Um dia saí de casa para voltar. Descia o elevador e premia o botão de todos os dias, o que me leva ao rés-do-chão. Passava pelas ruas de sempre e via os prédios em estilo arquitectónico cretino. Sabia que um dia me iam engolir, a mim e à minha vida. Fiz as minhas tarefas rotineiras (e, confesso, encontrei aí algum prazer). Diz a ciência moderna que o cérebro procura a rotina para evitar o stress. Depois pensei em chá e em água com gás, e que os bebem abundantemente na Europa de Leste e na Ásia (quiçá como lenitivo da fome?). Voltava para casa. No verão, era ainda de dia quando isso acontecia. No inverno, acendiam-se já os primeiros candeeiros de iluminação pública. Depois pensava que Marx e Engels tinham já candeeiros de iluminação pública no seu tempo. Talvez sonhasse com Marx e Engels atirando pequenas pedras aos candeeiros em noites ébrias. Quando chegava à porta de casa, dois cães açaimados (por quem?) ladravam-me. Estranho! São de boa raça. Que estranho que dois cães de boa raça me ladrem, talvez intimidados pela minha estatura? Depois pensei em pernas e braços e beleza. Olhei pela janela e uns olhitos azuis troçavam de mim. Esperei mais um pouco e vi os cães de boa raça ladrar a uma criança negra, que corria espavorida, salva à última da hora por um benemérito mecânico miraculosamente perto do sucedido - "Calma! Calma!! Não mordem", diz apaziguador.
No dia seguinte, enquanto fazia o jantar e pensava na extinção dos corais da Polinésia, ouvi os cães ladrar a uma senhora com uma criança ao colo. Percebi que dizia (ou chamava) alguma coisa. Um jovem dos seus dezoito anos, boné, estatura baixa e cabelo ralo, chamava-os e fazia-lhes festas. Mais uma destas e ligo para o canil, pensei. Qual o sentido, pergunta-se, de haver cães e senhora e vida, se nada parece fazer diferença? Porque é que sombra dos seus rabos se estende cada vez mais, invadindo as varandas na ténue luz da noite, cada vez que se afastam?
Talvez o compreenda, se numa numa dessas noites precoces de Inverno me dirigir a casa e vir duas sombras no quarteirão anterior ao meu. Pode ser que veja cães junto à minha porta (ou, quem sabe, dois lobos?) e estes avancem para mim em silêncio. Com um pouco mais de sorte, talvez veja ainda um terceiro desconhecido junto à porta, uivando.
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
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