João Silva é aquilo a que podemos chamar “Um Homem Bom”. Tem 45 anos, uma família (uma bela esposa, dois filhos inteligentes, uma casa, um cão), uma casa de duas assoalhadas e um carro de classe média. Na linha daquilo que tem sido nos dias de hoje uma raridade, João tem também um emprego. O seu emprego é bem pago e permite-lhe cobrir quase todas as despesas com a casa e a família. Recentemente começou a encetar esforços sérios para escrever de acordo com o novo acordo ortográfico.
Certa vez, em conversa com os seus amigos, alguém suscitou o caso de João ter aquilo a que se chama um emprego estranho. Digamos que seu emprego consiste em nada menos do que entrar numa sala (bastante limpa), sentar – se numa cadeira de madeira e carregar num botão. Alguém mais sagaz do grupo teve a curiosidade de lhe perguntar o que fazia em concreto. “Como em concreto? Carrego no botão e já está! É sobretudo um trabalho de paciência. Devo repetir o gesto de hora a hora, pelo que o controlo rigoroso do tempo é essencial! Reconheço que de início custa um pouco, isto é, torna-se um pouco monótono, mas com o tempo a gente habitua-se.” Um outro elemento do grupo, o qual poderíamos chamar de “o maledicente”, sorriu, como não poderia deixar de ser, com maledicência, e acrescentou: “Ok! Já percebemos isso! Mas queremos saber em concreto para que serve o que fazes. Os seus efeitos, compreendes? O que é que se produz?” João sorriu nervoso e respondeu que não sabia. Que se limita a carregar no botão. Depois, em jeito de justificação, teceu graves considerações sobre a especialização do trabalho, a informatização, a terciarização da economia de que o século XXI é o expoente máximo. Falou ainda na hiper-especialização e na informatização e na mudança do valor do trabalho. Quando terminou, poder-se-ia dizer, sem exagero, que todos estavam razoavelmente esclarecidos.
Dirigia-se para casa e reflectia sobre aquilo que havia pouco tinha dito. Não tinha pensado nisso nunca e sentia-se mesmo tentado a comentar o caso com a esposa, que foi o que fez.
O único comentário tecido pelo cônjuge ao recente problema existencial do marido não o satisfez. Limitou-se a dizer: “Cada um sabe de si e Deus sabe de todos!”. Com a esposa não se pode comentar o caso, parece líquido.
No dia seguinte voltou ao trabalho convencido daquilo que fazia. Daí que não surpreenda a segurança e convicção com que premiu o botão na primeira hora do dia. Mas dêem ao homem tempo e motivo e acabará por viajar aos quatro cantos da terra sem sair do quarto. Em boa verdade, o seu trabalho também se prestava a reflexões, já que não exigia muito de si. Para que fosse correctamente cumprido, bastava ter uma mão (já que uma chegava), dito de outra forma, uma mão com dedos (admitindo que se pode ser legítimo possuidor de uma mão sem dedos) e, sobretudo, a pontualidade de um britânico.
Na segunda hora, depois de ter premido pela segunda vez o botão, o bichito que tinha surgido no dia anterior depois da fatídica conversa, ganhou-se ares e cresceu a olhos vistos. Foi então que o nosso bom homem tomou uma das decisões mais arrojadas da sua história pessoal contemporânea : ainda antes do almoço interrogaria o seu Imediato sobre a questão. Foi o que fez. De início, o Imediato franziu a testa, notando-se algumas rugas jovens de quem não tem por hábito franzir a testa. A sinfonia de expressões inclui ainda um encolher de ombros, um levantamento de mãos e uma contorção de lábios, como que antecedendo a resposta de que não, que não sabia. João perguntou-lhe se poderia interrogar alguém potencialmente sabedor da resposta. O Imediato franziu novamente a testa, embora desta vez, à rugazita da perplexidade se tenha junto uma outra (como que renascida) a que poderemos chamar a ruga do medo. João compreendeu a situação, pois apesar de tudo é um homem perspicaz.
Há horas que maldizemos e que se nos afiguram determinantes, e esse hora maldita em que alguém colocou a felicidade de João em cheque parecia ter mudado o nosso bom-homem. A esposa queixou-se da sua atitude, que classificava de “estranha” e “apática”, dois adjectivos que bem poderiam ter sido proferidos pelo seu círculo de amigos mais próximo. Não era, porém, apatia que nascia na face do nosso homem, mas um certo tipo de curiosidade, quiçá, aquele tipo de curiosidade tão perigoso que tanto sofrimento espalhou ao longo da história.
Os dias de trabalho seguintes foram penosos para o nosso herói. Já não avançava com o dedo com aquela determinação que o antes o caracterizava, mas vacilava, hesitava, tremia com o dedo, chegando mesmo a padecer de ligeiros atrasos no cumprimento do seu dever periódico. Inspeccionava com o olhar, e tão só com o olhar, o espaço circundante ao botão, a parede asséptica que o abraçava e que parecia engolir todo o espaço envolvente, a cidade, a alma. Perguntava-se o que haveria para além da parede aparentemente inviolável. Começara a reparar no edifício onde trabalhava, um colosso de vidro e de metal e procurava pensar onde acabaria o edifício reproduzido em toda a cidade, envolto e pequenos casulos, envolvendo tudo.
Um dia resolveu ir um pouco mais longe. Aproveitara o fim-de-semana para inspeccionar o local, e qual não foi a sua felicidade quando encontrou uma fissura nas traseiras do prédio. Tratava-se de um pequeno rectângulo por onde era evacuado o lixo que se produzia no interior. Tendo penetrado no seu interior, João foi vencendo os sucessivos obstáculos que se lhe deparavam com o seu cartão de identificação, que ao contrário do que pensava lhe permitia a entrada em praticamente todas as repartições. O labirinto de corredores inexpressivos começava a desesperar João. Apenas distinguiu do resto da paisagem uma pequena passagem onde entrou sem dificuldade. Do outro lado da parece de cartão parecia surgir um gemido, mal confundido com o som monótono de um motor de um aparelho electrónico. Talvez o silêncio que reinava lhe permitisse distinguir esse som nunca antes revelado. Além disso, será que mais ninguém o ouvira? Saiu.
A condição psicológica de João detiorou-se a olhos vistos nos próximos dias. Os seus sintomas convergiam numa espécie de vertigens que se acentuavam quando caminhava ou nos momentos de cansaço extremo. As horas passadas no trabalho eram penosas. As vertigens voltavam ciclicamente, soando-lhe no ouvido o grito ou gemido indecifrável que ouvira na véspera. Ponderou desistir do emprego, mas o forno não estava para empadas. A situação do mercado de trabalho era lamentável e não parecia vir a melhorar num futuro próximo. Quem pagaria as despesas?
Embora se resignasse à sua função, isso não impediu que um dia perguntasse ao Imediato de onde viria esse gemido que não lhe largava ou ouvidos, e se mais ninguém o ouvira, e porque seria assim, e o que estaria do outro lado do botão. Um momento após pensava friamente a sua condição, vacilava um pouco e premia o botão.
sábado, 25 de dezembro de 2010
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Boa história, meu caro! Li-a com agrado e curiosidade. Grande abraço
ResponderEliminarObrigado Low! É a primeira de um ciclo que estou a escrever. O mote, indicado no post anterior, é a vida como equilíbrio impossível.
ResponderEliminarGrande abraço e boas postagens!