domingo, 27 de fevereiro de 2011

V - O Poço da morte

Sim, conheci-o na minha infância. Era um rapaz muito calado, mas inteligente. A verdade é que quando alguém lhe ligava alguma, o que acontecia sempre por razões negativas, perdia amiúde a vontade de repetir a experiência. Você acredita nessas pessoas cuja existência se funda exclusivamente na expiação? Creio que o António carregava esse estigma. Bem, estigma? Será que lhe podemos chamar assim? Não sei.Ainda na escola primária fui um dos poucos que se interessou pelo seu caso. Sabe como é, aquela amizade pueril das crianças. Já pensei muitas vezes nesta questão nos seguintes termos: a infância constitui aquilo que podemos chamar um segundo regresso aos tempos primitivos. Pense bem: a formação de grupos, uma estratégia de sobrevivência tão antiga como o ser humano; a selecção dos mais fortes como líderes do grupo; a demarcação de territórios. Em tudo isto as crianças podem representar a mais encarniçada crueldade e o mais bonímio dos seres. A minha relação com o António baseava-se na amizade, mas não aquela amizade zoófila que alguns têm pela diferença. Não penso que fosse, de todo, um miúdo nervoso ou fraco. Pelo contrário, era daquele tipo de crianças que dão, em toda a sua figura, um aspecto geral de fragilidade, mas quando chamadas a responder a qualquer situação surpreendem pela valentia. Mas o pobre não podia ter feito muito mais do que o que fez. A professora e alguns dos amiguinhos ganharam-lhe um ódio de estimação. Ninguém sabia porquê. Lembro-me que andava já no quarto ano quando ele entrou para escola, e todos os intervalos lhe via as mãos negras da palmatória. Aquela era uma professora à antiga. Disseram-me que fazia uma espécie de divisão social na sala: os meninos ricos na frente, os remediados no meio e os pobres atrás. Assim, como uma ordem de preferência de aprendizagem. Um nojo! Como deve imaginar, o pobre do miúdo encontrava-se nesta última classe.Lembro-me que uma vez acabou-se-lhe o caderno. O miúdo estava preocupadíssimo, por isso emprestei-lhe um dos meus cadernos da catequese. Quando a professora descobriu isto, chamou-nos a todos da nossa classe fora da sala, trouxe o António por uma orelha e deu-lhe um arraial de bofetada ali mesmo na nossa frente. Pobre miúdo...!Um outro episódio estranho que se deu nessa escola foi quando descobriram um poço no meio do recreio, assim, um poço sem mais nem menos! Aconteceu quando um dos rapazes que jogava à bola tropeçou num buraco. Rapidamente os miúdos repararam que não se tratava de um buraco qualquer, para já, porque apesar do diâmetro reduzido, parecia ser mais profundo do que o habitual. A rapaziada juntou-se em torno daquilo, começou a escavar com as mãos e o buraco ia alargando, alargando. Chamaram os professores, que apercebendo-se do perigo da situação chamaram os homens da junta de freguesia para ver o que se podia fazer. Os homens chegaram, isolaram o buraco para os miúdos não se aproximarem e começaram a investigar, assim com ares de burro a olhar para um palácio. Como não sabiam o que fazer com aquilo, os homens chamaram malta da Câmara Municipal, que de imediato procedeu às investigações necessárias. Claro! Tudo com a competência que os operacionais camarários nos habituaram. Puseram-se a medir a profundidade do poço, mediram e mediram e não tinha fim, pelo que diziam os funcionários mais linguarudos. Chamaram os homens do ministério que, após algumas investigações, puseram cimento (literalmente) sobre o assunto e não se falou mais nisso. O recreio foi mudado de lugar e a zona foi isolada.O acontecimento em si talvez não seja tão insólito como se pensa, até porque isso do poço não ter fundo foi um mito que correu lá pela rapaziada. O que verdadeiramente me intrigou foi o António. Desde que descobriram o poço, passava dias e dias - todas as horas que tinha vagas a olhar para o poço. Olhava, acocorado sobre as suas pernas delgadíssimas, com os braços formando um trapézio sustentado nos joelhos para apoiar a cabeça. Mexia os lábios como se mastigasse em seco, esgueirava os olhos como se conseguisse ver o que ninguém via, o fundo do poço ou talvez outra coisa qualquer. Nunca lhe perguntei o que via ele, aliás, todos sabíamos que o miúdo era estranho, por isso, ou ninguém se deu ao trabalho de lhe perguntar, limitando-se a apupar ou, no meu caso, aceitar essas "fraquezas" do meu protegido como parte da embalagem.Esse episódio coincidiu também com uma das últimas vezes que vi o António enquanto miúdo. Sei que depois os pais mudaram-se para outro lado, e com toda a certeza ele também mudou de escola. Depois disso, voltei-o ver cá na terra, tinha ele já uns dezasseis ou dezassete anos. Estava com os pais a passear, por altura das festas da Nossa Senhora das Aflições, digamos, uma festividade que ninguém que se diga filho desta terra pode perder. O António estava já um homem feito para a idade que tinha. Apenas o reconheci pelos dentes e pelos olhos, duas características que tinha inconfundíveis. Continuava franzino, como sempre fora. Olhei de relance, hesitei ainda um ou dois minutos antes de o abordar, mas depois vi bem aqueles olhos e aqueles dentes e pensei: não, de certeza que é o António. Acho que ficou contente por me ver. Falamos durante um bom bocado de tempo. Disse-me que estava com o pai, que tinha vindo passar uns dias à terra e daí a pouco tempo voltava para Torres.Voltei-o ver uns dias mais tarde. Confesso que o achei um pouco sinistro, de semblante carregado caminhando sempre na mesma direcção. Foi nessa mesma semana, no domingo, que o encontrei na cercania de uma atracção conhecida por Poço da Morte. Uma das mais foleiras, por sinal. Não compreendo bem porque é que quem quer que seja se submete a um espectáculo degradante daqueles, melhor, paga para isso...! Talvez já tenha visto, já? Bem, aquilo é uma espécie de construção em forma cónica, toda de madeira claro está, uma vez que se destina a ser desmontada e transferida para outro lugar periodicamente. Normalmente, o cume dessa construção cónica é coberto por uma tenda normal, semelhante às do circo. O objectivo daquilo consiste em um, dois ou mais motociclistas tornearem o barril a alta velocidade. Por efeito dessa mesma velocidade, a moto ganha equilíbrio, dando a sensação de que se está a fazer a coisa mais perigosa do mundo, e porventura seria, se por algum momento de loucura um deles resolvesse travar ou lei da gravidade resolvesse abrir um excepção. Aquele poço da morte que vi lá na terra, por sinal, era dos mais velhos e decadentes que alguma vez havia visto. Cá fora, em frente da barraca, um jovem com os seus dez anos, montado em cima de uma moto que se mantinha em funcionamento enquanto rolava por duas esferas instaladas no chão, punha-se de pé na moto, largava pernas, braços, uma espécie da demonstração de perícia que esperava os espectadores lá dentro. Ora, o António vidrou-se naquilo, tanto foi o que compreendi pela conversa que tivemos cá fora. Segundo me contara, ele e o pai tinham ido a um desses espectáculos no domingo anterior. E não é que o moço engraçou com aquele espectáculo degradante?! Foi isso que percebi, a julgar pela primeira vez que em conversa com ele toquei nesse assunto. Ele ria-se e desculpava-se sempre de forma lacónica, o que era bem característico seu.Quando já se aproximava o fim da semana de festividades, e suponho, os tipos do Poço da Morte se preparavam para abalar para outra terra, vi-o novamente a passar para o mesmo sítio, especado em frente da entrada. Não resisti e perguntei-lhe:- Mas ouve lá, então porque é que voltaste este fim-de-semana a comprar o bilhete para ver esta porcaria? Vista lá algo de especial? Aquilo tem alguma graça?- Não sei! É suposto ter graça?...- Diz-me tu! Nunca vi ninguém tão fascinado com esta merda! Se queres que te diga, acho que isto nem devia ser permitido!
- Porque dizes isso? Perguntou. Porque é perigoso?- Nada disso! Exactamente pelo contrário! Porque é uma fraude. Para fazer aquela bosta basta manter a velocidade da mota estável e não ter amor-próprio bastante para ganhar dinheiro à custa dessa proeza!
- Explica-te melhor, continuou ele,
- Oh António! Não evitei o riso. Parece que não és deste mundo!- Não Carlos, aquilo não tem que ter graça nenhuma, explicou-me. Apenas tive algumas ideias curiosas durante o espectáculo da semana passada.- Curiosas? Como curiosas?- Já te digo. Por exemplo, na semana passada, enquanto observava os primeiros motards que faziam o círculo perfeito a toda a velocidade, ocorreram-me algumas ideias que podes achar interessantes.- Então que ideias foram essas?- Pensei que o que impedia aqueles homens de cair das motos era a própria natureza.- A natureza...- Sim, a natureza, as leis da física. A força propulsora da velocidade, conseguida graças ao peso do objecto, cria aquilo que permite este tipo de movimentos assumir um equilíbrio gravitacional: o referencial de inércia.- Hmm. Parece interessante. Mas continuo a achar que vamos sempre saber o que é a lei da gravidade, bem como as suas excepções, sem que precisemos de saber o que é um referencial de inércia...- Carlos, para que saibas, o referencial de inércia é precisamente a lei da física que estabelece o equilíbrio necessário para que a terra descreva, em círculos concêntricos, as sua rotações em torno de si mesma e em volta do sol. No fundo, é graças a essa lei que todos vivemos.- Então e se algum dia ela se lembra de abrir um excepção? Gracejei eu...- Não sabemos. É possível. Aquilo a que chamamos leis da física, grosso modo, independentemente da regularidade e evidência que apresentem, terão sempre na sua base aquilo a que se chama "believe", ou seja, a crença de que assim vai continuar a ser até à eternidade.- Pois bem António... E se um dia as leis se defraudam a si próprias e abrem a tal excepção, por exemplo, para aqueles desgraçadotes que andam lá de moto de um lado para o outro.···- Precisamente esse é outro das coisas que me fascina.

- Eles, seguindo esta ideia do believe, são mais crentes do que todos os outros. Estão mais dependentes da lei da física do que todos os outros. Podemos mesmo dizer que a constância das leis da física é para eles o seu modo de vida, por isso o risco é para eles também um estilo de vida. Pois se um dia a física resolve abrir uma excepção de que tanto falas, serão eles os primeiros de todos nós a senti-lo.

Sendo assim, pensei que tudo poderia fazer sentido numa lógica dentro da lógica. Pensava em grupelhos, seitas e outras merdas. Uma religião que adorasse um rato, e que se fosse fundamentada com o mínimo de rigor, poderia convencer um, dois, uma dúzia ou duas de malucos que saberão todas as suas canções e preces e para mim, um ser racional e pós-religioso, quando me deparasse com essa cena grotesca rir-me-ia interiormente (ou até na cara deles, quem sabe). Se tão só soubesse que agora mesmo, neste momento em que me afasto do António e daquele maldito poço penso em como tudo é estranho, como o acaso escolhe as pessoas que entram nas nossas vidas e como elas permanecem estranhas. Aquela moça, sim aquela, a da barriguinha saliente, não, não outra … a outra da mala verde. Mas seria verde a mala, poderia ser castanha ou aquela que gosta de rock ou hardcore ou metal ou house. Ah, como é belo este mundo e como é belo Portugal. Sempre que chego a uma cidade nova tudo me parece mágico, como são amáveis e dóceis as pessoas do meu país e como ele e eu (sim, ele e eu) permanecemos com os nossos destinos de mãos atadas.

Uma outra vez encontrou-me, e sem que me desse qualquer oportunidade (vinha com uns estranhos olhos esgazeados) de dizer um bom-dia que fosse, contou-me uma história bizarra:

- Sabes Carlos, a história daquele tipo, já não me lembro onde e em que circunstâncias, estava preso numa espécie de prisão mongol. Foi deixado durante três longos meses numa cela minúscula, sem qualquer janela ou saída de ar, na solitária, portanto. Ao bom estilo mongol, já nem sei se eram mongóis os tipos que o prenderam, nem a cortesia de um balde para as necessidades tiveram a amabilidade de lhe deixar. O nosso malogrado homem, que apenas por acaso era um famoso matemático que o destino levou àquele país de loucos, viveu durante três meses, envolto numa atmosfera pútrida, com 200 gramas de pão por dia e a dormir e sentar no mesmo lugar onde cagava e mijava, percebes? Acontece que era matemático, e a maneira mais proveitosa de escapar à solidão, violência e loucura foram os cálculos. Sim, os cálculos. Passava o dia a fazer cálculos, claro que sem qualquer meio para os anotar onde quer que fosse. Mediu com os pés a largura da sua cela (que, segundo sei, rondava os 1,20m) e calculou o número de passos, através do cálculo proporcional que o distanciavam do seu país, um país muito distante… a liberdade.
- É um bonita história.
- Sim, bonita e real. Mas será que o teu herói atribuiu algum significado transcendente à sua reclusão ou fez isso por puro instinto de sobrevivência, tal como um cadáver cuja electricidade estática faz o cadáver mexer os braços?
- Não sei o que dizes. Se é o que penso, não acho que seja assim tão importante. O que é importante é que sobreviveu. A única forma de escapar à barbárie… um último reduto da dignidade, o seu intelecto que nem o mais bárbaro dos mongóis poderia tirar.

Este é apenas um dos exemplos interessantes das conversas que mantivemos nessa curta estadia do António.
Sei apenas que com este tipo de comédias, como o observar um espectáculo ridículo sem que qualquer lógica sustente, pode enlouquecer um homem. Acho que é nessas ocasiões que um homem enlouquece, quando aprende a pensar a lógica fora da lógica, como se visse algo tão aterrador, ainda que por um minuto – a loucura para o resto da vida.
Depois foi o que se soube.
Mais uma vez, sem que qualquer lógica o sustentasse, o António, um rapaz inteligente, se bem que com um feitio peculiar, é verdade, juntou-se àquela máfia de bêbados fura-vidas. Não acha cómico tudo isto?
Depois disso não soube muito mais dele. Ouvi dizer que fugiu com um sujeito lá para os quintos dos diabos. Não sei… Sinceramente não sei…

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