quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Sois todos culpados (ou o monólogo articulado de um subalterno)

1- Um dia destes dei por mim ao espelho a fazer caretas. A mesma de sempre…
O meu nome é José Oliveira. Nasci há 34 anos numa província portuguesa. Nasci e cresci na aldeia a caldos de couve. Um dia fui à escola. Não era propriamente um wunderkind, mas lá fazia as minhas continhas e cópias com a aprovação resignada da professora. Os coleguinhas troçavam de mim. Diziam que eu trocava os olhos. Era um facto. Ainda o é. Chamavam-me o “Troca-Olhos”. Não fazia caso.
2- O meu corpo cresceu ao som do vento primaveril da aldeia. Sei que tinha a paz interior que gostava e tanto precisava, embora não soubesse que se tratava de paz interior nem que precisava. Há coisas assim. Com tanta crueldade me tiraram à paz da aldeia e me levaram para uma Escola Secundária. Lá fui eu peregrinando… O meu intelecto infantil não conheceu grande desenvolvimento, tirando um ou outro salto qualitativo nas equações matemáticas. Mas eu gostava mesmo é das letras! Delirava com as anedotas do Bocage. Viria a saber que ele também escreveu poemas, alguns deles até eróticos!
3- Um dia entrei na universidade. A minha escolha recaiu nada menos que no curso de Língua e Literatura Portuguesa. Talvez um dia viesse a encontrar novamente o meu Bocage, aí no segundo ou terceiro ano.
Foi aí que ganhei o gosto do carrascão e pela escrita em articulado. É tão chique! Uma vez vi uma peça processual na sequência de um desacato com um compincha que me levou à barra do tribunal. Era chique! Desde então passei a escrever em articulado. Porque não podia eu escrever um dia uma grande peça literária em articulado? Sempre me disseram que o que interessa é ser lido. Sem dúvida que o articulado convida à leitura. Lembro-me bem da vontade que senti quando vi as minhas primeiras grandes expressões a serpentear por entre o meu articulado: “de tal maneira que”, “uma vez que”, “de fonte segura”. Daí até umas metáforazitas foi um salto de anão! Um dia levei uns escritozitos a um concurso lá da faculdade. Oh! Malditas sejam todas as horas em que a gente decide submeter a nossa face a certas violências, herança genética e honrada por gerações e gerações. Traços de feições consolidados por uma prática reiterada com consciência da sua obrigatoriedade… Disseram-me que não! Que não era possível escrever poemas em articulado. Foi assim que três burocratas privaram as futuras gerações portuguesas de verdadeiras pérolas de literatura. Da literatura de sempre, da que existia, existe e existirá. Nunca me esquecerei, como as minhas metáforas ardentes caíram naqueles olhos como uma gota de água cristalina em poço seco. Não restou nada…

4- Não obstante este desaire, resolvi deixar aqui alguns exemplos da minha magnus opus para a posteridade. Para vocês, meus queridos leitores:

O Sol que arde
1- O Sol que arde, nasce para todos;
2- Ninguém o nega. É um facto;
3- O Sol ilumina com base em pequenas explosões;
4- Mas graças às explosões temos luz;
5- A Luz que ilumina, ricos e pobres;
6- E essa Luz é de todos
7- É um bem comum.
8- E TU (aqui refiro-me à minha amada)
9 – És a minha Luz;
10- Mas não és de todos, és só minha;
11- Meu Sol e minha Luz!

Não sei se repararam mas nas palavras Sol e Luz usei propositadamente maiúsculas para dotar essas entidades de personalidade própria, tal como a minha amada. Não que eu tivesse já uma amada nesses tempos intelectual e sentimentalmente conturbados, mas é sabido que é uma mal necessário. Não existe ao cimo da Terra um único grande poeta sem uma Musa, Também eu precisava de uma. Claro que essas necessidades sexuais básicas de que fala a psicologia popular masculina não se compadece com Dulcineias de Toboso, é sabido. Sim, é sabido que até os grandes homens têm necessidades sexuais, mas não acredito que a sua inspiração divina tenha descendido directamente desses casos furtivos e carnais.

5- Nunca compreendi as mulheres. Não sei se as mulheres foram feitas para se compreender. Durante esta minha breve passagem pelos meandros académicos, forçoso era colorir o meu dia-a-dia com os encantos das cores femininas. Pensei durante muito tempo que estas eram perfeitamente dispensáveis (excepto como Musas, partindo do princípio que as musas são mulheres, é claro!), mas rapidamente se me afigurou impossível a existência sem o odor suave de uma fragrância feminina. De resto, são incontáveis as vantagens quando comparadas com as desvantagens. Quem nos afagará o peito depois de mais uma dessas pequenas derrotas dessa violência da vida? Quem restará para nos colocar os louros sobre a cabeça depois de mais uma vitória? Parece óbvio! Mas descobri também que o caminho que a senda feminina traça é tortuoso e, por vezes, ingrato. Primeiro de tudo, não é novidade nenhuma que as mulheres pensam de forma diferente de nós outros, homens. Em segundo lugar, nós, homens, vivemos oprimidos com a beleza feminina conjugada com uma constante tensão sexual. Não que as mulheres também não sintam tensão sexual, mas o caso é diferente. A nossa é acutilante e opressora, empurra-nos para os subterrâneos do inconsciente e obriga-nos a aventuras perigosas. Muitas vezes até, o risco físico é iminente. Acreditem no que vos digo…
6- Seguindo o fio à meada, declaro aqui que tive três namoradas durante a minha passagem pela faculdade de letras. Não fiquei com nenhuma, embora nunca tivesse posto completamente de parte a hipótese de qualquer uma delas vir a ser a felizarda onde um homem como eu, educado, poeta, inteligente, fosse depositar todo esse amor reprimido que a vida nos impõe.
Estabeleci padrões com base nestas minhas frutuosas experiências. Baseei-me na bipartição oitocentista da mulher literária: a Mulher Anjo e a Mulher Demónio. A Mulher Anjo seria aquela que, criada em ambientes pacatos, provém de origens preferencialmente humildes e com uma educação moderadamente esmerada. A Mulher Anjo ouve-nos até ao fim com uma orelhinha impávida, um olhar sereno e uma postura calma. Quando chega a sua vez de falar, não se exalta nem diz palavrões. Não constrói frases longas nem pensamentos complexos. Em geral, não abusa da primeira pessoa do singular. Quando chega a hora dos prazeres mundanos, cede-nos o seu sexo de forma passiva e resignada e alinha nas brincadeiras ao ritmo da nossa imaginação.
Já a Mulher Demónio é qualquer coisa diversa. A sua forma de vestir não segue os padrões ditados pela moda ou, se os segue, perverte-os e aporca-os de forma insolente mas atractiva. A sua mente repousa numa miscelânea de ideias alheias e coladas, frases feitas do pensamento de vanguarda, isso do pós-pós modernismo. Porque leu mais do que as outras, ou pura simplesmente porque acredita na superioridade natural do seu livre-pensamento, a Mulher Demónio olha-nos com um olhar inflamado e irrompe na nossa percepção com uma ousadia inusitada. Em termos e sexo, a Mulher Demónio não se esmera por nos agradar e, ao contrário do outro tipo que acabei de vos falar, acredita piamente que possui um clítoris. Em palavras simples, fá-lo por prazer e segue o seu próprio ritmo e apetites. Quase invariavelmente, depois de uma experiência sexual com este espécime saímos exaustos. Não as podemos deixar sem o seu orgasmozito (sob pena de uma humilhação constante em conversas futuras e as consequências daí advenientes para a nossa reputação e auto-estima). Amiúde, não se contentam com um prazer moderado mas também não alinham nas cenas porno que povoam o nosso imaginário sexual. Em suma, é difícil agradar à Mulher Demónio. A Mulher Demónio existe para os dias maus. Com a Mulher Demónio não se casa. A Mulher Demónio não se leva ao altar.
7- Ao acabar o número anterior com a palavra “altar”, a livre associação de ideias (que apesar de tudo, a rígida forma em articulado permite) levou-me a pensar em igrejas, e quem pensa em Igrejas pensa em Deus.
Nem devia contar as peripécias que a descida íngreme no caminho da minha espiritualidade provocou, mas in nomine artis, aqui vai.
Fui criado num ambiente religioso, num país católico praticante. Na aldeia onde cresci não tinha ainda chegado o niilismo consumista das cidades. Deus foi então, para mim, um dado adquirido até à idade de dezasseis, dezassete anos.
Nunca cheguei a compreender muito bem como se esvaneceu em mim tão rapidamente o sagrado pergaminho da sagrada Fé, Cristã, Apostólica, Católica, Romana (Tantas categorias!) Talvez porque identificava Deus com a Igreja e o padre da terra como a sua fiel voz. A distância do padre da terra, assim como os comprovados crimes praticados pela Igreja Católica durante o período da Inquisição provocaram a minha descrença. Aliás, não compreendo muito bem como alguém continua crente numa determinada ideologia ou sistema que já deu provas cabais de barbárie. Quem continuará católico depois da Santa Inquisição? Quem continua comunista depois de Estaline? Quem continua nazi depois de Hitler? É difícil responder… Talvez os pontos negros da história correspondam a uma evolução natural dos sistemas e tudo tenda, no final, para a bondade. Ou então a história é apenas o que é, e uma vida perdida nunca é recuperada, as coisas nunca melhoram e a história nunca muda. Uma espécie de conspiração parmenidiana: a mudança é apenas uma aparência. A propósito disto voltarei a falar-vos mais tarde, quando estiverem já razoavelmente convencidos da tragédia da minha vida linear.

8- As minhas considerações sobre o mundo, enquanto estudante, nunca foram muito além dos solilóquios articulados que ainda há pouco testemunharam. As ideias de política, religião, sociedade, configuraram-se em mim em forma pangeânica e, confesso, por vezes, um pouco confusa.
Na política, tudo se resumia a uma série de caras e de tendências. Se pudesse exprimir isto em forma de poema fá-lo-ia assim:
1- Existe a esquerda e a direita
2- Estas tendências foram herdadas
3- Do século XVIII francês
4- A esquerda favorece os pobrezinhos
5- A direita favorece os ricos
6- Existem também os partidos de centro
7- Estes têm mais votantes
8- Entre estes, existe o centro-direita e o centro esquerda
9- O centro-esquerda tende a gostar mais dos pobrezinhos
10- Mas pisca o olho aos ricos quando é necessário
11- O centro-direita tende a gostar dos ricos
12- Mas pisca o olhos aos pobrezinhos quando é necessário

Formei ainda algumas ideias, que aliás considero originais, quanto à concepção de Estado.
Na minha opinião, o Estado tende a desaparecer. No final dos tempos será a empresa que assumirá as funções do Estado. As pequenas empresas passarão a celebrar contratos de vassalagem com a Grande Empresa, de maneira que toda a gente, de forma mais ou menos intensa, prestará vassalagem à Grande Empresa. O Estado, aquele que outrora oprimira e perseguira, ou concedera direitos e garantias, será relegado para segundo plano. A grande empresa passará a ditar toda a vida pessoal, social e profissional das pessoas. As suas actividades atingirão todos os planos e acções do indivíduo. Voltaremos à escravatura, mas de uma forma aparentemente distinta. Em lugar de nos submeter à sua vontade pela força e pelo medo, a Grande Empresa submeter-nos-á pelo prazer. Explorará os recônditos mais profundos do nosso cérebro e detectará os cromossomas responsáveis pela produção da serotonina, esse químico que nos faz sentir felizes. Prender-nos-á a todos dando-nos uma falsa sensação de liberdade. Dar-nos-á a ilusão de tudo ser possível e que tudo é possível de forma fácil. Concederá crédito e formas de pagamento facilitadas. Induzir-nos-á necessidades, controlará os meios de comunicação e provocará crises. Quando julgarmos que tudo está perdido ressurgirá com um novo método e uma nova solução. Em simultâneo reduzirá os salários. Trabalharemos todo o tempo para pagar os nossos novos prazeres.
Enfim, tudo teorias de estudante ocioso!

9- Espero que com tudo isto não pensem que sou uma espécie de revolucionário. Não sou nem nunca fui um revolucionário. Penso existir aqui toda uma carga ideológica que pretendo evitar. Não sou um idealista. Talvez o termo sonhador fosse o mais indicado para me descrever.
Sonhei muito quando era novo. Demasiado… Desde esse tempo dourado da infância, ou seja quando nasce no nosso mundo a ideia de que temos que nos tornar em algo no futuro. Aquela formosa ideia, a de ter um papel na sociedade. Não foi por falta de imaginação que a minha vida seguiu assim. Ora a bata ainda ensanguentada de um médico que acaba de assistir um paciente e o resgata às terríveis garras da morte; complacente com os educados, temido pelos invejosos, cheio de conforto em casa e o telemóvel sempre a arrebatar de mensagens das pretendentes. Ora o peito cheio e lustroso de um advogado na barra do tribunal, a parte contrária e o juiz seduzidos e vencidos pelos argumentos poderosos. Ora o dedo iluminado e ilustre de um político, reduzindo a nada os seus adversários, ciente do seu dever e de nome imortalizado. Não sei se essas pessoas são felizes, mas se não o são, razões não lhe faltam!

10- Lá continuei com a minha Faculdade e os meus escritos em articulado. Não que me faltasse o léxico, mas a certa altura reparei no carácter rarefeito das palavras. Pensei que uma palavra não diz nada daquilo que a coisa é. Enfim, uma convenção. Por exemplo, se eu digo a palavra “Coelho”, penso num animal branquinho, com patas, parecido com um gato mas comestível….
11- Enfim, a verdade é que convém não me afastar muito daquilo que levou a esta prelecção, que vos faço com tanto carinho. O que pretendo é contar-vos a história da minha vida. Uma vida banal, é certo, mas alguma vez acreditaram que a vida de uma pessoa se pode resumir a um só dia. Melhor, que não fosse um só dia, isto é, um dia especial, mas um dia banal como todos os outros dias de todo o comum mortal.
12- Como seria natural, terminei o meu curso na faculdade de letras e engrossei esse enorme rio, essa enorme massa de desempregados acabadinhos de sair da universidade. Digo, desempregados relativamente à sua área de formação, é claro. Não me alargarei muito sobre este assunto, até porque um tema prosaico de conversas de café e de intervalo como o desemprego não pode constituir objecto de uma grande obra.
Tinha chegado o momento de ganhar o meu próprio sustento, e convenci-me, cada vez mais, que as coisas do dia-a-dia são as mais importantes. O café da manhã, o gel de banho, o gel de barbear, o champô, a toalha de banho, a merenda, etc… Sabia perfeitamente que Aristóteles não teria escrito mais obras do que os anos que viveu se não tivesse patronos financiando-o, o mesmo com os grandes pintores e poetas.

13- Comecei a trabalhar nada menos que na Polícia Municipal. Colocaram-me uma farda, um cacetete e um bloco de multas na mão. A minha longa estadia nos mares convulsos do desemprego tinha baixado a minha auto-estima para níveis nunca antes visto e, quer se queira quer não, essa farda elevou consideravelmente o meu ego. Era estranho esse misto de medo, reverência e desprezo com que as pessoas me olhavam na rua. As súplicas dos autuados mais pobres, os murmúrios entredentes dos inconformados, a simpatia inusitada das senhoras de meia idade “em bom estado”.Enfim, toda uma panóplia de sensações que rapidamente se transformaram em rotina. Autuava os veículos sem bilhete de estacionamento, vigiava com olhar perscrutador o comportamento dos transeuntes, orquestrava verdadeiras emboscadas aos prevaricadores.
Quer isto dizer, quando colocavam o bilhete no veículo para um período de apenas 15 minutos e se deslocavam ao tribunal ou à conservatória, eu sabia que não iriam demorar apenas esse tempo. Eu sabia! Ninguém demora apenas quinze minutos no tribunal ou na conservatória. Era então que me escondia por detrás de uma árvore (para que o prevaricador não fosse avisado da minha presença no local), fixava a hora de expiração do bilhete e zás! Um minuto depois da hora passada lá estava eu aplicar a minha qualidade literária num desses bilhetinhos fantásticos: “ 1- O condutor utilizou abusivamente o espaço disponível para o estacionamento do veículo; 2- Sendo que o acto de estacionar não é um direito por si só, mas sim uma proibição geral; 3- Essa proibição é temporariamente desobstruída com o pagamento da devida taxa prevista nos estatutos da Câmara Municipal da nossa cidade; 4- Tendo em conta todos estes factores, aplico a sanção de ---- euros.

14- Foi em mais um desses dias impostos pela minha rigorosa rotina que descobri como odiava toda a gente. Odeio-te a ti, rapariguinha que passas vestida das cores do último grito da moda, de Milão ou de Paris ou sabe-se lá de onde! Já agora, nota-se perfeitamente que esse modelo de blusão é uma imitação barata de um outro mais caro, sim, esse da loja da esquina onde nem te atreves a entrar. Odeio-te, homenzinho gordo, baixote e careca, não só porque és gordo, baixote e careca, mas também porque palitas os dentes de forma asquerosa e mastigas qualquer coisa que nem me atrevo a adivinhar! Odeio-te, mulherzinha de meia-idade, a ti e às tuas rugas precoces precipitadas pelo crédito que pediste e não consegues pagar! Odeio-te, mocinho pimpão, e à maneira ansiosa como olhas paras as carnes apetitosas das tuas concidadãs. Se soubessem o quão vos odeio a todos, todos…! Sois escravos e ridículos! Gostava que tivesseis agora um espelho onde pudesseis ver a vossa triste figura! Pior de tudo, sois culpados, todos culpados! Quantos de vós não tomou decisões, ou tomaram-nas erradas, e por isso sois culpados! Quantos de vós não cedeu aos seus próprios instintos e falou precisamente no momento em que devia estar calado?! Agora calem-se, calem-se todos! Devem calar-se precisamente agora, no momento em que deveriam falar, porque já nada é possível! Já é tarde para tudo isso! Já tudo nasceu e morreu! Já está tudo feito, desfeito e inventado! Agora só vos falta desaparecer!

15- Ficai cientes, miseráveis, que eu, José Oliveira, na implacabilidade da minha farda e do alto do meu magistério, não vos farei desaparecer. Sim, apesar de culpados de tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá, não vos farei desaparecer. O meu desprezo pela vossa mediocridade leva-me a pensar um castigo muito mais cruel. Deixar-vos-ei vivos, completamente inconscientes da vossa pequenez e sujeitos à violência do dia-a-dia. Deixar-vos-ei com as vossas pequenas tragédias, comédias e dramas do quotidiano. Dar-vos-ei uma migalha quando estiverdes famintos e retirar-vo-la-ei para vos mostrar como sou poderoso e como é boa e omnipotente a minha vontade.

16- Pensava isto, durante a ronda do fim-de-tarde quando dei por mim misturado com a multidão. Senti-me nauseado e dirigi-me rapidamente ao gabinete. Aproximava-se a hora de saída.
Misturei-me nessa imensa fila de carros que engrossam as principais artérias da cidade. Regressei ao meu pequeno apartamento e sentei-me no meu pequeno trono. Comi a minha refeição pré-cozinhada. É curioso que mesmo os dias mais fatais e determinantes da vida de uma pessoa nunca fazem adivinhar a sua importância. Suponho que serão até, dias normais como todos os outros, e nesse mesmo dia, quando o corpo se recolhe ao seu último refúgio, não pressente o mínimo perigo e a respiração se mantém normalizada.
Mas algo de estranho se passava. Estava sentado à mesa a ver as notícias quando começava um outro programa. Mulheres e homens competiam na admissão com vista a melhoramentos físicos, questões de estética, operações cirúrgicas. As despesas, como é óbvio, patrocinadas pelo canal de televisão em causa. Vi como uma senhora muito feia, nesse programa, se queixava dos insucessos da sua vida e como atribuía tudo isso ao seu péssimo aspecto físico. Chorei! Não sei porquê chorei! Um choro que começou miudinho mas cujas lágrimas engrossavam cada segundo que passava sem que eu o pudesse controlar. Nunca tinha chorado assim em toda a minha vida.

17- A seguir ao choro veio o vazio. Um vazio imenso que urgia resolver. Uma dor aguda e acutilante que me trespassava. Estava então capaz de acreditar na primeira ideologia ou religião que me prometesse, senão o paraíso, pelo menos uma alívio temporário da minha dor. Sentia agora que eu tinha a culpa, não apenas dos meu erros mas de todos os erros, todos os pecados e todas essas patologias sociais a que passamos indiferentes. O toxicodependente que dorme na rua e rouba para o vício; o alcoólico que olha languidamente da porta do café; a prostituta de aspecto asqueroso de costas para o tráfego. Toda a culpa do mundo era também a minha culpa.
18- Saí de casa e entrei num estabelecimento de diversão nocturna, mais propriamente uma casa de Strip. Após passar o “hall” de entrada estava a música vulgar, o fumo e os olhares, todos na mesma direcção.
Era a primeira vez que entrava num local deste género e, curiosamente, não era nem de perto algo parecido àquilo que imaginei. Imaginava olhares lascivos, mas daquela lascívia descarada, ofensiva, bruta. Ao invés, um estranho silêncio cobria o manto de público exclusivamente masculino que compunha a sala. Não era apenas o silêncio, mas o olhar, como que intimidado dos espectadores.
19- Ao fundo, uma figura feminina balançava o seu corpo, como que serpenteando em volta de um barão. O seu corpo era alto, esguio e demasiadamente definido, como se a natureza talhasse as pessoas para uma determinada função, a nossa dançarina fora esculpida pelo tempo para impressionar como objecto de prazer.
Não parecia prazer aquilo que provocava nos olhares mas sim medo. Arrisco que, se inesperadamente resolvesse irromper pela assistência, os homens presentes afastar-se-iam com repulsa para logo a seguir aproximar-se com olhar ávido e curioso, já sem qualquer embaraço.
20- Abandonei o local em de alvoroço e senti no céu essa estrela que em certos dias ilumina a vida, mesmo a das pessoas vulgares, e transforma em um ápice tudo o que acreditamos até ao momento. Não consegui encher o peito de esperança para voltar a entrar no bar, mas também me deixava de certa forma desconfortável a permanência no exterior. Achei por bem esperar bem juntinho das portas dos fundos por onde, seguramente, todas as bailarinas da noite haviam de sair. Permaneci dentro do carro a fumar.Esperava...
21- Já passava das quatro da manhã quando a reconheci, a passos delgados, descendo os pequenos degraus da porta exterior. O seu carro encontrava-se estacionado não muito longe do meu. Entrou no carro. Seguia-a.
22- Conduzia calmamente na circular, dir-se-ia mesmo a uma velocidade inferior àquela que os outros condutores empreendem em condições semelhantes. È sabido que o ar da noite traz a calma a uns e a turbulência de espírito a outros.
Seguia-a a uma distância prudente para não levantar suspeitas, que pelos vistos não se verificavam, vista a calma com que conduzia. Foi quando o inesperado aconteceu. Por alguma razão que ainda hoje desconheço ela travou. Travou até com bastante distância e antecedência. No entanto, eu, fosse pelas minhas deviações interiores, fosse por qualquer outra razão embati violentamente na traseira do seu carro.
23- Ao pânico inicial seguiu-se o espanto quando vi a calma com que saiu do carro. Olhou primeiro com ar perplexo na minha direcção e depois para os danos que o embate tinha provocado. Era evidente que os danos eram bastantes maiores no meu caso.
Acabei por sair do carro, mais por instinto do que para ver os danos.
24- Surpreendentemente disse-me boa-noite antes de abordar o assunto inicial que provocou este inusitado encontro. Não acabava, quando rapidamente lhe pedi imensa desculpa pelo sucedido, que ia distraído e que me responsabilizava por todos os prejuízos, que nem necessário era chamar a polícia. Tranquilizou-me… Encostamos ambos os nossos veículos na berma da circular onde permaneceram apenas estilhaços de vidro e plástico do pára-choques.
25- Por feliz coincidência encontrava-se estacionada, além do raid separador da estrada, uma roulotte de comida rápida, para onde nos convidamos mutuamente após resolvidas as questões mais práticas do acidente. Melhor, foi ela que convidou, assim como foi ela que resolveu falar sobre si, ao meu olhar absorto.
26- Ainda não sei muito bem quais serão as consequências disto, sim, isto que escrevo, se tratar de um monólogo, portanto, por si, empobrecedor. Se partirmos do princípio que o diálogo é muito mais elucidativo do ponto de vista que nos dá sobre os sentimentos e as acções, o monólogo é, por assim dizer, um imenso planalto.
Talvez todas as vidas, todos os enredos e actos não passem de um acto em forma de monólogo, mesmo quando os momentos fulcrais acontecem em sociedade, sempre monólogos. Pensem nisso na vossa próxima conversa pós-orgasmo, essas conversas maldosas e reveladoras. As mais egoístas de todas, é certo!

27- Falamos, falamos e falamos, sem que lhe perguntasse o que quer que fosse. Clara, assim se chamava, contou-me a história da sua vida num único capítulo.
Que era estudante de filosofia e trabalhava numa estação de serviço. Daí a vigília… Pois… Reparei no seu ar tranquilo e na confortabilidade que exalava dentro daquelas roupas, que a ninguém fariam adivinhar as de uma empregada de estação de serviço. Falava bem. Era culta. Discorria tão fluentemente sobre a vantagem de comprar umas calças Levis como sobre a tragédia de Nietzsche. Quando nos despedimos tocou-me ao de leve na mão. A sua não era quente nem fria, mas morna. O morno da morte.

28- Um pouco aturdido e com a frente do meu carro num estado miserável, afastei-me da circular e deambulei um pouco por estradas secundárias. Entrei numa povoação deserta. Segui a marcha na esperança de encontrar alguma indicação de regresso à cidade.
Quando dei por mim, já tinha passado um enorme portão aberto cuja estrada continuava. Os olhos cobriram-se-me de curiosidade quando vi apenas lápides. Lápides brancas. Parei o carro para tentar compreender onde estava. Seria um cemitério? Seriam, de facto, lápides? Analisei cuidadosamente a primeira lápide que escolhi. Continha apenas um nome. Não tinha data de nascimento nem de morte, mas apenas um nome e, sem réstia de dúvida, era uma lápide. Verifiquei a outra e a outra a seguir. Eram lápides. Lápides em memória dos que morreram, dos que vivem e dos que ainda vão nascer. Os seus nomes estavam gravados nas lápides, mas talvez ainda nem os próprios o saibam. Entretanto, a noite caía.

Manifesto do autor

Dedico este novíssimo blog ao meu amigo Lugones, em bom tempo sulcando os mares da blogosfera.

Este blog nasce da necessidade absurda de não dizer nada dizendo algo. Pretende, assim, contrariar a força vital que anima todos os blogs: a esperança de que um dia venham a ser lidos.
É um blog de contos de um autor (e aceitemos o termo no seu sentido mais lato, na medida em que todo o pobre diabo que coloca algo sobre um papel é autor, e tudo o que aí consta é obra) com uma relação ambígua com o mundo. Que quer isto dizer? Muito simplesmente que muitos dos temas que poderão aqui identificar, independentemente do seu mérito literário, reflectem uma posição sobre algo. Posição esta, que não encontra necessariamente concretização na prática quotidiana do autor. Dito de outra forma, o autor é apenas mais um pobre diabo encurralado nesta grande armadilha a que chamamos vida. Um exemplo de carne, como aqueles que o público feminino tão bem compreende: se alguma vez tratar um assunto em tom desdenhoso com a nova cultura empresarial do século XXI, isso deve-se tão só ao facto de ser um pobre assalariado mal-pago, e que por vezes não tem tudo o que um jovem da sua idade, beleza e inteligência merece. Enfim! Pedi à vida conhaque, e ela apenas me deu água-ardente.
Baseando-se em muitas ideias que nada tem de original, e plenamente consciente da sua pobreza sintáctica à mistura com alguns laivos de novo-riquismo intelectual, o autor pretende brincar um pouco com as palavras e dar-lhes uma aparência de sentido (que em verdadeiro rigor não têm).
À guisa de alguns profetas que tenho visto ultimamente, se algumas das pessoas do meu circulo de amizades e ex-relacionamentos se vir retratada nos meus escritos é, efectivamente, muito provável, que me tenha inspirado em vocês, mas isso tão só porque vos amo do fundo do meu coração, e não porque me ache superior. Se o reconhecerem por vós próprios, isso é outra história… Pois alguém que é realmente superior não se auto-intitula como tal, mas espera que os outros o façam.
Pois bem, um abraço para todos e um grande bem-haja para os meus leitores.