1.-
Um dia sucedeu comprar um desses jornais sensacionalistas. Para começar, não sou um habitué neste tipo de leituras, aliás, abomino a imprensa tablóide. A verdade é que tinha boas razões para isso. Desejava evitar o confronto com uma certa pessoa - um chato que me perseguia há já algum tempo, e a maneira mais eficaz que encontrei de o fazer foi esconder a minha pesssoa num desses quiosques de rua. O jornal chamara-me a atenção apenas por uma notícia que figurava na capa. Falava de um jovem"asfixiado e degolado de seguida", algo insólito mesmo para quem já viu um pouco de tudo. Exlicava-se que a vítima apresentava escoriações na zona do pescoço, uma marca típica de asfixia mecânica, assim como um golpe, por sinal bem profundo, na mesma zona. Porque o faria o agressor, uma vez que a autopsia provara que a vítima já se encontrava morta aquando da segunda agressão? Seria algum ritual? Alguma força oculta exacerbada pelo ódio? Bem, não sabemos.. A verdade é que este tipo de agressões post mortem são relativamente raras, estado estritamente relacionadas com factores culturais e até históricas: veja-se o caso da damnatio ad eternum, largamente usada entre os povos da antiguidade.Telefonei ao meu colega Pereira, que a essa hora estaria no laboratório, e perguntei-lhe se sabia alguma coisa do cadáver. Respondeu-me que o o cadáver já não se encontrava na morgue, tendo sido naquele mesmo dia resgatado pela família. Porém, quem o tinha autopsiado dois dias antes confirmou, grosso modo, a informação do jornal - o corpo apresentava escoriações ligeiras na zona pélvica, hematomas diversos, um trilho de cicatrizes antigas (que são um verdadeiro livro da história pessoal do falecido). O relatório relevava, tal como o jornal, a cicatriz post mortem (facto que se afere pela coagulação sanguinia no local do golpe, que aliás, foi produzido por uma arma corto-contundente. Finalizava ainda que o jovem era cadáver há vários dias, apresentando livores na zona lombar (mais um sinal cadavérico bem clássico) e rigidez acentuada.
Assim que tive algumas folgas do serviço, resolvi usar a minha influência junto dos órgãos da administração e seguir o rasto do jovem. Pedi algumas informações ao Pereira e dirigi-me ao registo civil, onde trabalha o meu caro amigo Serafim. Pedi-lhe nada menos que uma busca de identificação civil pelo nome, um meio eficaz e certeiro de chegarmos a bom-porto, oo qual se nos desvelou passados alguns minutos de pesquisa: o finado (embora a data de óbito ainda não figurasse no registo) chamava-se António Manuel Moreira, nascido em Setúbal, a 2 de Março de 1976, filho de Maria do Rosário Galvão e de Manuel Moreira. Por aqui pudemos constatar o seguinte: o jovem tomara o primeiro nome de seu pai como segundo nome; nascera dois anos depois da Revolução dos Cravos, e pouco mais.
Depois de três dias de preparativos, fiz a minha primeira viagem até Setúbal, onde o GPS do meu carro me levou sem dificuldade até à morada que constava no registo civil de António. Como todo o bom detective que pretende resultados rápidos, dirigi-me ao tasco da zona, bebi um café e meti conversa com aquele que se veio a identificar mais tarde como o proprietário. Quando digo mais tarde, refiro-me ao facto de ter passado largos minutos em frente do balcão sem que vivalma se apresentasse para me servir. Um grupo de velhos locais jogavam um qualquer jogo, um outro velho mais abandonado fazia uma raspadinha no canto do café e um grupo de jovens, quiçá desocupados, falavam furiosamente à porta do café. Com esta cena tive o meu primeiro impacto com a cidade de Setúbal, se bem que este poderia ser o pano de fundo de uma qualquer narração em qualquer cidade dessa portugalidade profunda. Foi então que já preparado para sair, um dos velhotes que jogava às cartas se levantou e me perguntou o que desejava. Pedi uma bica e desejei que o homem não voltasse ao seu jogo, desejo este que se realizou (pelos vistos, a presença de clientes no balcão intimidavam-no). O silêncio já pesava entre mim e o velhote, e já cansado de fingir ler o jornal, resolvi-lhe falar do rapaz e da notícia do jornal. Como é mais do que óbvio, o bom senhor sabia perfeitamente de quem se tratava, não só porque conhecera os seus pais e o próprio quando ainda era pequeno, como também era assinante do jornal. Então pensei que a notícia tinha feito furor entre os habitués durante aqueles dias, a julgar pelas duas ou três cabeças que se voltaram na minha direcção quando ouviram alguns fragmentos da conversa.
-É essa paneleiragem que anda praí, meu caro! Essa paneleiragem! Atirou o dono do café.O rapaz, pelos vistos, andava com um homem mais velho para todo lado. Talvez daí se tenha presumido que ambos eram homosexuais. Achei estranha esta catalogação imediata da vox populis, dado que não existia nenhuma referência à orientação sexual dos visados na notícia, sendo certo que esse facto, a ser conhecido, não escaparia à curiosidade do jornalista. Ainda segundo o proprietário, o rapaz "não era muito de vergar a mola", "de maneiras que se meteu por aí a vadiar, crava este crava aquele, pega neste pega naquele, e vai que quando já estava queimado em terra se aventurou no mar: Lisboa". Esta parte da biografia do moço já não era tão bem conhecida do proprietário, pelo que se depreende que todos os seus relatos desta época da vida do defunto se baseiam em suposições e conjecturas. Sabia que o moço, a dada altura, se meteu com essa malta do circo: os saltimbancos, e andava aí pelas terriolas a dar música à malta. A partir daqui, ao conjectural do relato juntou-se o caótico, tornando-se impossível discernir os factos. Resolvi tentar a minha sorte noutros lados. Perguntei ao homem se sabia onde viviam agora os pais do rapaz, ao que ele me respondeu que "lá prós lados de Alhandra".É óbvio que não confiei.
Tentei novamente a minha com o Serafim a minha sorte para procurar a morada dos pais do António, e se da primeira vez me livrei das perguntas, o mesmo já não aconteceu da segunda vez em que lhe fui pedir um favor:
- Mas ouve lá! O que é que tu pretendes com isto afinal? O homem é da tua família? Devia-te alguma coisa? Perguntou o Serafim.
- É pá, não! Estou a fazer um trabalho lá para o meu departamento e achei o caso deste moço interessante. Não tenho nada com o defunto, mas ele apresentava algumas lesões post-mortem que me interessam para um trabalho que estou a fazer sobre o papel da coagulação sanguínea na determinação do momento da morte. Fui lá a Setúbal, mas não encontrei nada de especial.
O Serafim abanou a cabeça como quem não compreende os incógnitos desígnios da Medicina Legal, os meandros da tanatologia que tanto sucesso faz hoje nas séries televisivas, e voltou à pesquisa pelo nome, aos resultados que já conhecíamos, a uma outra pesquisa pelas declarações de IRS, também inconclusiva, uma outra pesquisa pelo registo da segurança social, o que finalmente revelou alguma coisa. Os pais do rapaz não viviam para os lados de Alhandra, como tinha dito o raio do bêbado, mas sim na zona de Torres Novas, numa vilazita lá perto que me propus visitar no primeiro fim-de-semana que tivesse livre
Cheguei a Torres Novas por volta das três da tarde, onde utilizei uma técnica semelhante àquela infrutuosa da visita a Setúbal. Fui ao café da zona, perguntei pelo Sr. Manuel e pela Sra. D. Maria Rosa. O dono do café conhecia-os mal, "só de de vista", mas sabia de um tipo da limpeza do condomínio que os conhecia melhor. Talvez me pudesse dizer onde os encontrar. Assim esperei mais uma hora no café, tempo estimado pelo dono para encontrar o tal sujeito, que de facto chegou. Contei-lhe o motivo que me levava lá e foi-me sugerido que esperasse pelas seis. Enquanto a hora se aproximava, as incertezas assaltavam-me. Como iria lidar com duas pessoas que acabavam de perder um filho, para mais de forma tão trágica? Como me apresentaria? Jornalista? Psicólogo do Estado? Quanto à primeira hipótese, se é certo que pessoas há que se desnudam diante dos jornalistas sem que lhes seja necessário pedir duas vezes, a verdade é que casos há em que os visados fogem dos homens do microfone como os gatos da água. A jogar pelo lado mais arriscado, decidi-me apresentar como enviado do Instituo Médico-Legal que, de resto, era o que estava mais próximo da realidade. Deveria falar tão rápido e sem menor hesitação, tão natural como a respiração.
Encontrei os senhores passava já um pouco das seis da tarde. Eram um casal com cerca de 60 anos cada um, aparentavam humildade e preparavam-se para abrir as portas do edifício.
- Boa tarde! O meu nome Gabriel Silva, venho do Instituto Médico-Legal e gostaria de lhes fazer algumas perguntas, se for possível... O homem olhou-me com olhar pesaroso, exibindo duas olheiras enormes de quem já não dorme correctamente ou simplesmente não dorme há vários dias. A senhora lançou-me um olhar um pouco mais evasivo, uns olhos vermelhos de tanto enxugar como se estivessem marejados de lágrimas durante vários dias.
- Entre, faça favor, disse o homem a meia-voz. Subi.
2.-
A conversa começou de forma entrecortada, como não poderia deixar de ser, com uma breve apresentação da missão da minha visita. Enquanto falava, pude observar alguns dos retratos que enfeitavam a sala-de-estar. Vi molduras do casamento dos pais de António, algumas fotografias nas quais figuravam três elementos, pelo que supus que esse terceiro seria o seu filho. Em todas as fotos que aparecia era criança. Pelo menos, não consegui ver uma única foto em que reconhecesse os traços da criança num adolescente ou num adulto.
Explicaram-me que o António fora sempre uma criança sossegada e, realce-se, com um talento natural para a escola. A mãe, aviltando para o céu uns olhos azuis aguados de loucura, dizia-me que o António tirava notas excelentes a tudo. Começara na escola muito entusiasmado, mas a dada altura, sem que ninguém o conseguisse explicar, começou a andar triste e cabisbaixo. Não se lhe conheceram amigos de brincadeiras ou aquelas namoraditas de escola que todos os miúdos têm, como explicou o pai. Ia para a escola, regressava a casa e enfiava-se no quarto. Não tinha posters de super-heróis nem de “heroínas”. Ao que parece, o seu fiel companheiro, mesmo quando não transportava consigo a sacola, era o seu caderno, que o acompanhava para todo lado.
Assim andou até que se mudaram para Torres. Nessa altura tinha já idade de ir para o liceu, no entanto, ainda segundo a mãe, a rotina do jovem não sofrera quase nenhuma alteração, até que um belo dia avisou os pais que ia mudar de cidade. Ninguém o conseguiu impedir, pelos vistos, a esse rapazola que já era maior de idade. Depois soube a mãe por pessoas conhecidas, que o António se tinha junto a um grupo de saltimbancos e seguiu a carreira de palhaço. Pelos vistos, quem o metera lá fora um tal de Pelagio, um velho bêbado lá de Torres.
- Se o vejo ainda lhe rebento com a cabeça, explodiu o pai. Esse paspalho bêbado desencaminhou o meu filho. Ninguém sabe o que lhe fizeram para se juntar àquele grupo de ociosos ignorantes! Se não tivesse encarreirado por aí talvez ainda fosse vivo e tivesse uma boa vida.
Mas Deus assim não quis, acrescentou a mãe.
Perguntei-lhes se sabiam onde podia eu encontrar esse tal de Pelagio, ou talvez a sua morada. O pai disse que não sabia ao certo, mas ouvira dizer que o sujeito estava num lar de terceira idade lá em Torres. Sabia ainda que, pelos vistos, o velho ainda bebia como uma cabrita.
Não difícil encontrar o Lar onde supostamente se encontrava Pelágio. Bastou o primeiro nome na recepção para que me respondessem afirmativamente.
Conduziram-me a um quarto velho por entre uns corredores de tinta descamada, uma espécie de antecâmara e representação do ser que albergavam.
Talvez o termo "acabado" definisse com precisão toda a figura de Pelágio e o ambiente que o circundava. Os seus cabelos escasseavam no cimo da cabeça como as espigas erectas escasseiam num campo de milho após a poda; o seu bigode esbranquiçado ostentava uma enorme mancha amarela que nos fazia adivinhar o seu hábito desde há muitos anos. A sua estatura era mais para o baixo do que para o alto. As peles descaídas enfeitavam uma dessas caras que já viram muito , deformadas pelo cortejo de horrorres da vida, e um dia já viram tudo e continuam perdidas nessa floresta de enganos. Víamos numa pequena dobra acima da testa as canseiras do dia em que se acabou o dinheiro para comprar leite para a filha ainda bébé, e como desesperado correu toda a vizinhança à procura de um mísero pacote de leite e todos o negaram até que em desespero se dirigiu ao hospital e conseguiu alimentar a menina. Aquela pálpebra a pender sobre o olho fala-nos de todos esses trilhos e caminhos de terra que percorreu com os miseráveis do circo, as tardes inteiras a montar tenda e abalar a sete pés quando a coisa corre mal. Do fundo do olhar transparente, vê-se a imagem de uma menina que não queria ser miserável, cantar cançonetas num circo de terceira e apanhar porrada do pai, e um dia se torna-se uma bela mulher, embora já longe, muito longe...
Encontrava-se sentado numa cadeira de repouso junto à cama dos anos vinte que lhe tinham generosamente cedido. Via televisão, um qualquer programa da manhã, parado, como quem está e não está. Quando o segurança lhe anunciou que tinha visitas, Pelágio olhou com indiferença na minha direcção, como que estranhamente esperando a minha visita, ou tomando a nossa visita pela visita de outra pessoa. Apertou-me a mão, revelando um vigor inesperado dos braços, embora fosse claro pelo seu estado de ânimo, que não era mais um desses pobres velhinhos que aproveitam qualquer oportunidade para pôr a conversa em dia, falar das suas aventuras passadas, do seus amores (sempre concretizados). Pelágio parecia escapar a este estereótipo. As primeiras palavras que me lançou pareceram sair a contragosto. Talvez por isso resolvi ir directo ao assunto e perguntei-lhe se tinha trabalhado no circo "Irmãos Carvinali".
-Ah sim, esses bandalhos! Tive a infelicidade de os acompanhar durante algum tempo da minha vida.
- E conheceu um rapaz que era palhaço? O António?
- Sim, também me lembro desse bandalho. Andou por lá alguns tempos, pelo menos enquanto ninguém teve coragem de lhe dar um chuto no cú. Andava sempre bêbado como um cacho, se bem que eu, e todos nós, preferiamos ver o tipo bêbado. É que quando estava sóbrio dava pena olhar para ele. Sempre melancólico com os olhos no chão, a pensar na morte da bezerra. Um dia perguntei-lhe em que é que raio é que ele pensava. O safado apenas me respondeu :"-coisas". E prontos, lá estava... Só fazia porcaria! Olhava com cara de estúpido para toda a gente, uns olhos estranhos os daquele bardameco... Ficava com as bochechas e a ponta do nariz vermelhos como um tomate e abria um risinho estranho com os dois dentes da frente muito abertos à vista de toda a gente.
- Então e quanto tempo andou ele convosco?
- Eh sei lá! Aí uns dois anos. Um dia demos uns espectáculos aí numa terriola onde Judas perdeu as botas e as coisas deram pró torto. Houve um Domingo em que ficamos sem som e sem trapezista. Esse também era um bom bandalho, era... O gajo partiu as costelas, esteve no hospital uns tempos e depois ninguém mais o viu. Já o bandalho do Tony (assim chamava ao rapaz), um desses dias lá na terriola, foi lá um gajo falar com ele depois do espectáculo. Era um velhote careca, com cara de quem é mais mau do que a ferugem! A malta chegou a dizer que os dois eram ravetas. Não digo que não!... O outro gajo tinha uns olhos tipo... verdes .... e fundos... sem expressão. Parecia o raio de um demónio!
- Não sabe, portanto, o que lhe aconteceu depois? Continuei.
- Eh pá, não sei ao certo. Sei que um dos nossos, O Sansão, a quem nós chamavamos assim porque o tipo era o homem de ferro lá do circo, viu-os uma vez em Lisboa a dar espectáculo na rua. Na altura disse-me que não percebeu bem o que os gajos estavam ali a fazer. Só reparou que o careca falava alto para um grupo de pessoas e o Tony estava vestido à zé-povinho, com aquela cara de estúpido a olhar pra toda a gente. Vá lá um gajo saber... Se calhar eram mesmo paneleiros!
- Olhe, Sr. Pelágio, sabe onde anda agora esse tal Sansão?
-Ah, esse sei! Esse é bom moço! É trabalhador! E Moço esperto! Parece que agora é segurança numa casa de meninas lá em Lisboa. Ai esse bandalho!
- Obrigadíssimo Sr. Pelágio, nem sabe como acaba de ajudar!
- Mas lá o bêbado do Tony meteu-se em alguma foi?
Pensei um pouco antes de responder, e como não estava com tempo nem disposição para explicar tudo de novo, esperar todo um coro de interjeições e bandalhos para trás e para diante, resolvi abreviar a conversa limitando-me a responder que não, que eram só os pais que queriam saber dele.
- Entretanto precisa de alguma coisa, Sr Pelágio?
- Meu amigo, se me pudesse arranjar um cigarrito. Aqui ninguém vende e já cravei demasiadas vezes os mesmos macacos.
Dei-lhe o que restava do meu maço.
3.-
Há momentos em que não se faz nada de produtivo. Essa doce sonolência que a rotina traz aos dias abateram-se sobre mim como um torpedo nos dias seguintes à conversa com o "bandalho" do Pelágio. Tentei pôr as ideias no lugar e desenhar as futuras estratégias para seguir o rasto a António. Porque tinha ele abandonado os pais para se juntar a um bando de saltimbamcos no limiar da miséria? Porque deixou ele tudo para ir com aquele homem sinistrio com dotes de orador? Seria a sua homosexualidade, se de facto era homosexual? Porque tudo vale o que quer que seja, talvez o acto mais nobre da vida de um homem seja pôr cobro ao anonimato de uns e outros que passeiam pela vida, esses, que mortos viverão na memória de alguém. Mas a vida e identidade de um vale o anonimato de todos, um único organismo: as sensações, amor, sofrimento, alegria, tortura, injustiça de todos.
Não foi fácil encontrar Sansão, pois porque Sansão não era o seu nome verdadeiro. Depois porque o Pelágio só sabia o primeiro nome do homem de ferro, pelo que se bloqueou a hipótese de recorrer novamente à ajuda preciosa do Serafim. Resolvi seguir por um caminho espinhoso. Não sendo eu frequentador desse tipo de estabelecimentos desdobrei-me em esforços para visitar uma dessas casas de perdição, conhecida de passagem.
A minha primeirissima experiencia nesses ambientes foi péssima. Apenas acabado de chegar, uma mulher cuja cara parecia já ter sofrido topo tipo de injúrias, albergado todas as agressões e secreções humanas, perguntou se lhe pagava um copo. Repugnou-me, como me repugnavam todas outras. Bebi apenas uma imperial (que me custou os olhos da cara), dirigi-me ao segurança e perguntei-lhe se conhecia um tal de Vítor, segurança como ele numa casa da "especialidade", na esperança de ser verdade aquele mito que diz que no mundo incógnito da noite todos se conhecem (para o bem e para o mal). Talvez fosse um bom ponto para começar. De resto, acertar à primeira era quase impossível, pois Lisboa tem tantas casas de putas como o as flores abundam no jardim, facto bem conhecido desde o célebre General de Eça de Queirós.
O segurança franziu a testa com estranheza e disse que não. Lembrei-me então de perguntar pela alcunha: o Sansão, e esse sim, que conhecia, que trabalhava lá numa casa para os lados do Cais do Sodré. Mas porque queria falar com ele afinal, perguntou-me o troglodita. Respondi-lhe que era colega do guinásio e precisava de conversar com ele sobre uns assuntos. O troglodita franziu mais uma vez a testa, não deixando de achar estranho que uma figura franzina como eu frequentasse o ginásio, mas lá aceitou a resposta por boa.
Chegado ao outro local, trôpego no sufragar convidativo da noite Lisboeta, jovem virginal durante o dia, puta durante a noite, do local retive imediatamente o aspecto geral de chique foleiro, a luz vermelha ténue que sai das janelas e as mesmas caras que havia visto no lupanar anterior. A luz amarelada do Cais do Sodré, donde outrora se esperava a chegada de um Messias, estendia o seu braço de maresia de mortos ao mundo dos vivos, lambendo generosamente o edifício. A primeira figura com que me deparei à entrada foi um homem com os seus 34 anos, ligeiramente calvo e de aspecto robusto, embora não do género bovino como o seu colega. Deu-me uma boa noite em maus modos, e apeava-se já contra a parede para me ceder passagem, quando estranhou a minha hesitação na entrada. Perguntei-lhe se era ali que trabalhava o Sansão.
-Talvez... Quem deseja falar com ele?
- O meu nome é Gabriel e preciso de falar com Vítor. Um amigo dele, o António, faleceu há umas semanas atrás.
- É da polícia? Quem lhe disse que o Vítor era amigo do António?
- Se era amigo ou não, disso não tenho a certeza. Estou aqui pelos pais do António, que estão em grande sofrimento e precisam de ver esclarecidas as circunstâncias da morte do seu filho.
- Já não vejo esse sujeito há alguns anos. Há dias reconheci a foto dele no jornal.
- É você o Vítor?
- Sim, sou eu. A malta chama-me Sansão mas prefiro que me trate por Vítor.
- Muito bem! Encantado!
- Isto fecha daí a uma hora. Por volta das quatro já estarei disponível para falar consigo. Encontramo-nos aqui à porta.
- Muito bem, combinado, disse eu.
Resolvi não me afastar muito do local. Embora esteja arredado destas lides nocturnas há já alguns anos, sempre que me lanço no seu abraço negro atrai-me, como diria o contista, "uma estranha força". Resolvi então apear-me numa roulotte da cercania de uma discoteca e comer alguma coisa enquanto observava os grupos de jovens (alguns muito jovens) cambaleando embriagados para os bares e discotecas. Via alguns grupos ainda maiores, às vezes com raparigas apenas, numa embriaguez em que até as pedras da calçada parecem caminhar bêbadas, vacilantes a cada passo que as pisa, flutuando em ebriez geral com os edifícios decadentes.
Acabei o cachorro e caminhei a passo acelerado para a porta do lupanar, onde encontrei Vítor à minha espera fumando um cigarro.
- Peço desculpa, esperou muito por mim?
- Não, estou aqui só há dois minutos. Não se preocupe. Podemos ir ali a um after comer alguma coisa e falar um pouco.
- Venha, podemos ir no meu carro. Está ali estacionado, disse eu.
- Não se preocupe. O after é já na rua paralela. Podemos ir a pé.
Caminhamos lado a lado, eu e Vítor, em silêncio, cruzando-nos com os mochos piadores habituais de Lisboa, os mesmos grupelhos, jovens de ar sinistro, prostitutas de rua, sem-abrigo. Encontramos o after, que me pareceu uma tasca normalíssima e sentamo-nos. Apenas dois bêbados enfeitavam o balcão com a cabeça apoiada nas mãos.
- Então, come qualquer coisa? Perguntou Vítor,
- Não não! Muito obrigado! Acabei de comer.
- Então vou pedir alguma coisa para mim.Vítor pediu uma bifana e uma imperial. Comia sem me dirigir a palavra. O silêncio começava a tornar-se pesado, quando resolvi quebrar o gelo. Afinal sentia-me nessa obrigação, já que tinha sido eu o provocador de tudo aquilo.
- Porque é que acha que aconteceu aquilo, Vítor?
- Aquilo o quê? fez-se de desentendido.
- Aquilo com o António. Leu a notícia, não leu?
- Sim, li. Não me espanta nada.
- Porque é que diz isso? Há uns dias atrás falei com um senhor que disse ser seu antigo colega dos tempos em que trabalhava no circo. Conhece o Sr. Pelágio?
- Sim coheço! Isso foi há muito tempo. Sinceramente, é uma parte da minha vida que prefiro esquecer.
- Mas porquê, não gostava do que fazia?
- Não.
A partir daqui compreendi que não valia a pena insistir no assunto, pois que o meu interlocutor se mostrava de todo indisposto para continuar nesse tema.
- Mas ainda não respondeu à minha pergunta, Vítor. Porque acha que aconteceu aquilo ao António. Acha que ele se meteu com más companhias? Foi isso que o Pelágio insinuou...
- O Pelágio é um velho bêbado! Desde que se zangou com a filha que não bate bem da bola.
- Ele disse-me que o António abandonou o circo para ir com um homem sinistro que conheceu após um espectáculo desastroso. Lembra-se disso? O Pelágio insinuou mesmo uma relação homosexual...
- Não me parece, cortou Vítor. O António estava doente.O que aconteceu depois foi apenas uma conclusão natural do que já era suposto acontecer.
- Estava doente? De que tipo de doença sofria? Os pais do António não me falaram nada sobre isso.
- Estava doente mas não de uma doença daquelas que se curam com medicamentos, umas visitas ao médico e uns dias de cama. A sua era uma doença da alma, uma espécie de cancro na alma que si ia espalhando até se tornar fatal.
- Como é que sabe isso?
- Reconheço-o pelos sintomas...
- Pelos sintomas? O Pelágio disse-me também ter sido você foi o último a saber o paradeiro do António. Viu-o cá em Lisboa com o tal sujeito sinistro, não foi?
- Pióguin. Esse sujeito chama-se Pióguin.
- E acha que o Pióguin tem algo a ver com a morte do António?
- Não sei. Como lhe disse o bêbado, a última vez que o vi foi há algum tempo, talvez uns dois anos. Estava com o Pióguin perto do Chiado.
- Mas estavam a fazer o quê, concretamente? Esta parte do relato do Pelágio não compreendi bem. O que fazia então esse Pióguin, e o que fazia o António com ele?
- Pióguin é um pregador. Creio que lhe podemos chamar Pregador.
- E o que prega ele?
- Ao que consegui ouvir e ao que me disseram algumas pessoas que também ouviram, parece que falava num tal "Recomeçar da História". Não me pergunte o que queria dizer com isso. Tudo o que posso dizer é que tinha uma cabeça calva ameaçadora e um olhar vazio, mas tão vazio e tão amplo de espaço que tudo poderia caber lá dentro...
- Que fazia o António com ele?
- O António não fazia nem dizia nada. Limitava-se a ficar calado, vestido de palhaço, com aquele olhar e risos sinistros olhava fixamente todos os presentes como se os ameaçasse de algo, mas sem palavras. Lá ficava, com as bochechas e nariz rosadas, uma figura ainda mais cómica do que a do palhaço convencional, mas o que é certo é que ninguém se ria.
- Então afinal o que vinha a ser aquilo? Disse eu.
- Não sei. Sei que só o Pióguin falava em gestos lentos e decididos, enquanto o António acompanhava o discurso calado e sorrindo para todos. O mais estranho é que os presentes só olhavam para o António. Ninguém parecia olhar para o Pióguin.
- Estranho... Faz ideia do que queria dizer ele com aquilo?
- Não.
- Recomeço da história... Acha que alguma vez a história parou?, disparei eu.
- Acho que não, mas talvez aparente ter parado. A única coisa de que não tenho dúvidas é que personagens como o Pióguin surgem em contextos muito especiais.
- Como assim? Perguntei eu.
- Não é que eles não existam noutras épocas, mas como que ficam hibernados durante esse tempo, até que farejam a altura certa para sair do casulo.
- Sim, compreendo... Qual achas que é o papel do António no meio desta história?
- O António? O António é o palhaço! Conhece alguma comédia sem palhaços? Toda aquela gente que se fixava assustada no António via-o como o seu espelho de medo.
- Mas medo de quê, perguntei eu?
- Medo do que está para vir.
- Então e você Vítor? Porque acha que tudo isso é como diz? O que acha que levou o António a acompanhar o Pióguin?
- Não, sei. Talvez a mesma razão absurda que me colocou na posição de lacaio numa casa de putas de terceira, em vez de numa bela zona residencial da cidade, com uma esposa bonita e dedicada e com dois filhos inteligentes.
- Compreendo Vítor... Mas isso incomoda-o assim tanto?
- Já não incomoda. São apenas sombras, eu, você, o António e o Pióguin. Todos sombras.
A partir daqui a conversa voltou a banalidades, como sempre acontece numa conversa de trintões, o tempode acabarmos de comer, pagar e sair.
De novo na rua, uma estranha névoa da primeira luz do dia envolvia as ruas do Cais do Sodré, e os edifícios agora semi-descobertos pareciam-se conformar na sua inevitável ressaca, Despedi-me do Vítor. Observava-o enquanto atravessava a estrada, como o seu imponente físico parecia adelgaçar com a distância. Não se voltou nem percebeu que ainda o observava, nem mesmo quando, sem que ele me observasse, levantava a mão numa saudação eterna e dizia a meia voz:
- Adeus homem-de-ferro! Adeus...
domingo, 13 de fevereiro de 2011
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