrou sem dificuldade. Do outro lado da parece de cartão parecia surgir um gemido, mal confundido com o som monótono de um motor de um aparelho electrónico. Talvez o silêncio que reinava lhe permitisse distinguir esse som nunca antes revelado. Além disso, será que mais ninguém o ouvira? Saiu.
A condição psicológica de João detiorou-se a olhos vistos nos próximos dias. Os seus sintomas convergiam numa espécie de vertigens que se acentuavam quando caminhava ou nos momentos de cansaço extremo. As horas passadas no trabalho eram penosas. As vertigens voltavam ciclicamente, soando-lhe no ouvido o grito ou gemido indecifrável que ouvira na véspera. Ponderou desistir do emprego, mas o forno não estava para empadas. A situação do mercado de trabalho era lamentável e não parecia vir a melhorar num futuro próximo. Quem pagaria as despesas?
Embora se resignasse à sua função, isso não impediu que um dia perguntasse ao Imediato de onde viria esse gemido que não lhe largava ou ouvidos, e se mais ninguém o ouvira, e porque seria assim, e o que estaria do outro lado do botão. Um momento após pensava friamente a sua condição, vacilava um pouco e premia o botão.

Ciclo de Histórias

A vida é feita de equilíbrios impossíveis.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Os cães

Um dia saí de casa para voltar. Descia o elevador e premia o botão de todos os dias, o que me leva ao rés-do-chão. Passava pelas ruas de sempre e via os prédios em estilo arquitectónico cretino. Sabia que um dia me iam engolir, a mim e à minha vida. Fiz as minhas tarefas rotineiras (e, confesso, encontrei aí algum prazer). Diz a ciência moderna que o cérebro procura a rotina para evitar o stress. Depois pensei em chá e em água com gás, e que os bebem abundantemente na Europa de Leste e na Ásia (quiçá como lenitivo da fome?). Voltava para casa. No verão, era ainda de dia quando isso acontecia. No inverno, acendiam-se já os primeiros candeeiros de iluminação pública. Depois pensava que Marx e Engels tinham já candeeiros de iluminação pública no seu tempo. Talvez sonhasse com Marx e Engels atirando pequenas pedras aos candeeiros em noites ébrias. Quando chegava à porta de casa, dois cães açaimados (por quem?) ladravam-me. Estranho! São de boa raça. Que estranho que dois cães de boa raça me ladrem, talvez intimidados pela minha estatura? Depois pensei em pernas e braços e beleza. Olhei pela janela e uns olhitos azuis troçavam de mim. Esperei mais um pouco e vi os cães de boa raça ladrar a uma criança negra, que corria espavorida, salva à última da hora por um benemérito mecânico miraculosamente perto do sucedido - "Calma! Calma!! Não mordem", diz apaziguador.
No dia seguinte, enquanto fazia o jantar e pensava na extinção dos corais da Polinésia, ouvi os cães ladrar a uma senhora com uma criança ao colo. Percebi que dizia (ou chamava) alguma coisa. Um jovem dos seus dezoito anos, boné, estatura baixa e cabelo ralo, chamava-os e fazia-lhes festas. Mais uma destas e ligo para o canil, pensei. Qual o sentido, pergunta-se, de haver cães e senhora e vida, se nada parece fazer diferença? Porque é que sombra dos seus rabos se estende cada vez mais, invadindo as varandas na ténue luz da noite, cada vez que se afastam?
Talvez o compreenda, se numa numa dessas noites precoces de Inverno me dirigir a casa e vir duas sombras no quarteirão anterior ao meu. Pode ser que veja cães junto à minha porta (ou, quem sabe, dois lobos?) e estes avancem para mim em silêncio. Com um pouco mais de sorte, talvez veja ainda um terceiro desconhecido junto à porta, uivando.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Na pressa dos jornais

Na pressa dos jornais, encontro alarve,
Palavras salteadas, rimas rebuscadas,
Edições originais, títulos sensacionais,
Letras de imprensa a saltar,
Desgosto, alegria pl'o ar
Papel gasto pl'as mãos,
Gosto de cortesãos,
Misérias que tudo apagam,
Mudos que somem
Estrelas que falham,
Máquinas raivosas,
De sangue humano ciosas
Tudo! Tudo... sombras funestas
Ocultam o teu rosto,
Na noite camuflada, à luz do dia
Nunca pululada de alegria,
Mas que sonho então, que sentido
Me traz assaz e me leva a sós comigo?

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Por um final feliz

Vivia num apartamento de merda na periferia há vários anos, por falta de dinheiro, falta de trabalho, falta de vontade, falta de tudo, enfim…! Os meus colegas de redacção olhavam para mim com um ar de comiseração, de quem já nada se espera, como aquele aluno medíocre que falha todas as lições e nem os professores lhe perguntam o que quer que seja, apenas o deixam andar, por ali… Não por que fossem mais ricos, bem sucedidos ou bem mais qualquer coisa, mas porque é apenas esse o sentimento que o pobre pode despertar no pobre. As notícias sensacionalistas despertavam a avidez dos bravos. A concorrência dos jornais gratuitos (que publicam lixo e mais lixo) dera a estocada final na nossa redacção. Os patrocinadores, esses, começaram por retirar paulatinamente os seus fundos, os mais recentes primeiro, seguidos sem grande delonga pelos mais fieis anunciantes “– É a crise!”, diziam eles; crise que, no entanto, não os impedia de publicar num qualquer jornal gratuito para ler no metro em vinte, dez ou cinco minutos. “-É o tempo que vivemos!”, diz o Sr. Gedeão, director do jornal. As pessoas não estão para perder tempo a ler coisas maçudas! Querem coisas simples! Notícias que entrem pelos olhos adentro.” Notícias?! Não! Factos!” O Sr. Gedeão é um humanista. Melhor dizendo, é um neo-humanista, mas de um humanismo tão aberto, onde cabe qualquer manifestação, digamos… humana? A terrível inexistência de factos que se vem sentindo desde há uns anos para cá provocou uma súbita avidez por notícias. No início, dizia o Sr. Gedeão, a imprensa retirava as pessoas da ignorância e do obscurantismo. Todos devem saber ler! Nem que seja apenas para ler jornais. As pessoas devem estar informadas sobre o que se passa no mundo. Porque não haveria de suscitar tanto interesse a queda de um prédio em construção na esquina, como o tufão que assola as margens do pacífico? É a natureza em toda a sua força! O público avaliza com os seus votos, diga-se, compras, as tiragens dos jornais mórbidos. Pois sim, diria o Sr. Gedeão, pois é a natureza do ser humano conhecer a faceta mais sombria da sua própria existência. Quando os passatempos e as anedotas começaram a encher as páginas dos jornais, disse o Sr. Gedeão, é o lazer que enobrece a alma do Ser-Humano. Pois se a dignidade do mercado editorial se reflectir em vendas, tanto melhor! São duas cajadadas de um só coelho!
Por decisão do conselho editorial, o Sr. Gedeão inaugurou uma nova rubrica no nosso jornal: o obituário. Embora este ocupe já as páginas de vários jornais, o que o conselho editorial pretende é inovar. Assim algo ao estilo inglês, disse o Sr. Gedeão. Algo com pinta! O Conselho editorial estabeleceu contactos com a conservatória, que fornece os óbitos, sendo que, só no primeiro dia em que coloquei mãos à obra, recebi duas listas repletas de nomes. Na ausência de qualquer critério para a publicação do obituário, resolvi começar por escolher os nomes mais catitas, assim aqueles nomes estrangeiros esquisitos. Comecei por este:
“ João Francisco Ribeiro Kanh
Faleceu no dia 26/07/2010 o Sr. João Francisco Ribeiro Kahn. O finado, cuja cessação de funções vitais em tudo roçou a santidade, encerrou definitivamente as pálpebras para as fugazes imagens mundanas na sequência de uma doença prolongada. A coragem com que enfrentou a traiçoeira maleita a todos impressionou, sendo a sua luta contra a força aniquiladora da natureza um exemplo para quantos os que tiveram o privilégio de privar com o falecido. A solene cerimónia fúnebre realiza-se hoje, pelas catorze horas, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa”.

Mal acabara de realizar esta primeira obra, apoderava-se de mim uma sensação de vazio, algo oco, um lapso de imaginação. Supus que ninguém lia todos os obituários, assumindo que estes apenas interessam ao circulo de familiares, amigos e conhecidos do falecido. Tanto melhor… Tanto melhor…

Tentei um segundo:
“ Carolina José da Costa Arromanches
A luz do dia viu hoje apartada dos seus raios uma das suas mais belas participações. O solo que abraça esta nossa pátria ficou mais pobre com o desaparecimento de uma das mais queridas filhas. A ilustre falecida, brutalmente privada das suas funções vitais na sequência de um terrível acidente de viação, em tudo pautou a sua conduta para melhor sorte. Deus chama para junto de si aqueles que mais ama, e dito isto o seu nome será sempre lembrado com saudade pelos seus amigos e familiares, que tão desoladamente anunciam a sua cerimónia fúnebre para hoje, às dezassete horas, no Cemitério dos Prazeres, Lisboa.

A minha sensação de cansaço agravou-se consideravelmente com o passar dos dias. As fontes abrasam, não conseguindo mesmo voltar a cabeça para onde quer que seja. Quando me tento levantar, uma terrível náusea martela o lopo frontal.

Entretanto, e talvez para bem da minha saúde, a minha carreira como escritor de obituários seria curta. Dois meses depois de iniciar funções nesta nova rubrica, o jornal encerrou definitivamente as portas, deixando para trás, não apenas todos os seus funcionários numa situação delicada do ponto de vista laboral, como também uma legião de credores. Decretado o processo de insolvência, o edifico onde funcionava a redacção viria a ser vendido em hasta pública por meia dúzia de tostões, poucos, - demasiado poucos - para a avidez dos credores insatisfeitos.
Chegara ao último acto da minha tragédia pessoal, de onde só o pathos ressaltaria, sem catharsis, sem catharsis… Se pudesse denominar esta fase da minha vida chamar-lhe-ia de “Fase da vertigem”. Pois sentia-me como das alturas de um precipício, ao colocar os meus dados biográficos num cv, na rigidez das datas e das palavras. Um medo animal percorria todo o meu corpo. Enviei o meu cv para tudo quanto era sítio, num assomo de loucura mitigada pela bondade, enviei os meus dados para as ONG’s e imaginava-me já, um derrotado material elevado ao mais alto nível espiritual. Imaginava os pretinhos apinhados à minha volta a puxar-me as calças e a camisa e chamar-me papá, titi e sussurrar-me: “o branco é bom! O branco é gentil! O branco é bonito!” Eram sonhos belos e todos eles bons, e mesmo a morte (que raramente ocorre nos sonhos) me parecia agradável numa estepe africana, com uma girafa como pano de fundo.

Encontraria novamente um emprego como redactor, mas desta feita de uma forma bem mais original. Fui colocado numa empresa onde tive de prestar testemunho das minhas qualidades, assim como jurar fidelidade ao patrão. Fosse pela minha inexperiência no sector empresarial, fosse pela minha natureza destemida (nesta fase estava muito desprendido), estranhava que cada vez que um dos subalternos pronunciava o “P” de patrão, um ligeiro tique nervoso se lhes desenhava na testa, tendo mesmo visto um deles franzir o olho num horror espasmódico quando me guiou pelos corredores assépticos do edifício. O meu Cicerone, depois de aberta a porta e anunciado em voz alta o meu nome, desapareceu novamente na primeira porta que encontrou. Quanto ao patrão, parecia um porreiro. Isto apenas veio acentuar a sensação de incompreensão que experimentei quando fui confrontado com o nervoso miudinho dos subalternos. Estava sossegado, nem as pernas me tremiam embora me assolasse uma terrível dúvida: qual o título pelo qual o devia tratar o bom do meu patrão: Dr., Engº, Arqº, - nunca um reles Sr. Em caso nenhum, um ordinário “você”. Pois um homem com um ar tão distinto nunca contentaria toda a sua responsabilidade com um simples Sr. Era alto, espadaúdo, pescoço delgado mas não magro, coroado por um belo crânio de ossatura germânica. Senti-me esmagado ao ter a honra de ser abordado por um Adónis daquela natureza, um Hércules dos tempos modernos, um príncipe da nova ordem. Quase de imediato me começou a tratar por “tu”, numa familiaridade que me provocou pele de galinha. Fez-me várias perguntas, sempre de forma surpreendentemente afável, às quais respondi com uma modéstia e sinceridade calculadas, como sempre foi do meu jeito. As minhas funções seriam nada menos do que escrever “menções honrosas”, “cartas de incentivo” e “cartazes alusivos” aos trabalhadores da empresa. Para os incentivar, rematou o meu Adónis.

Comecei por trabalhar no ranking da empresa.

Esta era, bem vistas as coisas, a minha primeira experiência no meio empresarial, encontrando-me a encabeçar um verdadeiro Ministério da Propaganda. Sabia que a minha anterior carreira na redacção não seria desprezada. Acredito que quando verdadeiramente nos esforçamos, lá encontramos a sociedade para nos recompensar com a sua mão invisível.
Por sugestão do meu patrão, o primeiro galardoado com o título de “Funcionário do Mês” foi o homem do talho. Eis como me desembaracei na tarefa:

“Joaquim, o homem do Talho
Quem não se habituou já ao tinir das facas?
A este nome pelas manhãs, tardes e noites?
Ele assegura a melhor qualidade de serviço, aliada a uma simpatia insuperável.
A firmeza inabalável com que destrinça ossos e cartilagens tem-nos deixado
a todos de boca aberta. Seja este um exemplo para todos nós – camaradas desta empresa, sempre a melhorar…”

Não me ocorria melhor final para esta pequena menção honrosa. Matutei por diversas vezes num final mas nada me ocorreu. Apenas melhorar, melhorar… Entretanto, e talvez por ter ficado agradado com o que lera, o nosso patrão encarregara-me de uma nova tarefa. Consistia em procurar, através de uma base de dados, todos os trabalhadores da nossa empresa e respectivos laços de parentesco com os restantes elementos da empresa. Mediante uma pesquisa por apelido, não foi muito difícil encontrar. Em nenhum momento foi feita qualquer referência à finalidade de tal projecto. A ideia desta procura intrigara-me ao ponto de remoer um bichinho dentro da cabeça que se foi tornando maior à medida que as horas passavam. Quando me encontrava já deitado e preparado para dormir, o bichinho era já um gigante. Ordens são ordens, e de momento é esta a informação de que disponho.
Confesso que andava numa inquietação enorme, pois não é todos os dias que se dá uma responsabilidade destas a alguém com a sua auto-estima nas ruas da amargura. O meu patrão confia em mim. O meu patrão é bom e eu serei seu servo para sempre. Juro! Juro que nunca trairei a sua confiança, e nem só o medo me poderia ter tornado tão subserviente. Aqui na empresa encontrei um lar. Encontrei pessoas que me sabem valorizar pelas minhas capacidade – todos sabem distinguir claramente o seu lugar no mundo, - e aquelas ideias nefelibatas que colocaram sonhos de mundos perfeitos nas cabeças dos homens, como os da igualdade, fraternidade e liberdade, encontram aqui o seu irrefutável NÃO. Estamos no domínio privado, e no domínio privado cada qual faz o que bem lhe apetece. Por tal sorte, um recém-admitido numa categoria profissional inferior à minha sabe qual a posição dos olhos quando se cruza comigo…

Foi-se o Verão e Chegou o triste Outono. O furor inicial que sentira quando entrei na empresa esvai-se como nas folhas em suave cadência das árvores. Quem diria que um dia voltarão a nascer…? O meu estado não diagnosticado de hipocondríaco agrava-se, e de um momento para outro as pessoas parecem que saem da terra e dão pulos de alegria como cabritos ensandecidos. Eu sei, eu sei… Eles são bons, e se por vezes os invejo ou os acho presunçosos, sei perfeitamente que tais sentimentos apenas são transmitidos pela minha própria presunção. Porque sei tudo isto e muito mais, a minha cabeça tem dormido bem sobre o travesseiro.

Mas as coisas aqui na empresa mudam de forma muito mais rápida do que o tempo. Toda a gente tem que jogar para a estatística, e essa mesma estatística é a fonte onde vou beber. O meu patrão tem andado nervoso… Pelo menos, noto que o seu ar jovial se vai esvanecendo, e os músculos tão elásticos que vira adornando a sua face na primeira vez vão-se tornando rijos. O seu olhar decidido vai-se tornando vago, os gestos cheios de vigor flácidos e vazios. Perguntou-me pela lista há uns dias atrás. Disse-lhe que estava pronta. Respondeu-me - -“Óptimo! Óptimo”, mas o seu olhar desalentado permanecia”. Então e o resto como vai? – Perguntou-me, bem… bem… Óptimo! Óptimo! Coitado do meu patrão. Não aguentarei o peso da vergonha se um dia o vier a desiludir. È daquelas pessoas que merece toda a confiança do mundo. É para isto que existimos afinal.

Os meus comparsas esfriaram repentinamente as suas relações comigo. Não percebo porquê, se há bem pouco tempo se mostravam tão solícitos. Consegui apanhar alguns fragmentos de conversas em que se dizia “lista”, “lista”, “lista”, e penso, penso, penso. O meu colega de repartição, o Semedo, mostra também uma certa frieza no seu trato comigo. Penso… Penso… Ahhh! O mesmo medo animal de há uns meses atrás invade-me, congela-me os ossos e impede-me a concentração no que quer que seja.

Continuei a coligir alguns dos textos que havia escrito há umas semanas. A sua publicação faria parte de uma cerimónia de entrega de prémios que ocorreria na semana seguinte. Seriam seleccionados os melhores trabalhadores da empresa para receber os respectivos prémios. Li em voz alta as condecorações para ter a certeza de como soavam em público. Este dia traz-nos algo de especial, …, em boa verdade, …, os nossos mais queridos préstimos enquanto funcionários…., a satisfação e melhoria permanente, …, o prémio, …, a melhor, …, empresa, …, lista, …, medo, …, medo, …, medo…

No dia seguinte, por entre o meu olhar desconfiado em várias direcções, corri para o pé do patrão logo que tive oportunidade para isso. O seu ar afável (uma afabilidade mais suspeita do que nunca) colocou-me num grande estado nervoso. Não tive alternativa senão de me prostrar a seus pés e dizer num arrebatamento piedoso: Juro! Juro! Juro! Que nunca farei mais nada de mal…, sabe, …, a lista, a lista! Todos os que pareciam alheados dos acontecimentos se levantaram, mostrando-se ainda mais solícitos do que os que prestavam maior atenção ao desenrolar da situação. O patrão, visivelmente embaraçado com o que se passava, chamou-me à parte ao gabinete. –“ Que se passa consigo, Artur?” “-Você está bem?”. Sim, estou, tenho apenas andado um pouco cansado… Nada de especial… “-Sabe o que você precisa Artur?”, e quando assim disse o meu crânio caído levantou-se como que esgotando a minha última reserva de vigor, à semelhança do que deve sentir o condenado à morte quando se lhe diz que afinal existe uma oportunidade de viver. Equilíbrio. Equilíbrio? Sim equilíbrio! O patrão estendeu a sua mão direita bem à frente da minha cara como os cinco dedos afastados. Ia nomeando, a vida constitui-se pelos seguintes elementos: Amor, Dinheiro, Saúde, Amigos, Família. Tal como Hipócrates definia o são equilíbrio pelo nivelamento dos bons e maus humores que escorrem nos fluidos humanos, a felicidade encontra-se no equilíbrio destes cinco elementos. De seguida, pegou numa caneta e num papel e desenhou:



Amor Dinheiro


Vida
Família



Saúde Amigos

Continuou, percebe Artur, se conseguir o equilíbrio perfeito entre estes elementos tudo lhe será garantido. Aconselho-o ainda a comprar o GPS da vida. GPS da vida? Sim, por intermédio de um complexo sistema de compatibilidades entre conceitos, consegue-lhe fornecer, numa base de optimização e racionalização, as melhores opções para cada um destes aspectos . Sirva de exemplo: Algum problema que tenha com a sua família: basta inserir as premissas do problema que o GPS fornece-lhe a resposta mais adequada com base num cálculo de probabilidades.

Cheguei a casa, e sentia-me de facto mais leve depois desta conversa com o chefe. Voltei a pôr mãos ao trabalho e escrever os textos que já há algum tempo se encontravam suspensos por falta de imaginação, o tradicional problema com os remates de textos. Escrevo, Escrevo e não encontro o final. Já nada dura até à morte… reticências, parêntesis, sem finais felizes…, …, lista…, medo, …, medo….

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

António foi peremptório - IV

Houve um dia em que toda a gente se fartou do rei. Nem se percebe porque o vinham aguentando desde há tanto tempo. As pessoas são pacientes aqui no reino de Nestum, e a vida foi construída para os fortes. Durante algum tempo achou-se alguma piada aos fracos e doentes. As senhoras deitavam-lhes as mãos pelas costas e cobriam-lhes o regaço, com pena. Pelo menos tinham essa função, a de alguém ter pena deles. Um dia fartaram-se deles e enviaram-nos para o campo pastar. Ainda antes disso, inventavam toda uma série de expedientes manhosos para se ver livres deles. Trocavam o nome das coisas: “-Vamos enviar os doentinhos para o campo, porque lá ó ar é mais puro”, diziam. Aproveitavam-se os que ainda sabiam jogar à bola, onde residiu a minha salvação. Era daqueles que chutava com os dois pés, de peito, cabeça, etc. Enviaram-me para outro sítio onde podia ser compreendido pelas minhas qualidades futebolísticas. Por mim, tudo bem… Pelo menos já não tinha que gramar com velhotas a espingardar, ou servir de reposteiro nas cerimónias. Por vezes eram simpáticas, as velhotas. Diziam, “-Olha que moço bonito e alto!” Passavam-me a mão no pêlo e nos tomates e eu ficava contente, embora ainda não tivesse ainda chegado àquela idade quando só queremos que nos passem a mão no pêlo e nos tomates. De resto, era também um tempo em que era encornado, e sabia-o bem e por quem! À semelhança da minha pessoa, todos eram encornados e não pareciam muito afectados por isso, afinal, já não estamos em tempo de soberanias. De hoje em diante, todos devem estar preparados para ser cornos, porque os cornos, mesmo sendo cornos (e ninguém o pode negar) passam por um belo chapéu se forem bem enfeitados. Ao mesmo tempo via gente que se dizia realista e lúcida, que me chamava constantemente a atenção para a minha cornadura e diziam: “- Porque não fazes nada, meu? Vai ter com ela parte-lhe a cara! As contas que tens a acertar não são com o gajo que a anda a comer, porque esse faz o trabalho dele, e se a como é porque ela deixa”. Dizia que sim, que sim, que sim. Davas duas voltas ao bilhar grande e voltava à mesma indiferença. Soavam-me as palavras irónicas de Dostoievsky: “A traição é um acto de protesto da feminilidade oprimida! Eu, marido responsável, não só devo aceitar esse protesto como, se for preciso, arranjar um amante à minha mulher. Não há nada como os russos para abstracções.
Até que chegou o dia em que conheci Patrícia, lá no campo. Tinha os seus trinta e poucos e um porte de dama romana, terrível e sensual. Era daquelas pessoas cheias de vitalidade, mas de uma vitalidade maldosa. A maldade e o apetite sexual pareciam ser o seu único móvel, o seu Demiurgo e a sua razão de ser. Cair nas mãos de Patrícia era desastroso por duas razões: se caíssemos nas suas más graças, seria capaz de nos arrasar pelo motivo mais fútil. Se o contexto de proporcionasse (e se tivesse garantias quanto à sua impunidade), seria capaz de torturar e matar sem o mínimo remorso. A sua lógica era dominar e o seu prazer máximo o poder absoluto. A segunda razão para a temermos era a sua pujança sexual. Percorreria também todo o alfabeto latino conosco: sodomizatio, fellacio, cunnilinguis, e talvez nos amasse por isso, situação que é sempre de temer.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

III – Trivialidades

Foi por acaso que à chegada encontrei o meu amigo F na primeira esquina da avenida principal. F surpreendeu-me com uma série de perguntas para as quais parecia ter resposta, ou melhor, as perguntas eram de tal forma insondáveis à percepção do comum mortal que a resposta parecia residir unicamente ali: em F. F, a grande resposta, o da visão acutilante, atavismo do guerreiro que em tempos de paz afoga as mágoas no álcool, a pobre camponesa que na cidade perdeu o rosadinho das faces, isto, aquilo e mais aquilo, isto, isto e mais aquilo. Falou-me dos progressos da ciência e de como esta resvala paradoxalmente para o ocultismo, ciência e ocultismo, pois, porque a ciência sem a fé é cega, é cega, percebes? Fala-me das montanhas de vidro e de aço e de personagens e de cortes e de austeridade e de cintos que apertam e fronteiras que alargam e culpa! Meu Deus, a culpa...Se te calasses F, falar-te-ia de uma aldeia, uma olaria, um rio. Falar-te-ia de casas de louça, festas populares, vinhos a escorropichar da pipa, carne a assar, fé, porque não, mas não a grande fé, apenas a pequena, essa pequena fé de cada um que resolve os pequenos problemas do dia-a-dia: essa que cura as dores de costas, a que alivia as dores de dentes, que ajuda a vizinha a tirar a carta de condução. Falar-te-ia no bêbado da aldeia ( como os há em todas as terras que conheço), no padre que apela à abstinência (até da masturbação, vejam lá!), o solteirão e solteirona do sítio, e vá-se lá saber as razões porque nunca casaram. Depois, se fores um bom menino, F, e te calares um pouco, falar-te-ia das moças bonitas da aldeia e digo-te, meu amigo, que ainda que o não pareça são muito mais arrojadas do que as da cidade. Verias as motas e o seu soar estridente, os bois, o cheiro a estrume, as velhinhas, as mulheres bigodudas, as mal e bem casadas, a chegada dos imigrantes em Agosto, os sapatos de domingo brilhantes de verniz, a meia branca a contrastar, os rebuçados embrulhados em papel vegetal, as discotecas de domingo à tarde, os banhos no lago da aldeia, os amores de verão, esses, eternamente desavindos e eternamente desfeitos e refeitos. Falar-te-ia de todas essas coisas. Essa história interminável sem passado e sem futuro. Invejo a ignorância com que se passa pelas coisas, a magia com que todas as desgraças do mundo passam como leves brisas nos rostos inexpressivos. Tanto faz, rei ou presidente, que a bolsa desça, suba, rodopie, e a minha opinião do mundo fosse sempre essa, o lado histórico que une os crentes e acólitos. Descansa que será um dia essa mesma história que nos julgará a todos, sábios e tolos, na vala comum das datas e factos. O esquecimento. Amantes da mesma mulher, quiçá, o limbo dos apaixonados de onde apenas podemos sussurrar: sabes, querida, o que fazemos aqui, andamos praí, na luta. Somos sempre os mesmos e a causa também não inova, juntos, aqui, na luta. Seria melhor que nos cuspissem e insultassem na rua, esses ilustres desconhecidos, ou então violassem a nossa amada diante dos nossos olhos, ou nos sentássemos no comboio para a Ilha de Malmequer onde cultivaríamos o sorriso das revistas côr-de-rosa, ou o sorriso dos meninos esfomeados do Haiiti depois de uma bela refeição. Poderíamos visitar o Haiti, por acaso, o clima é bom. Se afinal o Bom Deus nos desse sol e praia e miúdas descascadas toda esta confusão tornar-se-ia clara como água. Pode ser que o estado nos ponha todos a passear, nós, os eternamente jovens, os resistentes, hein? Cerejeira fez um bom trabalho, apenas em vez de prostrarmos o joelho vaidoso na missa de domingo alardeamos títulos e prémios e coisas, coisas e coisas.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

II- Um dia à volta das horas

A nossa carruagem segue mais rápida do que o tempo. É com prazer que vejo os meus camaradas de viagem esperançosos. Cresce-lhes na face um estranha luz cada vez que se lhes fala em ouro. Alguns começam já a fazer discursos pomposos ( os que são dotados do dom da eloquência, é claro), mas tratando-se de ouro, até o mais embrutecido dos viajantes se lhes dá para sonhar. E é vê-los deleitados a olhar pela janela, fazendo discursos sobre as aplicações financeiras do ouro, a própria possibilidade remota de ouro é já em si um factor de riqueza. Aguçam a razão prática e lembram as velhas lições dos professores universitários. Como o púlpito é injusto, diriam alguns, que se ao mais brilhante pensador enleva o discurso, ao mais modesto fá-lo parecer ainda mais ridículo.
Leandro, um dos meus afortunados amigos, fala na filosofia do ouro. Diz que a apetência humana para o ouro é uma dádiva da própria natureza, e quem ousa contrariar a natureza, hein? Mais vale deixá-la fluir, como os diversos rios que desaguam no mar infinito, como se a felicidade humana fosse essa eterna viagem.
Recesvindo, mais prático, fala na melhoria contínua do ouro, um processo que exige a habilidosa mão humana, a vontade de um escultor que faz nascer da rocha inerte a arte e sabedoria. Mas essa não é uma arte livre, por assim dizer. Antes segue uma ordem muito peculiar que deve ser imperiosamente seguida.
Proculeiano fala da filosofia do ouro, uma vertente reconhecida recentemente que se identifica com uma certa inclinação para a filosofia analítica, a que a própria matéria em questão induz. Conhecem-se-lhe raciocínios do género < O ouro é Dourado/Nada mais existe que o ouro/ Nada mais existe que o ouro dourado. >
Martinho fala da aplicação casuística a que o a filosofia do ouro nos leva, ou melhor, o seu alcance prático. Há várias semanas que ninguém lhe tira da boca a fórmula “Eu não faço juízos de valor!”. Ainda se desconhece até que extremos levará este princípio.
Pangeu, o poeta, aproveitando os poucos momentos de sossego espiritual dos comparsas, recitou-lhes um poema:
“Não se leva ouro da vida,
Nem amores nem nada,
Mas apenas o que damos fica
Para uma nova alvorada.”
Geneceu, o chefe de facto, irrompeu agressivo:
“- Mas o que quer dizer essa merda?”
“-Não sabes, Geneceu?”
-“Não faço ideia!”
-“ Não compreendes, filho-da puta?”

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Minas de Ouro

I- A estepe infinita
Todos se apinham no comboio à hora de trabalhar. O sol está hoje está mais ameno do que o costume, talvez porque o astro-rei se enternecesse com as coisas cá de baixo. Afinal, já vivemos num pais tropical, este recanto do sul da Europa onde já passearam ursos, e já temos sol, bandidos, já só nos faltam as gajas boas para que este seja um paraíso tropical. Há duas cosias que não compreendo na vida: uma delas são os comboios, esse meio de transporte obsoleto ainda me espanta pelo temor que inspira, mas agora vagueiam sós, só com mercadoria, partem em direcção a determinados destinos e depois regressam pelo trilho oposto. Regressarão ainda hoje, esta manhã solarenga em que o menino não pára de puxara a sotaina do padre. Coitadinho, tem sono, ou talvez só porque é pequenino, o menino. A sua mãe aperaltou-o para a chegada do rei de Portugal, afinal não é todos os dias em que o rei faz anos nem que nos visita um rei estrangeiro. Dizem que é rei de Portugal, o safado, um grande país encostado ao Atlântico, dizem os sabedores que é impossível atravessar os montes Hermínios em direcção a ocidente sem esbarrar com esse grande país. O seu rei D. João V dos Braganças vem cheio de ouro e boas promessas. Parece que descobriu ouro e escravos e pau preto numa das suas províncias, às quais só se chega depois de atravessar um enorme lago. Trouxe um elefante ( parece que em Portugal há muitos) para que sua santidade visse, mas não se sabe se o animal vai sobreviver. O caminho é longo e desde Aníbal, o cartaginês que ninguém tenta uma proeza semelhante. Vem e espalha ouro, o safado do rei, bondoso com o nosso pobre povo, alimentado anos e anos a fio com sermões de missa, promessas vãs, luzes fugazes de folgazana financeira ou sexual, repito, a minha vida, luzes efémeras de fartura económica e sexual mas... no fim e bem analisadas as coisas, um magnífico, um olímpico falhanço. Talvez a vinda do rei de Portugal não seja mais uma dessas efemérides para bobos e traga realmente algo de bom e permanente, afinal o homem espalha ouro pelas ruas, e até os empedernidos funcionários públicos, com calo no rabo das horas sentados, voz rouca de reclamar e das greves, dedos amarelas das sucessivas gerações de beatas que lhe passaram pelos dedos, se tentam safar o melhor que podem com uns sorrisos amarelos. Digo que este espécimen nunca achará por exagerado o que se lhe der. O seu afinco e rigor metódico, a sua atenção ao pormenor são sempre de louvar, principalmente nos dias de hoje em que o pormenor é tão importante. Ah... o pormenor. Porque será que o Luís XIV quer ter controlo até do mais ínfimo regulamento que saia de terras gaulesas? Porque é assim que a ordem natural das coisas se nos apresenta, Deus também não descurou o pormenor. Foi isso que pensei um dia destes em que se me deu para admirar a rara beleza exótica de uma menina cigana que se me prostrou em frente. Era essa beleza inexplicável do pormenor que fez de Estaline um homem grande, e que me fez reparar na minha primeira namorada de escola, isto é, aquela a quem primeiro dei um beijo molhado, os que nos fazem descobrir a maravilha da química já em fase de consciência semi-adulta, já que a primeira grande experiência química foi o nosso contacto primordial com o oxigénio, esse momento em que saímos da noite dos tempos e respiramos pela primeira vez, banhados em placenta, em líquido de placenta, em sangue e em merda. Essa minha primeira namorada tinha um estranho menear de ancas, um menear de ancas que é sempre igual, independentemente do estilo musical que o DJ submete ao seu capricho. Esse menear de ancas meneava também o meu pensamento e idealizava o dia em que poria as mãos nessas ancas, que acerta altura me pareciam de plástico. Agarrava o meu copo de sumo barato com toda a força e um dia lá ganhei coragem, e as ancas passaram-se a menear dentro dos limites apertados da minhas mãos.... até que um dia inexplicavelmente essas ancas menearam-se pelas pistas de dança de todo o mundo e passei novamente a apertar copos de sumo de todo o mundo.

Quando o rei de Portugal torneou o arco do trunfo, os miseráveis que se encontravam nas redondezas, cujas peles pareciam penduradas nos ossos, gritaram quase em uníssono: <- Vamos para Portugal, onde o ouro nasce das pedras!>, e respondemos todos <-lá vamos nós para Portugal, o pais onde o ouro nasce das pedras>, e chegamos à primeira estação de comboio que encontramos e perguntamos: <- Quando é que parte o trem para Portugal, esse pais onde o ouro nasce das pedras>; e o maquinista respondeu: <- O próximo parte já de enfiada para Portugal, esse magnífico pais onde o ouro nasce das pedras>. E fomos.
A certa altura da viagem, eu e os meu comparsas perguntamos: <-Quando chegamos a Portugal, esse magnífico país onde o ouro nasce das pedras?>, -, ao que o maquinista respondeu <- Não o alcançam os meus olhos>, , < Não vejo terras de Espanha, areias de Portugal, vejo sete espadas nuas, todas para te matar>. Então eu e os meus comparsas começamos a pensar em alguma sorte de auto-organização. O primeiro dos meus valorosos que assomou da porta do maquinista chamamos-lhe “Ministério da Informação e do Entretenimento”, pois para além de transmitir as novas que vinham da cabine do maquinista fazia equilibrismo com as garrafas de tinto no nariz. Ao colega encarregado de vigiar o bom sono dos seus camaradas chamamos-lhe “Ministério da Administração Interna”, ao colega encarregado do ócio chamamos-lhe “Ministério do ócio”, embora houvesse quem lhe chamasse “Clark Gable”. Quando já nada havia a fazer olhávamos pela janela a pensar na morte da burra, ou a contemplar o espectáculo curioso da vida animal, os carros de matrículas tão diferentes que se apressavam no caminho em direcção à linha de horizonte da estepe. Quando até esse hobby terminava, batíamos punhetas colectivas e saltávamos na primeira estação. A primeira estação em que descemos chamava-se Tajiquistão. Perguntamos a uma senhora onde estávamos e ela disse: <-Tajiquistão>, <-O que existe além das árvores>, A senhora emudeceu e passei a informação ao Ministério da Informação: <-Minas de Ouro rapazes! Minas de Ouro!...>.