terça-feira, 28 de dezembro de 2010

II - O circo chegou à aldeia

Que cores são essas que se alongam pelo céu? Que barulho é esse que se espalha a toda a aldeia? O circo chegou, a aldeia é pequena mas nem por isso se pode dizer que não se fala de outra coisa. Os espectáculos são poucos, a televisão tem dois canais, a missa é de frequência obrigatória e o circo... o circo, só atrai as crianças...
Durante a semana, os miúdos tinham organizado algumas visitas informais ao espaço onde se encontra acampado o circo. Diziam que havia ursos. Bem, fui ver os ursos, mas quando lá cheguei a criatura que se me deparou era mais magra e menos peluda do que o meu cão! Atiramos algumas côdeas de pão ao pobre do bicho que as perseguia atarantado, tal era a fome que pairava por aqueles lados. Havia também um macaquinho ao qual os camaradas circenses davam o carinhoso nome de "chêta". O desgraçado mordia as grades com desespero cada vez que nos via, engolindo sem mastigar os pequenos pedaços de pão que lhe atirávamos. O urso rugia e abanava o atrelado, furioso e ciumento da popularidade do seu compincha! "-Olha lá os bichos Venâncio!", dizia um dos circenses para outro. "-Se vejo um destes fedelhos a atirar pedras aos bichos dou-lhes um tareia que nem sabem onde se metem!" Olhamos receosos e pensamos em ver aquela fauna em acção no Domingo.
Estamos nos anos noventa, e noventa por cento da população na região dedica-se à indústria. Em terra de operários não há muitos divertimentos, excepto aquelas historietas que vão passando de boca em boca, do fulano que anda com fulana, os cortes na casaca, os maridos que batem nas mulheres, as santinhas que fazem milagres, os bruxos e bruxas e endireitas cujo conhecimento da anotomia humana espanta todos os que a ele se dirigem. As raparigas casam aos dezanove anos com o primeiro namorado, que quando tem a "caça assegurada" só quer partir para outra, mas elas não querem porque é pecado e porque as cuscuvilheiras da vila vão comentar o caso, e porque nenhuma moça que se preze quer ser comentada ou ser como a fruta da feira que todos apalpam mas nenhum leva. As mais jeitosas vão mantendo a auto-estima em alta, mas os anos vão passando e as ondas crescem à sua volta como na ermida de S. Simião, e cercam-lhe as ondas e que grandes são...
O Domingo chegou para pôr cobro à nossa ânsia. Estamos a caminho da tenda, antes um campo abandonado, agora palco de proezas que nos vão deixar estonteados. Começamos por ver uma estranha fumaça ao longe, próximo do local da bicharada. Intrigamo-nos com aquilo. À medida que nos aproximávamos, víamos que o fumo provinha de algo vivo que se abanava em movimentos uniformes. Essa espécie de turbina castanha balançava-se ao ritmo da música pimba que saía dos holofotes. Quando chegamos suficientemente perto do local para ver do que se tratava, vimos que a turbina castanha era o ursito magro que ensaiva um desajeitados pulos, sucedâneos de uma espécie de dança certamente aprendida "a toque de caixa". Estranhei quando distingui claramente as costelas salientes no lombo do urso. Um rapazito vestido de palhaço de olhar triste na entrada da tenda suja dá as boas vindas aos recém-chegados com um aceno de mão mecânico tão forçado que dá pena. Entramos. As bancadas do circo rangem por todos os lados, dando a impressão que se vão despenhar a qualquer momento. Sentamos-nos, para desgraça nossa, tarde demais, junto de um funcionário da escola, o que nosso entender deveria senão impedir pelo menos limitar as nossas expansões. Começa o espectáculo. Uma senhora de meia-idade anuncia o início das hostilidades e apercebemo-nos que isso está para acontecer e o nosso coração dá três pulos de alegria. Entra o trapezista com corridas para trás e para diante, joga com um cone, dois, três quatro, tudo ao mesmo tempo. A criançada rejubila, o artista corre para trás e para diante. O número mais arriscado é anunciado pela apresentadora: "- E agora, o nosso trapezista Paquito vai tentar o seu número arríscadíssimo em conjunto com a sua filha: a pequena Natasha! Para realizar este número o nosso artista conta com um colchão, um belo colchão de paralelos!!" Quando acaba de dizer paralelos, a anunciadora desata uma gargalhada enigmática e triunfal, como se fôssemos testemunhas de algo inédito, que por grande sorte, para nossa grande sorte de campónios, estivessemos no ponto de ser brindados com a primeira vez em que um grande trapezista de longa carreira arrisca a sua vida. Correu bem, o levantamento da pequena Natasha para o trapézio, mesmo com a mão magoada de Paquito. Má sorte, a gargalhada da senhora acabaria por se tornar profetizadora. Logo de seguida, o nosso Paquito volta às habilidades em chão firme - o equilibrismo de pratos, mas eis que enquanto corre de uma fila a outra cai com o seu corpo no "colchão de paralelos" em grande estrondo soltando um grito lancinante. Todos nos levantamos e gememos como se partilhássemos da estupefacção e dor de Paquito, que quase heroicamente se levanta e continua o número com sacrifício visível.
A apresentadora entrou de novo e desculpou-se pelo sucedido e irrompeu com um inesperado périplo sobre a perigosa vida de artista e anunciou a vinda dos palhaços. Os palhaços entraram, pobres, com pouco jeito, um mais velhote que faria o papel de palhaço "sério", outro mais novo e já com olhos de bêbado, que faria o papel de palhaço sem-juízo. Mal tinham acabado as primeiras piadas do género: "-Lembras-te quando os teus pais casaram? Lembro!", o sistema de som falhou. Os palhaços olham um para o outro, olham para a apresentadora, olham para o público. Ninguém compreende o que se passa. A apresentadora ausenta-se um pouco e em breve está de volta em frente do público. Anuncia uma falha técnica no sistema de som do circo. Pede o silêncio geral do público para o a performance, já que agora os comediantes terão que actuar sem microfones e adverte os espectadores, quiçá inutilmente, que devido ao problema de som os estes poderão não compreender uma série de piadas. Acaba-se o espectáculo dos palhaços de forma tão desastrada que o público parece com vontade de chorar em vez de rir. Segue-se um novo número, um número com animais selvagens, anúncia a apresentadora. Entra um domador que mais parece arrumador (embora não existissem na altura) que coloca uma tábua entre dois barris. Entra o urso/cão, o pobrezito de costelas à vista, que para além de dançarino parece que também é trapezista. Sobe para um dos barris, o domador bate com uma vara e o urso começa a travessia. A habilidade do urso parece tão ridícula aos presentes, mormente quando recobra forças para uma nova passeata, que um dos espectadores solta: "-É bem mandado, esse caralho!" O resto do público solta uma risada geral. Termina-se, sem deixar saudade, o número do urso esfaimado. Entra o número dos animais domesticados: os cães - disputam um acirrado jogo de bola arbitrados por um tipo vestido de fato-macaco azul. Os canitos lá começam a partida, ora hesitando, ora correndo atabalhoadamente, ora ganindo, o árbitro lá os vai conduzindo. Subitamente, sem que ninguém o esperasse, sobretudo de cães com um aspecto tão frágil e maltratado, começam uma terrível briga entre si, forçando o árbitro a distribuir pontapés a torto e a direito. Não tinha ainda terminado a briga quando uma porca (ou porco) de dimensões consideráveis (parecia o único animal correctamente alimentado naquele circo) corre pela arena levando os cães a direito na sua fuga furiosa. O treinador tenta impedir a porca, lançando-se de braços abertos para o animal, que guina para o lado. Aqui o público solta pela primeira vez uma gargalhada poderosa e sincera. Nós os miúdos, até ali um pouco tolhidos pela presença intimidante do funcionário, perdemos todo o nosso escrúpulo quando vimos o nosso algoz completamente extasiado, ainda mais extasiado do que a porca. Dois outros circenses acorrem ao local e conseguem enxotar a porca a pontapé para a saída da arena. Ficamos sem saber se tinha sido capturada ou não. Número seguinte: a cantoria! Um menina com os seus dez anos entra na arena para cantar "a Cinderela", de Carlos Paião. Sobranceiro aos seus lindos cabelos, ostenta um portentoso olhos negro, sobre o qual interrogamos o funcionário: "-Sr. Chico, será que a menina caiu?", perguntamos; "-Elas é que lhe devem ter caído!", responde com uma gargalhada o pândego do funcionário. Faltava ainda a actuação do homem de ferro, que pelos vistos era a principal atracção daquela noite, a julgar pela ordem cronológica dos performers. Um jovem dos seus vinte anos entra na arena já em tronco-nú. Um lacaio de serviço dá-lhe algumas vergastadas no lombo para comprovar a sua robustez aos presentes. Ficam apenas as marcas da vergasta nas costas do jovem, e quiçá se não o acompanharão para ao resto da sua vida? Parte algumas garrafas de vinho e deita-se em cima, naquilo a que a apresentadora chamava orgulhosamente de "O Colchão". Quando se levanta, traz ainda alguns vidros colados às costas, sacudidos pelo capataz. As marcas da vergasta permanecem.
Continuam as trapalhadas até que o circo dá, finalmente, por encerrada a sessão. Olhamos uns para os outros com um ar triste e contido. Passamos pela cela onde novamente pontificam o urso/cão e o macaco "Chêta". Os circenses levantam a tenda no dia seguinte e ninguém mais os vê pela terra . Mais tarde, correria um rumor pela aldeia que o homem de ferro namorou durante essa semana um rapariga da terra, e que chegou mesmo a ligar-lhe algumas vezes.

Sem comentários:

Enviar um comentário