quarta-feira, 11 de agosto de 2010

António foi peremptório - IV

Houve um dia em que toda a gente se fartou do rei. Nem se percebe porque o vinham aguentando desde há tanto tempo. As pessoas são pacientes aqui no reino de Nestum, e a vida foi construída para os fortes. Durante algum tempo achou-se alguma piada aos fracos e doentes. As senhoras deitavam-lhes as mãos pelas costas e cobriam-lhes o regaço, com pena. Pelo menos tinham essa função, a de alguém ter pena deles. Um dia fartaram-se deles e enviaram-nos para o campo pastar. Ainda antes disso, inventavam toda uma série de expedientes manhosos para se ver livres deles. Trocavam o nome das coisas: “-Vamos enviar os doentinhos para o campo, porque lá ó ar é mais puro”, diziam. Aproveitavam-se os que ainda sabiam jogar à bola, onde residiu a minha salvação. Era daqueles que chutava com os dois pés, de peito, cabeça, etc. Enviaram-me para outro sítio onde podia ser compreendido pelas minhas qualidades futebolísticas. Por mim, tudo bem… Pelo menos já não tinha que gramar com velhotas a espingardar, ou servir de reposteiro nas cerimónias. Por vezes eram simpáticas, as velhotas. Diziam, “-Olha que moço bonito e alto!” Passavam-me a mão no pêlo e nos tomates e eu ficava contente, embora ainda não tivesse ainda chegado àquela idade quando só queremos que nos passem a mão no pêlo e nos tomates. De resto, era também um tempo em que era encornado, e sabia-o bem e por quem! À semelhança da minha pessoa, todos eram encornados e não pareciam muito afectados por isso, afinal, já não estamos em tempo de soberanias. De hoje em diante, todos devem estar preparados para ser cornos, porque os cornos, mesmo sendo cornos (e ninguém o pode negar) passam por um belo chapéu se forem bem enfeitados. Ao mesmo tempo via gente que se dizia realista e lúcida, que me chamava constantemente a atenção para a minha cornadura e diziam: “- Porque não fazes nada, meu? Vai ter com ela parte-lhe a cara! As contas que tens a acertar não são com o gajo que a anda a comer, porque esse faz o trabalho dele, e se a como é porque ela deixa”. Dizia que sim, que sim, que sim. Davas duas voltas ao bilhar grande e voltava à mesma indiferença. Soavam-me as palavras irónicas de Dostoievsky: “A traição é um acto de protesto da feminilidade oprimida! Eu, marido responsável, não só devo aceitar esse protesto como, se for preciso, arranjar um amante à minha mulher. Não há nada como os russos para abstracções.
Até que chegou o dia em que conheci Patrícia, lá no campo. Tinha os seus trinta e poucos e um porte de dama romana, terrível e sensual. Era daquelas pessoas cheias de vitalidade, mas de uma vitalidade maldosa. A maldade e o apetite sexual pareciam ser o seu único móvel, o seu Demiurgo e a sua razão de ser. Cair nas mãos de Patrícia era desastroso por duas razões: se caíssemos nas suas más graças, seria capaz de nos arrasar pelo motivo mais fútil. Se o contexto de proporcionasse (e se tivesse garantias quanto à sua impunidade), seria capaz de torturar e matar sem o mínimo remorso. A sua lógica era dominar e o seu prazer máximo o poder absoluto. A segunda razão para a temermos era a sua pujança sexual. Percorreria também todo o alfabeto latino conosco: sodomizatio, fellacio, cunnilinguis, e talvez nos amasse por isso, situação que é sempre de temer.

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