Hoje, soberana de madura idade, projecto-me respeitosamente num texto bucólico de um manual primário do estado novo. Aquela ingenuidade maldosa não podia senão fazer-me lembrar a tua pessoa.
Confesso que decorei as tuas habilidades muito rápido. Nem eram assim tantas, talvez apenas as suficientes para unir dois desesperados da vida.
Lembro-me como dispensámos as palavras na primeira vez que fizemos amor, vislumbrei de relance toda a porcaria e desolação que o nosso mundo abraçou, e uni-me a ti apenas num conjunto de verbos conjugados no infinitivo, proposições que pedem acusativo aguentam com um dativo e outras frases deliciosamente mal conjugadas.
Depois, como previsto, afastei-me.
Lembro-me como te embrenhaste numa montanha filosófica de rompante. Passava de manhã na biblioteca e via-te com duas torres de livros. Gritavas-me em furor: «olha, afina o Sócrates também era sofista! A filosofia começou com Platão!»; «olha, o Nietzsche é tão escolástico e romântico como os seus comparsas alemães!», olha..., olha… Confesso que muitas vezes foi a piedade cristã que me fez ouvir.
Choveram ainda poemas! Centenas deles! Quadras, vilancetes, decassílabos, heptassílabos, rimas, paronímia e verso branco. A maior parte das vezes passavas desinteressado à cafetaria da esquina, olhando para um ponto invisível enquanto fumavas.
Hoje, confesso, sei muito bem o que tudo isso significava. Aquela portentosa armadura conceptual, a parafernália de silogismos, as aliterações, oximoros, metáforas e antíteses: uma carta de amor, uma densa e interminável carta de amor.
Mas que básicos que os homens são.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
terça-feira, 25 de outubro de 2011
5- Fim da História
Fui ensinada a acreditar. Afinal de contas, fui criada entre gente boa. Na minha infância era aquilo a que chamam uma wunderkind. As professoras apresentavam-me sempre como modelo quando havia inspecções na escola. Acontecia mesmo de não me deixarem responder às perguntas, pois sabiam de antemão que já era senhora daquelas lições. Esta foi a minha proto-história.
A minha adolescência foi como que um alvorecer helenístico. Dominava como ninguém praticamente todas as línguas do mundo civilizado. Ainda a primeira borbulha despontava no meu rosto e já as prelecções de Tales a Aristóteles não me eram desconhecidas.
Entretanto, o fim da adolescência abalou as minhas crenças e uma barbaridade desejos e sensações irrompeu pelas minhas fronteiras. Vesti-me de negro e deixei a pele empalidecer. A reclusão do meu quarto alternada com as saídas furtivas aos clubes góticos tornara-se um hábito, até que subitamente tudo me pareceu aborrecido e prepotente.
Entrei na Idade Moderna da minha vida e dois amores me deixaram como uma terra escombros, o primeiro, por ingenuidade, o segundo, por vingança de ódios antigos…
Disseram-me que a história se compunha com uma espécie de equilíbrio misterioso, algo profundamente misterioso mas certo.
Hoje vejo a minha figura reflectida no espelho, o cabelo começa a perder elasticidade, as carnes tornam-se flácidas cada dia que passa e dos olhos despontam já as primeiras rugas de expressão. Já assim, na idade do respeito, tratam-me como uma criança que necessita ser corrigida, a mim, desempregada, só, um pouco fútil. Fim da história.
A minha adolescência foi como que um alvorecer helenístico. Dominava como ninguém praticamente todas as línguas do mundo civilizado. Ainda a primeira borbulha despontava no meu rosto e já as prelecções de Tales a Aristóteles não me eram desconhecidas.
Entretanto, o fim da adolescência abalou as minhas crenças e uma barbaridade desejos e sensações irrompeu pelas minhas fronteiras. Vesti-me de negro e deixei a pele empalidecer. A reclusão do meu quarto alternada com as saídas furtivas aos clubes góticos tornara-se um hábito, até que subitamente tudo me pareceu aborrecido e prepotente.
Entrei na Idade Moderna da minha vida e dois amores me deixaram como uma terra escombros, o primeiro, por ingenuidade, o segundo, por vingança de ódios antigos…
Disseram-me que a história se compunha com uma espécie de equilíbrio misterioso, algo profundamente misterioso mas certo.
Hoje vejo a minha figura reflectida no espelho, o cabelo começa a perder elasticidade, as carnes tornam-se flácidas cada dia que passa e dos olhos despontam já as primeiras rugas de expressão. Já assim, na idade do respeito, tratam-me como uma criança que necessita ser corrigida, a mim, desempregada, só, um pouco fútil. Fim da história.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
4- A viagem
Construí a minha casa numa colina em Dahir-es-Salem. O clima não é tão agreste como se pensa por aí. Na verdade, é bastante ameno a maior parte do ano. A terra é cor de sangue e ventilada de tempos a tempos com as areias queimadas do deserto. As árvores frutificam, como o previsto, e o rio presenteia-nos duas vezes ao ano com um estranho milagre de multiplicação.
A minha casa é espaçosa. A entrada encontra-se dividida em duas abóbadas ao jeito dos califas, ricamente ornamentadas cada vez que há festa, o que infelizmente acontece frequentemente. De resto, a maior parte do ano é o silêncio…
Foi por esta altura que comecei a ouvir a voz.
Inicialmente, nos fins de tarde pachorrentos de verão, sussurrava-me apenas uns gemidos difusos. Levantava-me na esperança de ver apenas qualquer altercação entre a criadagem, mas enquanto nada descobria a voz voltava.
Digo num suspiro que com o tempo se tornou mais intensa e audível, dando-me a impressão, no intervalo do grito, de pronunciar um ou outro nome desenterrado do mundo dos mortos.
Não tive alternativa senão fugir, fugir para longe, percorrer esse país infinito onde, em certos lugares a escassez de água mataria até o mais sagaz dos viajantes.
Apenas nas noites instáveis do deserto, depois de deitado tudo ao poço da perdição, a verdade desenhava-se com clareza no fumo da fogueira, e via o nome dela escrito nos astros.
A minha casa é espaçosa. A entrada encontra-se dividida em duas abóbadas ao jeito dos califas, ricamente ornamentadas cada vez que há festa, o que infelizmente acontece frequentemente. De resto, a maior parte do ano é o silêncio…
Foi por esta altura que comecei a ouvir a voz.
Inicialmente, nos fins de tarde pachorrentos de verão, sussurrava-me apenas uns gemidos difusos. Levantava-me na esperança de ver apenas qualquer altercação entre a criadagem, mas enquanto nada descobria a voz voltava.
Digo num suspiro que com o tempo se tornou mais intensa e audível, dando-me a impressão, no intervalo do grito, de pronunciar um ou outro nome desenterrado do mundo dos mortos.
Não tive alternativa senão fugir, fugir para longe, percorrer esse país infinito onde, em certos lugares a escassez de água mataria até o mais sagaz dos viajantes.
Apenas nas noites instáveis do deserto, depois de deitado tudo ao poço da perdição, a verdade desenhava-se com clareza no fumo da fogueira, e via o nome dela escrito nos astros.
sábado, 22 de outubro de 2011
3- Américo V., da vila de S.
Que vulto é aquele que se expande lentamente? É nada menos que Américo V., emérito cidadão da vila de S.
Américo tem cerca de sessenta e cinco anos, estatura baixa, cabeleira grisalha e farta. O seus olhos ensanguentados conservam ainda o fulgor suevo que habitou já aquelas paragens.
Américo claudica, tem uma bicicleta velha e a sua boca não alberga um único dente são. Bate na mulher todos os fins-de-semana, não porque isso lhe proporcione prazer mas por espírito de dever. Ela aceita os sopapos resignadamente.
Américo gosta do clube de futebol da terra e de música popular. Sabemo-lo porque assiste religiosamente todos os domingos aos jogos, acompanhado pela esposa que lhe transporta o velho rádio tailandês de onde escuta o relato de outros jogos em simultâneo. Sabemos também que todos os sábados, e por vezes também aos domingos, coloca a sua música favorita no terraço de sua casa em alto volume. Os vizinhos divertem-se.
Américo descobriu tardiamente que era insignificante e a música subiu de volume.
Não se sabe até quando durará Américo. Porém suspeita-se que quando sentir a morte por perto, a música tocará a um volume nunca antes ouvido e fará um chinfrim danado.
Américo tem cerca de sessenta e cinco anos, estatura baixa, cabeleira grisalha e farta. O seus olhos ensanguentados conservam ainda o fulgor suevo que habitou já aquelas paragens.
Américo claudica, tem uma bicicleta velha e a sua boca não alberga um único dente são. Bate na mulher todos os fins-de-semana, não porque isso lhe proporcione prazer mas por espírito de dever. Ela aceita os sopapos resignadamente.
Américo gosta do clube de futebol da terra e de música popular. Sabemo-lo porque assiste religiosamente todos os domingos aos jogos, acompanhado pela esposa que lhe transporta o velho rádio tailandês de onde escuta o relato de outros jogos em simultâneo. Sabemos também que todos os sábados, e por vezes também aos domingos, coloca a sua música favorita no terraço de sua casa em alto volume. Os vizinhos divertem-se.
Américo descobriu tardiamente que era insignificante e a música subiu de volume.
Não se sabe até quando durará Américo. Porém suspeita-se que quando sentir a morte por perto, a música tocará a um volume nunca antes ouvido e fará um chinfrim danado.
terça-feira, 18 de outubro de 2011
2- Manelito, o Maneta
Na aldeia onde cresci sempre fui feliz, principalmente durante a infância. Os miúdos reuniam-se sempre ao fim da tarde para fazer das suas. Tínhamos sempre a agenda muito preenchida. Ora eram as pequenas rixas entre nós, ora a caça de grilos que posteriormente eram usados como gladiadores, ora as idas aos ninhos, ora as épicas demandas de sardões assustadores.
Pela altura das festas, fazíamos bombas com a pólvora seca dos foguetes que não rebentavam. Foi numa destas brincadeiras que o Manelito, o mais valente entre nós, perdeu a mão quando tentava cortar um foguete com uma faca de cozinha. Lembro-me como se fosse hoje de ver a sua mão desfeita em sangue e pedaços de carne. O alvoroço que não foi…
Crescemos e estas brincadeiras foram substituídas por uma que agradava a todos: o galanteio das mocitas da zona. O Manelito também ia connosco, nervoso, cabisbaixo. Quando avistávamos uma ou duas mocitas conhecidas de algum de nós fazendo gazeta no muro da escola ou nas imediações do supermercado, os mais ousados logo se punham a tagarelar, e o Manelito enfiava o toco que lhe restava no bolso. Se não o conhecessem, talvez por alguns momentos ainda pensassem que era um rapazito vulgar com a mão no bolso. Lá se desenrolava a conversa (sobre quê?) e o Manelito lá se via obrigado a tirar a mão do bolso. Quando o fazia, as moçoilas logo descobriam o seu segredo. Então surgia uma súbita e inexplicável atenção para com o Manelito, e risinhos amáveis, e amaciamentos de pêlo, e o Manelito gostava, e o Manelito corava.
Chegava-se a hora de jantar e voltávamos a casa. O Manelito agarrava um pau com a sua mão sá, e um pouco afastado dos restantes varejava tudo o que encontrava pelo caminho: pedras, casas, flores, chão, paredes, mato. Depois olhava-nos de relance com um ar de incompreendido. O silencia começava a reinar entre nós. Pelos vistos, todos o compreendiam.
Pela altura das festas, fazíamos bombas com a pólvora seca dos foguetes que não rebentavam. Foi numa destas brincadeiras que o Manelito, o mais valente entre nós, perdeu a mão quando tentava cortar um foguete com uma faca de cozinha. Lembro-me como se fosse hoje de ver a sua mão desfeita em sangue e pedaços de carne. O alvoroço que não foi…
Crescemos e estas brincadeiras foram substituídas por uma que agradava a todos: o galanteio das mocitas da zona. O Manelito também ia connosco, nervoso, cabisbaixo. Quando avistávamos uma ou duas mocitas conhecidas de algum de nós fazendo gazeta no muro da escola ou nas imediações do supermercado, os mais ousados logo se punham a tagarelar, e o Manelito enfiava o toco que lhe restava no bolso. Se não o conhecessem, talvez por alguns momentos ainda pensassem que era um rapazito vulgar com a mão no bolso. Lá se desenrolava a conversa (sobre quê?) e o Manelito lá se via obrigado a tirar a mão do bolso. Quando o fazia, as moçoilas logo descobriam o seu segredo. Então surgia uma súbita e inexplicável atenção para com o Manelito, e risinhos amáveis, e amaciamentos de pêlo, e o Manelito gostava, e o Manelito corava.
Chegava-se a hora de jantar e voltávamos a casa. O Manelito agarrava um pau com a sua mão sá, e um pouco afastado dos restantes varejava tudo o que encontrava pelo caminho: pedras, casas, flores, chão, paredes, mato. Depois olhava-nos de relance com um ar de incompreendido. O silencia começava a reinar entre nós. Pelos vistos, todos o compreendiam.
1- História e vida da Abécula
A história da Abécula é uma história triste. Portanto, desenganem-se os que procuram neste texto algum desanuviamento para as canseiras do dia-a-dia. Aqui não encontrarão consolo. Correm ainda o risco, se forem tão perspicazes como o autor que adiante atentamente se subscreve, de verem retratadas de forma crua as vossas frustrações na história da nossa triste Abécula. Fujam, mudem de canal, vão ver televisão ou comprar um daqueles romances bonitos enfezadinhos envoltos em cetim à venda nas prateleiras!
Aqui encontrarão a dureza da vida em toda a sua violenta monotonia.
E tenho dito!
A Abécula nasceu nos loucos e gloriosos anos 60, anos de hipes e de rocalhada e droga e folia. Consta que foi nesses anos que um artista americano do roque enfiou um balde de dejectos na cabeça em pleno concerto. Diz-se também que algumas seitas prodigalizavam o sexo como forma de libertação; outras bebiam sumo de laranja envenenado para encontrar os anjinhos mais cedo; outras adoravam os ratos, outras odiavam os ratos; algumas amavam os homens e outras afirmavam ser o homem a única e possível salvação de si mesmo e outras tolices que tal.
Onde a nossa Abécula nasceu não existia nada disto. Apenas meia dúzia de casas, muita terra para trabalhar, um café e uma igreja com padre. Emparedada neste mundo, dois extremos se debatem na sua vida com igual veemência: os jogos de futebol dos gaiatos, único espectáculo que lhe é permitido porque conciliável com a lide de casa, já que a janela da cozinha tem vista para o terreiro; dois: o pau de marmeleiro do pai, cujos contornos, como diria o romancista, eram já seus velhos conhecidos. O caminho de casa para o ribeiro é trilhado quase unicamente pelos seus pés, mas um malfadado dia outros pés fazem o caminho desse ribeiro, e a virgindade da nossa Abécula é profanada por um velho putanheiro lá da terra.
Não se sabe, como é óbvio, se a pobre da moça tirou algum prazer do acto. É possível que não, é possível que sim. De qualquer das formas, se não tirou deveria ter tirado, porque por aqueles breves momentos de penetração desajeitada haveria de pagar toda a sua vida.
O velho cometera a malvadez (e convenhamos, vulgaridade) de ejacular dentro das entranhas da rapariga. Os dias foram passando… o velho, como se não bastasse, teve ainda a desfaçatez de morrer de ataque cardíaco, a barriga cresceu e os pais da moça, que não eram tão católicos ao ponto de acreditar na virgindade da virgem Maria, ou então que a sua Abécula era uma Maria virgem, puseram-na fora da porta depois de uma valente sova de pau de marmeleiro. O pai esmerara-se na sova, de forma que toda a aldeia ouvisse essa requiem final da Abécula ao som da sinfonia de dor na qual era algoz e maestro.
A moça fugiu para a cidade, e como era (apesar do que diziam na aldeia e ao contrário do que lhe chamou um puto com cara de rafeiro no último olhar que lançou ao amontoado de casas) uma moça séria, não foi pelo caminho da vida fácil, tentação a que se entregam muitas campónias mal se vêm livres das amarras do campo.
Empregou-se como sopeira já com sete meses de gravidez, e graças à boa vontade da governanta, pôde dar à luz e ficar de cama uma semana sem correr o risco de despedimento.
Entretanto, o rapaz cresce, e diga-se que não foi preciso crescer muito para que a moça compreendesse que se não quisesse que o seu filho fosse um indigente e ela uma pedinte toda a vida, teria que encontrar rapidamente um outro trabalho. Encontrou. Como empregada de balcão num centro comercial. Neste momento, o seu horário de trabalho dividia-se da seguinte forma: das 07h00 – 18H30 - sopeira; das 19h00 às 23h00 – empregada de balcão.
O rendimento melhorou bastante. Resolveu comprar uma casa a prestações e meteu o filho num infantário privado. Acontece que os dois salários tornaram-se também insuficientes, pelo que decidiu arranjar um terceiro emprego: caixa de estação de serviço. Assim o seu horário de trabalho passou a ser: das 7h00 às 18h30 – sopeira; das 19h00 às 23h00 – empregada de balcão; das 24h00 às 05h00 – caixa. Com um pouco de jeito ainda durmo duas horas nos transportes, pensou.
Alguns vizinhos lembram-se da moça. De todo o emaranhado acessório que contaram, apenas duas notas fortes e credíveis ressaltam: 1- ao pequeno nunca lhe faltou nada; 2- Tinha umas olheiras até ao rabo.
Aqui encontrarão a dureza da vida em toda a sua violenta monotonia.
E tenho dito!
A Abécula nasceu nos loucos e gloriosos anos 60, anos de hipes e de rocalhada e droga e folia. Consta que foi nesses anos que um artista americano do roque enfiou um balde de dejectos na cabeça em pleno concerto. Diz-se também que algumas seitas prodigalizavam o sexo como forma de libertação; outras bebiam sumo de laranja envenenado para encontrar os anjinhos mais cedo; outras adoravam os ratos, outras odiavam os ratos; algumas amavam os homens e outras afirmavam ser o homem a única e possível salvação de si mesmo e outras tolices que tal.
Onde a nossa Abécula nasceu não existia nada disto. Apenas meia dúzia de casas, muita terra para trabalhar, um café e uma igreja com padre. Emparedada neste mundo, dois extremos se debatem na sua vida com igual veemência: os jogos de futebol dos gaiatos, único espectáculo que lhe é permitido porque conciliável com a lide de casa, já que a janela da cozinha tem vista para o terreiro; dois: o pau de marmeleiro do pai, cujos contornos, como diria o romancista, eram já seus velhos conhecidos. O caminho de casa para o ribeiro é trilhado quase unicamente pelos seus pés, mas um malfadado dia outros pés fazem o caminho desse ribeiro, e a virgindade da nossa Abécula é profanada por um velho putanheiro lá da terra.
Não se sabe, como é óbvio, se a pobre da moça tirou algum prazer do acto. É possível que não, é possível que sim. De qualquer das formas, se não tirou deveria ter tirado, porque por aqueles breves momentos de penetração desajeitada haveria de pagar toda a sua vida.
O velho cometera a malvadez (e convenhamos, vulgaridade) de ejacular dentro das entranhas da rapariga. Os dias foram passando… o velho, como se não bastasse, teve ainda a desfaçatez de morrer de ataque cardíaco, a barriga cresceu e os pais da moça, que não eram tão católicos ao ponto de acreditar na virgindade da virgem Maria, ou então que a sua Abécula era uma Maria virgem, puseram-na fora da porta depois de uma valente sova de pau de marmeleiro. O pai esmerara-se na sova, de forma que toda a aldeia ouvisse essa requiem final da Abécula ao som da sinfonia de dor na qual era algoz e maestro.
A moça fugiu para a cidade, e como era (apesar do que diziam na aldeia e ao contrário do que lhe chamou um puto com cara de rafeiro no último olhar que lançou ao amontoado de casas) uma moça séria, não foi pelo caminho da vida fácil, tentação a que se entregam muitas campónias mal se vêm livres das amarras do campo.
Empregou-se como sopeira já com sete meses de gravidez, e graças à boa vontade da governanta, pôde dar à luz e ficar de cama uma semana sem correr o risco de despedimento.
Entretanto, o rapaz cresce, e diga-se que não foi preciso crescer muito para que a moça compreendesse que se não quisesse que o seu filho fosse um indigente e ela uma pedinte toda a vida, teria que encontrar rapidamente um outro trabalho. Encontrou. Como empregada de balcão num centro comercial. Neste momento, o seu horário de trabalho dividia-se da seguinte forma: das 07h00 – 18H30 - sopeira; das 19h00 às 23h00 – empregada de balcão.
O rendimento melhorou bastante. Resolveu comprar uma casa a prestações e meteu o filho num infantário privado. Acontece que os dois salários tornaram-se também insuficientes, pelo que decidiu arranjar um terceiro emprego: caixa de estação de serviço. Assim o seu horário de trabalho passou a ser: das 7h00 às 18h30 – sopeira; das 19h00 às 23h00 – empregada de balcão; das 24h00 às 05h00 – caixa. Com um pouco de jeito ainda durmo duas horas nos transportes, pensou.
Alguns vizinhos lembram-se da moça. De todo o emaranhado acessório que contaram, apenas duas notas fortes e credíveis ressaltam: 1- ao pequeno nunca lhe faltou nada; 2- Tinha umas olheiras até ao rabo.
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