segunda-feira, 31 de maio de 2010

Minas de Ouro

I- A estepe infinita
Todos se apinham no comboio à hora de trabalhar. O sol está hoje está mais ameno do que o costume, talvez porque o astro-rei se enternecesse com as coisas cá de baixo. Afinal, já vivemos num pais tropical, este recanto do sul da Europa onde já passearam ursos, e já temos sol, bandidos, já só nos faltam as gajas boas para que este seja um paraíso tropical. Há duas cosias que não compreendo na vida: uma delas são os comboios, esse meio de transporte obsoleto ainda me espanta pelo temor que inspira, mas agora vagueiam sós, só com mercadoria, partem em direcção a determinados destinos e depois regressam pelo trilho oposto. Regressarão ainda hoje, esta manhã solarenga em que o menino não pára de puxara a sotaina do padre. Coitadinho, tem sono, ou talvez só porque é pequenino, o menino. A sua mãe aperaltou-o para a chegada do rei de Portugal, afinal não é todos os dias em que o rei faz anos nem que nos visita um rei estrangeiro. Dizem que é rei de Portugal, o safado, um grande país encostado ao Atlântico, dizem os sabedores que é impossível atravessar os montes Hermínios em direcção a ocidente sem esbarrar com esse grande país. O seu rei D. João V dos Braganças vem cheio de ouro e boas promessas. Parece que descobriu ouro e escravos e pau preto numa das suas províncias, às quais só se chega depois de atravessar um enorme lago. Trouxe um elefante ( parece que em Portugal há muitos) para que sua santidade visse, mas não se sabe se o animal vai sobreviver. O caminho é longo e desde Aníbal, o cartaginês que ninguém tenta uma proeza semelhante. Vem e espalha ouro, o safado do rei, bondoso com o nosso pobre povo, alimentado anos e anos a fio com sermões de missa, promessas vãs, luzes fugazes de folgazana financeira ou sexual, repito, a minha vida, luzes efémeras de fartura económica e sexual mas... no fim e bem analisadas as coisas, um magnífico, um olímpico falhanço. Talvez a vinda do rei de Portugal não seja mais uma dessas efemérides para bobos e traga realmente algo de bom e permanente, afinal o homem espalha ouro pelas ruas, e até os empedernidos funcionários públicos, com calo no rabo das horas sentados, voz rouca de reclamar e das greves, dedos amarelas das sucessivas gerações de beatas que lhe passaram pelos dedos, se tentam safar o melhor que podem com uns sorrisos amarelos. Digo que este espécimen nunca achará por exagerado o que se lhe der. O seu afinco e rigor metódico, a sua atenção ao pormenor são sempre de louvar, principalmente nos dias de hoje em que o pormenor é tão importante. Ah... o pormenor. Porque será que o Luís XIV quer ter controlo até do mais ínfimo regulamento que saia de terras gaulesas? Porque é assim que a ordem natural das coisas se nos apresenta, Deus também não descurou o pormenor. Foi isso que pensei um dia destes em que se me deu para admirar a rara beleza exótica de uma menina cigana que se me prostrou em frente. Era essa beleza inexplicável do pormenor que fez de Estaline um homem grande, e que me fez reparar na minha primeira namorada de escola, isto é, aquela a quem primeiro dei um beijo molhado, os que nos fazem descobrir a maravilha da química já em fase de consciência semi-adulta, já que a primeira grande experiência química foi o nosso contacto primordial com o oxigénio, esse momento em que saímos da noite dos tempos e respiramos pela primeira vez, banhados em placenta, em líquido de placenta, em sangue e em merda. Essa minha primeira namorada tinha um estranho menear de ancas, um menear de ancas que é sempre igual, independentemente do estilo musical que o DJ submete ao seu capricho. Esse menear de ancas meneava também o meu pensamento e idealizava o dia em que poria as mãos nessas ancas, que acerta altura me pareciam de plástico. Agarrava o meu copo de sumo barato com toda a força e um dia lá ganhei coragem, e as ancas passaram-se a menear dentro dos limites apertados da minhas mãos.... até que um dia inexplicavelmente essas ancas menearam-se pelas pistas de dança de todo o mundo e passei novamente a apertar copos de sumo de todo o mundo.

Quando o rei de Portugal torneou o arco do trunfo, os miseráveis que se encontravam nas redondezas, cujas peles pareciam penduradas nos ossos, gritaram quase em uníssono: <- Vamos para Portugal, onde o ouro nasce das pedras!>, e respondemos todos <-lá vamos nós para Portugal, o pais onde o ouro nasce das pedras>, e chegamos à primeira estação de comboio que encontramos e perguntamos: <- Quando é que parte o trem para Portugal, esse pais onde o ouro nasce das pedras>; e o maquinista respondeu: <- O próximo parte já de enfiada para Portugal, esse magnífico pais onde o ouro nasce das pedras>. E fomos.
A certa altura da viagem, eu e os meu comparsas perguntamos: <-Quando chegamos a Portugal, esse magnífico país onde o ouro nasce das pedras?>, -, ao que o maquinista respondeu <- Não o alcançam os meus olhos>, , < Não vejo terras de Espanha, areias de Portugal, vejo sete espadas nuas, todas para te matar>. Então eu e os meus comparsas começamos a pensar em alguma sorte de auto-organização. O primeiro dos meus valorosos que assomou da porta do maquinista chamamos-lhe “Ministério da Informação e do Entretenimento”, pois para além de transmitir as novas que vinham da cabine do maquinista fazia equilibrismo com as garrafas de tinto no nariz. Ao colega encarregado de vigiar o bom sono dos seus camaradas chamamos-lhe “Ministério da Administração Interna”, ao colega encarregado do ócio chamamos-lhe “Ministério do ócio”, embora houvesse quem lhe chamasse “Clark Gable”. Quando já nada havia a fazer olhávamos pela janela a pensar na morte da burra, ou a contemplar o espectáculo curioso da vida animal, os carros de matrículas tão diferentes que se apressavam no caminho em direcção à linha de horizonte da estepe. Quando até esse hobby terminava, batíamos punhetas colectivas e saltávamos na primeira estação. A primeira estação em que descemos chamava-se Tajiquistão. Perguntamos a uma senhora onde estávamos e ela disse: <-Tajiquistão>, <-O que existe além das árvores>, A senhora emudeceu e passei a informação ao Ministério da Informação: <-Minas de Ouro rapazes! Minas de Ouro!...>.

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