Interrompendo o serpentear da cintura muralhada da
cidade, ergue-se um imponente aqueduto com cerca de oito quilómetros e
oitocentos e quarenta e três arcos de extensão. À vista desarmada, estamos
perante um Coliseu desmembrado, segundo fontes da época, obra complexa e
onerosa. Mas ficou, e perante a vista que alcança a cidade pelo lado oeste
parece tão só o primeiro obstáculo não natural nas vastas planícies que deixa
para trás – uma via rápida para a capital do Império.
Na verdade, a cidade resume-se ao seu centro
histórico, bastante fácil de identificar: começa quando começam as várias
construções muralhadas. Estas conservam fragmentos de todas as épocas, como é
costume nestes casos, um fenómeno da sobreposição, sinal de que as coisas quando
não se fazem por imitação, fazem-se porque os seres humanos, qualquer que seja
a época em que vivem, sentem necessidades muito parecidas. Estas sucedem-se: a
muralha fernandina, a de D. Dinis e respectivas torres, árabes, góticas,
romanas, celtas. Todos partilharam a mesma obsessão: muralhar, abaluartar,
fortificar, couraçar, defender.
Do outro lado da parte alta da cidade, a primeira
povoação do país vizinho encontra-se plantada em campo aberto numa planície árida.
Parece ignorar olimpicamente o que se passa do outro lado, quando do cimo das
inúteis fortificações couraçadas a contemplamos. Sentimos ainda hoje a ordem
imperiosa de vigília, atenção, desconfiança.
O caminho do velho castelo medieval ao centro
leva-nos direitinhos à Sé Catedral, um curioso edifício em frente do qual se
espraia o coração cívico e comercial da cidade. Contemplados pelo velho astro
da religião do alto dos seus séculos de indiferença divina, materializada em
pedra gasta e amarelada, não restam senão idosos em torno da praça para mais um
fim-de-semana de pasmo e miséria contida. Nada indica que seja diferente
durante a semana. Os velhos já não se dão ao trabalho de conversar ou jogar às
cartas. A impressão fundamental é a de que esperam. O quê? Um dos velhos salta
alguns pregões fogosos: «Ah, sua cambada de velhadas! Estes já não fazem mal a
ninguém! Deveriam era morrer todos! Anda o estado a gastar dinheiro com esta
gente para quê?» Dito isto, levanta-se em sobressalto da parede onde se
encontra apoiado e os seus olhos vivos percorrem nervosamente a toda o entorno
como se procurasse algo por entre o vazio. Quem é apanhado no ciclo vicioso da
pobreza, por mais ignorante que seja, revolta-se, esbraceja, esperneia.
Conclui, apoiado por todos os argumentos da razão, que a sua situação é
inaceitável e desumana e em diante não há nada e não acontece nada, e o
progresso louco, imparável do mundo continua sobre a solidão até normalizar o
anormal.
De costas para a justiça divina, encontramos o
pelourinho da cidade. Está bem conservado. Talvez por isso tenha sido
recentemente considerado património da humanidade. Ostenta um belo pedestal, um
alto fuste rematado pelo capitel em forma de prisma onde ainda hoje encontramos
os ferros da sujeição, talhados em forma de cabeça de cão com uma língua comprida
e achatada como se estivessem esganados. Seguram as argolas dos tempos da pena
capital, onde morriam os condenados ao suplício final. Não custa imaginar que
em terras de fronteira, num qualquer dia de auto de fé, se encontrassem os
quatro espigões ocupados com a função para a qual foram concebidos. O seu
aspecto grotesco seria uma espécie de ironia final para os acusados que,
segundo dizem os sobreviventes da experiência, atentam especialmente aos pormenores
nos seus últimos segundos de vida. Do lado direito do pelourinho, uma espécie
de arco do triunfo de uma qualquer ordem de cavalaria que batalhou contra os
mouros. Quais mouros?
Pela estreita calçada medieval, dois rapazes descem.
São as criaturas mais feias e assustadoras que vi em toda a minha vida. O mais
alto apresenta uma cara disforme e olhos de maldade, uma cicatriz no nariz
aparentemente quebrado várias vezes no mesmo sítio. O outro é baixo e magro. Veste
umas calças largas e uma camisa colorida, usa o cabelo pintado de um tom
indeterminado. Parece uma daquelas figuras ridículas dos filmes de terror, capazes
de cometer os actos mais atrozes.
Já sei, são os descendentes desses outros criminosos
que em tempos eram levados aos espigões implacáveis da justiça de Deus. Teriam,
no máximo, uns vinte e cinco anos. Nasciam e cresciam nos bairros pobres da
cidade, onde os esperava a servidão nos mesteres das corporações ou nos campos
à volta, o exército e a certeza de uma morte prematura ou, a opção mais
apetecível de todas: a bandidagem, normalmente, o tráfico. Nesta última
hipótese, a sua vida seria também miseravelmente curta, mas iluminada por miragens
de liberdade e pelos prazeres furtivos da saciedade e do sexo. Tinham ainda
tempo, antes de acertar as contas finais com O Criador, de fazer dois ou três
miseráveis garantidos em raparigas adolescentes dos bairros populares, daquelas
que aos quinze anos espelham nos olhos a tristeza de quem é maltratado pela
vida.
Acaba-se a visita com a impressão inevitável de que
a função daquelas couraças e fortificações é a manter prisioneiros os seus
próprios habitantes, com cujo sangue era regada a poeira dos rigores do clima
do sul quando os Deuses se achavam indisposto.
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