domingo, 13 de fevereiro de 2011

III- Gabriel e o Anjo

1.
Na quinta-feira passada decorreu a apresentação do primeiro livro de poesia de Gabriel Meteco, na casa do livro desta cidade. Sim, foi poesia que se leu, ouviu e comentou durante todo aquele tempo. Alguns pensam, quiçá com razão, que publicar poesia tornou-se um pouco obsoleto, mas o nosso herói já se habituou a lutar contra as adversidades, e após muita persistência e espírito de guerreiro, lá conseguiu publicar os seus versos.
Existe ainda a questão levantada por algumas estranhas opções do mercado editorial, dando-se mesmo o caso de se publicar poesia sentimental. O que fazer, afinal, se mesmo os melhores dizem que se tornou impossível fazer poesia depois de Pessoa…!?
Com Gabriel encontrava-se o director da editora, o senhor Marmeleto que, segundo se diz até à exaustão na imprensa da especialidade, tem sido um autêntico Porto-Seguro da produção literária neste país. Era um homem calvo, alto e de tendões bem salientes no pescoço, ainda mais destacados pela forma como se inclinava na direcção do público. De resto, o auditório da Casa do Livro estava, como se diz na gíria popular – refeitinho, decorado por uma assistência nada despicienda para eventos desta natureza. Entre os presentes poderíamos encontrar:
*Marta Sofia Cavaleiro Miranda
Carolina Martins
Jennifer Collins
João Ribeiro Mendes
Carlos Meteco
Tiago Martel
Carlos Maciel
Martim Pontes
Júlia Crisóstomo
Rui Martins Salcede
Luís Miranda Neves
Maria Quintanilha
João Ferreira
Paulo Cunha Martins
Sandra Oliveira
Helder Santos
Helder Marques
Silvia Meteco
Vítor Matias
Sérgio Ribeiro
Bárbara Calisto Mendes
Custódio Campos
Patrícia Fialho.
Não se pode dizer que fossem todos especialistas da matéria, mas eram, pelo menos, pessoas interessadas quer pelo tema, quer pelo autor. Em boa verdade, a maioria eram seus amigos e conhecidos, que pelo menos, honra lhes seja feita, se deram ao trabalho de estar presentes, o que não é coisa pouca neste tempo de iliteracia.
No fim da apresentação, após a leitura de um par de poemas (o tempo era escasso), o nosso autor reiterou os agradecimentos que havia feito no início, não sem acrescentar um último poema, tirado do bolso num papel amarrotado à última da hora:
"Se me dou a conhecer
Fico fora do baralho,
Comprai minhas obras,
Remunerai meu trabalho"
Os convidados sorriram e quase todos quiseram dar dois dedos de conversa com Meteco, nem que fosse apenas para o felicitar. Sabemos mesmo, de fonte segura, que um ou outro levava já empunhado o seu livro em caça do autógrafo. Falou-se muito e de tudo: sobre as crises, que vão e que voltam, não sem deixar alguns náufragos irreversíveis, como perspicazmente afirmou um senhor gorducho que desde o início da sessão apalpava o pescoço. O Senhor Esteves, segundo outros tantos, uma autoridade nas "Economias", como ele gosta de dizer, no plural, foi mesmo peremptório quanto à necessidade das crises. "Assim se limpa o mercado de quem não interessa", afirmou com poses graves.
Segundo dizem os seus conhecidos, e o próprio Meteco confirma, as questões práticas, como sejam a economia, a política, o corta aqui e põe acolá, não lhe interessam, "porque todas ignoram o substrato essencial do ser humano, que é ser Homem e reflectir sobre e na própria existência". Certo que hoje, nesta assistência composta por gente mais ou menos aficionada, Gabriel não terá que se digladiar em argumentos desesperados com os desgraçados dos tecnocratas, esses que nunca tiveram tanta razão como nos dias de hoje. Normalmente, o seu trunfo tirado da manga consiste num "mas a técnica socorre-se das ferramentas da imaginação!" , coisa que resulta incompreensível para os seus ouvintes.
Os petiscos continuam a rolar pela casa fora, servidos pelas mãos velozes dos funcionários da empresa de Catering, e os convidados lá vão conversando animadamente.
Como anfitrião cortês que é, Gabriel vai deslizando de grupo em grupo, adaptando a conversa sempre que necessário, ora fazendo rir a senhora entradota, ora gabando a beleza da filha ou da netinha - "E toca piano, para além de ser boa-aluna", não raro lhe dizem as matriarcas. Sorri, desliza para o grupo dos cépticos, o grupo dos que nada sabem de poesia, dos que apenas conhecem as anedotas e temas eróticos do Bocage, mas que avaliam a qualidade de um dos seus pelo respectivo sucesso, seja em que domínio for. Cada um dos membros deste grupo tem uma espécie de pontuação imaginária, que sobe ou desce de acordo com os seus feitos, evolução da carreira, etc. Se se evolui no respectivo grau e título académico, o peito do visado incha um pouco no próximo evento social com os comparsas, que naturalmente já lhe prestam a devida reverência. Ninguém mais se atreverá a dar a garfada na área do nosso hiper-graduado sem pensar duas vezes, já que a presença da sumidade da matéria tem o efeito galvanizador de que o grupo "já se encontra composto" quanto àquela matéria. No caso de Meteco, a verdade é que foi sempre com alguma condescendência que o aceitaram, nas conversas de esplanada de Domingo ao. Meteco não passa de um vulgar funcionário público que, como se não bastasse o imobilismo já inerente à profissão, permite esta que os amigos saibam, em via aberta e publicada, cada movimento de progressão da sua carreira e respectivo salário que lhe acresce, de maneira que se encontra numa posição delicada para quem gosta de fazer "bluff". A atitude do grupo para com o poeta mudou radicalmente a partir do momento em que souberam que ia publicar algo. Digamos que, quando soou nos seus ouvidos a frase "O Meteco vai publicar um livro de poesia", apenas retiveram a palavra "publicar" de todo o conjunto. Depois, por associação, veio-lhes à mente a palavra "fama", a palavra "vendas" e "editora" e, não por remota associação, a palavra "dinheiro".
Foi também do grupo dos cépticos que surgiu uma personagem estranha. Um homem com os seus quarenta anos, de calças de ganga coçadas e camisa à pescador, o que o distingue claramente, pela indumentária (e pela negativa) dos restantes. Apesar disso, os cépticos parecem não reparar nele, embora o integrem num círculo perfeito, como se um amigo de longa data se tratasse. Quando perdeu o fio à meada na conversa, Meteco resolveu dar dois dedos de conversa com o único elemento do círculo que permanecia calado. Quis saber quem era. Perguntou-lhe o nome,
- Anjo.
Meteco riu e elogiou o bom sentido de humor e disposição do seu interlocutor. Mas certamente que mesmo os anjos têm nome!!
- Chama-me apenas Anjo…
- Ok, um brincalhão... Pois então senhor Anjo, gostou da apresentação, está a pensar comprar o livro? O Anjo franziu a testa e respondeu-lhe a contragosto;
- Pois tenho eu outro remédio senão dizer que gostei e que lhe vou comprar o livro? Meteco reagiu com um assombro momentâneo, logo controlado pela sua atitude aristocrática,
- Pois calma meu amigo! Não é obrigado nada! Não fique maldisposto! Estamos aqui entre amigos e entre amigos não se encontra pruridos desse género!
- Pois!, riu o Anjo, vai dizendo isso para ti próprio que ainda te convences! E desata numa risada maliciosa que irrita profundamente o nosso autor.
Para disfarçar o nervoso miudinho que lhe percorreu todo o corpo, Meteco bebeu um trago largo de whisky. Quando voltou a olhar em frente já não viu o Anjo. Entretanto, para aliviar a tensão, voltou-se para o companheiro da direita e disse: - Viste-me só este tipo que estava aqui?
– Qual tipo?
– Este que estava aqui à minha frente de calças de ganga e camisa xadrez.
- Deves estar a sonhar! Aí não estava ninguém.


2.

Aquela foi aquela a que podemos chamar: a primeira aparição do Anjo. Partimos do princípio, ainda sem dados suficientes, para afirmar que se tratou ipso facto de uma aparição. Vejamos melhor: segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa, Vol1, Verbo edit, p. 284 : "Aparição:(do lat. Apparitio, -õnis) (1) Acto de surgir, de aparecer – Aparecimento chegada (2) Manifestação súbita de um ser sobrenatural sob uma forma visível; (3) Visão de fantasmas, espectros ou de outros seres sobrenaturais; (4) Fantasma, espectro, alma do outro mundo; (5) Começo de alguma coisa – Aparecimento origem (6) Rel. Festa instituída pela Igreja Católica para celebrar o dia em que Cristo apareceu aos apóstolos, após a Ressurreição.”. Perante tal auxílio bibliográfico, não temos a menor dúvida em subsumir o insólito acontecimento no qual foi interveniente Meteco a qualquer um destes significados (excepto o referido em (6), como é óbvio). Assumindo igualmente que aos entes de outro mundo é suposto "aparecer", para que se lhes dê o estatuto de atrás referido, devem estes também "desaparecer" subitamente e sem deixar rasto. A segunda fonte de que nos podemos socorrer para atestar a "Aparição", prende-se com a briosa cultura do nosso país, onde (não tão raro como se pensa), senhoras vestidas de branco aparecem em cima de azinheiras a crianças de coração puro. Seguimos essa tradição, bem como os relatos da época, para classificar o insólito como algo de inatingível ao olho humano e, pois claro, algo de ímpar beleza. Aqui já não nos é tão generoso o apoio das fontes, dado que estamos já em condições de saber que o suposto ente aparecido nada tinha que se assemelhasse a angelical, sendo antes aparentado do marginal. Uma personagem semi-andrajosa que, como se não bastasse, insinua de forma não muito subtil aquilo que todos os lúcidos presentes já sabem: que a poesia de Meteco é lamentável e que é o próprio seu maior admirador. Não será mesmo difícil admitir, caso o talento não se repercuta nas vendas, que o autor atribuirá tal descalabro à nova censura levada a cabo pelo mercado editorial, à concorrência desleal do autores consagrados e até, quiçá, à terra que não se deixa salgar...

3.

A verdade é que, como não poderia deixar de ser, houve lugar a uma segunda aparição, que ao contrário da primeira, não se poderá chamar com plena propriedade de aparição. Isto porque desta vez foi Gabriel que apareceu ao Anjo, e não o contrário. Viu-o debruçado num quiosque de rua, pouco antes de comprar um daqueles diários modernos que escorrem crime e assombro. Assim que reconheceu a figura do Anjo, o que não era difícil até porque a indumentária não tinha mudado, Meteco correu atrás da figura que se começava a confundir na multidão. O Anjo não desapareceu. Foi alcançado pelo poeta, que lhe colocou a mão no ombro e virou de forma suave. O Anjo reconheceu imediatamente a figura familiar e esboçou uma espécie de sorriso irónico.

- Ora viva! Bom os olhos o vejam! disse-lhe Meteco;

- Viva!, disse o Anjo não muito surpreendido,

- Então lembra-se de mim? Sou Gabriel Meteco. Encontrei-o anteontem na apresentação do meu primeiro livro - um livro de poesia. O Anjo fitava-o com ar zangado:

- Pois, como poderia esquecer, se fui ver PRECISAMENTE a sua apresentação?! E se aí fui para o ver A SI! Meteco estremeceu,

- Ena! Que mau feitio! Sabia que se lembrava de mim! Era uma pergunta retórica! Olhe, gostaria de continuar a nossa conversa devidamente irrigada por um cafézito? Podemos ir já ali à esquina.

- Sim, claro..., responde o Anjo a contragosto.

Chegados ao café, o poeta ajeitava nervosamente as mangas do sobretudo, pois tornara-se já claro que a figura do Anjo o intimidava, essa figura semi-andrajosa recostada na cadeira de meio-sorriso cheio de uma ironia e segurança que faz tremer até os mais convictos.Sem saber como quebrar o gelo à discussão, Meteco arriscou algo bastante evasivo:

- Então há muito tempo que gosta de poesia?

- Sim, de boa poesia, há bastante tempo

- mmm.... Muito bem! Então gostou da minha apresentação?

O anjo franziu a testa como quem evita responder, ou como quem já sabe o que vai responder mas não o faz para não matar logo à partida a discussão ou quem sabe, imbuído de paixão cristã pelo autor? Meteco compreendeu o que significava aquele gesto, por isso atreveu um pouco mais o discurso:

- Com toda a franqueza, sei que por vezes nos inventamos como o reflexo do quem queremos ser. Pode ser também que as pessoas não são tão sinceras connosco quando se trata das nossas realizações, enfim! Por simpatia... Mas a si, que já vi que não é hipócrita… O que lhe parece a si? Sinceramente...

O Anjo irrompeu zangado:

- O que é que isso importa compadre? Não acha que um dia todo fluirá para o mesmo caos, nada importando quem e o que é que se faz de bom ou mau?

- Não queria pensar em termos tão abstractos... Assim... quer dizer, nada valia a pena de nada!

- E se calhar não vale. O certo é que nada valerá...

- Então como sabe? Adivinha o futuro? É algum bruxo?

- Bruxo não sou e também não adivinho, mas porque não sou bruxo e não adivinho posso dizer que SEI, o que é bastante diferente de adivinhar não acha?

- Ahh! Mas isto está a melhorar? Então afinal é mesmo um Anjo, e não estava simplesmente bêbado quando se apresentou há dois dias atrás?!

- Ah ah ah! Você para além de poeta é idiota!

- Muito bem! Entra-se na brincadeira. Então diga-me lá, senhor Anjo, porque é que V. Exª, com tantas personalidades ilustres infinitamente mais importantes do que este humilde servo de Deus, resolve-lhe aparecer para anunciar banalidades?

- Calhou, por acaso... Não pense que o Patrão está tão ocupado que não repara em si, mas quanto à minha aparição, isso, é puramente casual.

- Mas se é puramente casual, certo que tem algo para me dizer… Ou caiu do espaço só para anunciar que é um Anjo?

(…)

- O espaço... sabe Meteco, qual foi o primeiro homem no espaço?

- Sim, sei. Foi o cosmonauta soviético Yuri Gagarin.

- Sabe, em 1961, quando Yuri Gagarin foi lançado para o Espaço, houve uma grande expectativa quanto ao que ele poderia ver por lá. Como sabe, a humanidade sempre idealizou o céu como a "Casa de Deus". Quem sabe se Gagarin não poderia ver por lá o Reino dos Céus? Talvez por isso, numa das suas primeiras declarações após o regresso à Terra, tenha dito que não viu Deus, apenas matéria escura. Uma quantidade infinita de matéria escura...Meteco bocejava como quem não dá demasiada importância ao que se diz, tomando a pequena incursão histórica como mais uma zombaria,

- Mas, Sr Anjo, ainda não respondeu à minha pergunta... O Anjo recompôs-se e soltou com ar desdenhoso

- Oh, já me esquecia. Vim para lhe dizer que vossemecê está doente.

Meteco olhou com ódio o Anjo, como quem está prestes a impor um murro nas fuças, mas mais uma vez o seu sentido de humor o salva de uma situação embaraçosa:

- Mas agora o Patrão preocupa-se com quem está doente, é? Há milhões de pessoas doentes no mundo, e todos os dias umas adoecem, outras morrem de doença e outras curam-se!

- De acordo Meteco. Também não vejo o que isso tenha de especial, mas insistiu tanto que lá tive que lhe dizer alguma coisa, não é?

- Se o meu amigo o diz... E posso saber de que tipo de doença sofro?

- Caramba Meteco! Também não sou médico! Sou um simples Anjo!

- Um Anjo que se deu a todo este trabalho apenas para me dizer que estou doente!

- Exactamente! Os Anjos dos tempos modernos têm estas funções muito pragmáticas, muito terra a terra. Quantos Anjos destes não terá encontrado na sua vida?

-Não sei do que está a falar, respondeu zangado,

- Alegre-se homem! Uma coisa lhe garanto: pior do que agora nunca será, compreende?

- Ah, muito bem Sr. Anjo! Mas posso saber então do que se trata?

- Oh Meteco, mas acredita mesmo nisso?

- Nisso? Em quê?,

- Isso de existirem pessoas doentes e pessoas saudáveis? Olhe para ali! O Anjo apontou pela montra do café para uma multidão indistinta que caminhava a passo acelerado para a boca do metro. Crê que ali existe um único saudável?

- Até pode ser que não, mas pelo menos não têm Anjos a profetizarem a desgraça!

- Isso é apenas um pormenor sem importância. O facto de eu estar aqui ao seu lado a dizer-lhe todas estas coisas, precisamente a SI e não a um DELES é pura casualidade. Agora, se me dá licença, tenho mais que fazer. Foi um prazer falar consigo Meteco. O Anjo levantava-se e preparava-se para sair;

- Espere, disse Meteco. Vou voltar a vê-lo?

- Nunca se sabe, nunca se sabe...

3.

Escusado será dizer que nos dias seguintes, a vida de Meteco deu uma volta considerável, para não dizer de 360 graus, como concluem os mais espirituosos. Encontrou-se subitamente num verdadeiro frenesi de procura de médicos, embora tivesse que começar, digamos assim, pelo início. Consultou o seu médico de família que, conforme os ditames das boas práticas profissionais, lhe prescreveu umas análises para avaliar a bioquímica - uma espécie de check-up. Fez os exames e passada uma semana voltou com eles ao seu médico. O médico não viu neles nada de especial, aliás, não virá nada de especial até ao momento em que resolveu efectuar um exame tópico de reflexos no seu paciente. Feito isto, emudeceu e limitou-se a escrever, escrever. No final da missiva indicou que gostaria que o nosso poeta fosse consultado por um médico neurologista, assim "só para ter a certeza", "para ficar-mos de consciência tranquila". Esqueceu-se apenas de dizer quem deveria ficar de consciência tranquila com a nova consulta, mas essa última parte também Meteco não teve curiosidade de saber.

Pouco tempo depois consultou o médico neurologista, um homem jovem, de cerca de trinta e três anos, em quem era bem visível o pouco tempo que tinha de especialidade. O doutor fez o mesmo exame tópico que o médico de família lhe fizera, embora com um pouco mais de paciência e de desenvolvimento. Sentou-se na poltrona que servia de cadeira de trabalho e começou por escrever algo, e talvez Meteco compreendesse um pouco mais do que estava a ser narrado naquela missiva se soubesse ler de pernas para o ar. Acabada a carta, o médico neurologista fez um novo exame físico ao paciente, pressionando alguns nervos do braço esquerdo ao mesmo tempo que lhe pedia que contraísse os músculos. Gabriel colaborou em tudo o que lhe foi solicitado, até porque no relatório que o médico escreveu no seu computador pessoal contava, na rubrica: "estado psicológico do paciente", o seguinte: "Paciente calmo, coordenado e colaborante". Ordenou, finalmente, a Gabriel um exame conhecido por TAC (Tomografia Axial Computadorizada) para, segundo o clínico, obter um diagnóstico mais completo.
Nesse mesmo dia, Gabriel ligou a um amigo seu médico, um homem muito competente e simpático - um progressista dentro da sua área profissional, segundo lhe chamam alguns colegas com quem simpatiza. Pois escreveu recentemente um artigo sobre o uso de células estaminais e manipulação genética que vai muito além do que alguns querem admitir, invocando estes últimos considerações de ordem ética para inquinar as investigações. Gabriel ligou ao seu amigo por duas razões: primeiro: porque não confia nos médicos. Sempre que as circunstâncias o obrigam a visitar essa espécie humana dotada de particular cinismo, segundo a sua opinião, tem a sensação de que lhe ocultam algo, seja porque é grave, seja porque não o consideram relevante. Em segundo lugar, porque para além da estranha sensação de não saber de tudo, Gabriel encontra-se quase paralisado por um medo animal que lhe percorria todo o corpo, impedindo-o de ter o mais breve pensamento positivo que fosse.

Depois de narrar sucintamente o seu historial clínico recente, o amigo respondeu-lhe algo que já tinha ouvido por duas vezes. Que os sintomas dos quais se queixa são comuns a um número infindável de problemas, que apenas se pode tirar conclusões quando se tiver mais resultados de exames (daí a importância de um diagnóstico tão completo quanto possível) e que enfim, mais valia acalmar-se e descansar.
Chegado a casa, razoavelmente mais tranquilo, Gabriel cumpriu basicamente todas as tarefas rotineiras que costuma cumprir, a saber:
- Lavou a louça com detergente da loiça, marca "Lavatudo", recipiente de 250cl;
- Cozinhou um magnífico rolo de carne (de porco e legumes), assado no forno com batata:
- Bebeu quarenta centilitros de refrigerante, marca kopiCola;
- Fumou um cigarro, marca Marbello;
Quando terminou a ceia, Gabriel lavou novamente a loiça e procurou enfiar-se na cama. Ainda antes de dormir, continuou a leitura de um livro que há já algumas semanas figura em lugar de destaque da sua mesa-de-cabeceira: um livro de desenvolvimento pessoal chamado:”Como ser espontâneo em dez lições". Adormeceu no sono dos justos, mas por volta das quatro horas da madrugada acordou em silêncio, completamente suado. Virou a cabeça ainda zonza do sono para ligar a luz. Acendeu o candeeiro, tirou a camisa do pijama, bebeu um copo de água e voltou-se a deitar. Ainda antes de dormir, pensava no mundo e como há tantas coisas e tanta gente, e como a sua dor, vista universalmente, é insignificante. Pensava e via retratos imaginários na parede e um grito surdo que ecoa quase indistinguível de todo o resto, mas ali, presente. E porque ninguém vê, ninguém sente, esse grito que ecoa pelas paredes, como a vibração natural da terra desde o Big Bang.

4.

Na manhã seguinte, Meteco levantou-se com uma pesada dor de cabeça. Afrontou-lhe o seu rosto no espelho, as rugas que se lhe cravavam com cada vez maior nitidez nas fontes. Há muitos anos que olhava o mesmo espelho e parecia que desde então a sua cara não mudara, pelo menos desde a adolescência.

Pelo caminho encontrou ainda o seu amigo de infância - Colosso, um homem alto de 43 anos que lhe resumiu a sua vida recente. Despediu-se com um breve adeus que poderia querer dizer até já, ou até breve ou até nunca mais.

Chegou ao edifício onde deveria fazer o exame marcado para aquele dia, fazendo pouco caso de como os edifícios que se ocupam da sanidade são exteriormente indiferentes a ela. A sua vez chegara. Despiu a sua roupa e subiu para a máquina que examinaria as suas entranhas. À medida que deslizava pelo tapete pareceu que faria aqui a sua primeira viagem espacial, o cosmonauta das entranhas. Convém dizer que o aparelho onde agora Meteco se encontra a postos para a sua primeira viagem é uma máquina de terceira geração. Quer isto dizer que mal deslizou para a forma esférica de cerca de setenta centímetros, o gantry, ou ampola de raios X que serão emitidos através do corpo do poeta e recepcionados pelo lado oposto da esfera, que por sua vez enviará a informação ao sistema informático instalado para o efeito. Recorde-se que este prodígio tecnológico só é possível graças ao "capital" que constitui o corpo humano, que ao recepcionar a radiação e assim dar uma imagem de acordo com a respectiva quantidade de radiação absorvida pelos tecidos (radiodensidade). A imagem assim transmitida permitirá ao analista identificar pontos nodosos ou simplesmente "duvidosos".

A máquina descreveu mais uma volta completa, e enquanto o fazia Gabriel recostou a cabeça e viu ainda uma imagem fugidia do Anjo. Depois fechou os olhos e viu apenas matéria escura. Uma infinidade de matéria escura tal como outrora tinha visto Yuri Gagarin e que tanto desiludira o mundo dos vivos.

* Os nomes aqui expostos foram compostos aleatoriamente. Qualquer semelhança com nomes de pessoas REAIS é pura coincidência.

Sem comentários:

Enviar um comentário