sexta-feira, 4 de junho de 2010

II- Um dia à volta das horas

A nossa carruagem segue mais rápida do que o tempo. É com prazer que vejo os meus camaradas de viagem esperançosos. Cresce-lhes na face um estranha luz cada vez que se lhes fala em ouro. Alguns começam já a fazer discursos pomposos ( os que são dotados do dom da eloquência, é claro), mas tratando-se de ouro, até o mais embrutecido dos viajantes se lhes dá para sonhar. E é vê-los deleitados a olhar pela janela, fazendo discursos sobre as aplicações financeiras do ouro, a própria possibilidade remota de ouro é já em si um factor de riqueza. Aguçam a razão prática e lembram as velhas lições dos professores universitários. Como o púlpito é injusto, diriam alguns, que se ao mais brilhante pensador enleva o discurso, ao mais modesto fá-lo parecer ainda mais ridículo.
Leandro, um dos meus afortunados amigos, fala na filosofia do ouro. Diz que a apetência humana para o ouro é uma dádiva da própria natureza, e quem ousa contrariar a natureza, hein? Mais vale deixá-la fluir, como os diversos rios que desaguam no mar infinito, como se a felicidade humana fosse essa eterna viagem.
Recesvindo, mais prático, fala na melhoria contínua do ouro, um processo que exige a habilidosa mão humana, a vontade de um escultor que faz nascer da rocha inerte a arte e sabedoria. Mas essa não é uma arte livre, por assim dizer. Antes segue uma ordem muito peculiar que deve ser imperiosamente seguida.
Proculeiano fala da filosofia do ouro, uma vertente reconhecida recentemente que se identifica com uma certa inclinação para a filosofia analítica, a que a própria matéria em questão induz. Conhecem-se-lhe raciocínios do género < O ouro é Dourado/Nada mais existe que o ouro/ Nada mais existe que o ouro dourado. >
Martinho fala da aplicação casuística a que o a filosofia do ouro nos leva, ou melhor, o seu alcance prático. Há várias semanas que ninguém lhe tira da boca a fórmula “Eu não faço juízos de valor!”. Ainda se desconhece até que extremos levará este princípio.
Pangeu, o poeta, aproveitando os poucos momentos de sossego espiritual dos comparsas, recitou-lhes um poema:
“Não se leva ouro da vida,
Nem amores nem nada,
Mas apenas o que damos fica
Para uma nova alvorada.”
Geneceu, o chefe de facto, irrompeu agressivo:
“- Mas o que quer dizer essa merda?”
“-Não sabes, Geneceu?”
-“Não faço ideia!”
-“ Não compreendes, filho-da puta?”

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