Tragédia em cinco actos
Inês saiu de casa por volta das 7:30.
Embora o seu domicílio distasse cerca de 30 km do Parque, os meios de transporte altamente eficazes da sua cidade permitiam-lhe chegar em apenas cinco minutos.
Apanhou o primeiro comboio, um dos muitos que faz do Parque uma das suas paragens obrigatórias. Como de costume, o comboio encontra-se apinhado de toda a massa matutina de trabalhadores: senhoras de etnias e proveniências diversas (algumas até envergam o traje típico dos seus países de origem), homens com pequenas bolsas (presumivelmente o seu lanche), estudantes sonolentos, uns conversadores, outros trabalhadores (com o portátil aberto àquela hora da manhã). A maioria lia os jornais gratuitos distribuídos à porta da estação (Inês pegou também um para si); algumas pessoas (poucas), progrediam nas suas leituras pessoais folheando o romance de ocasião.
Primeira estação: Luxembourg. Saem alguns turistas. Notícia de capa do jornal: “Recente estudo revela que cerca de 80% dos crimes na nossa cidade são perpetrados por imigrantes”. Os passageiros fixam os olhos no jornal, quiçá apenas pelo pretexto de não cruzar olhares. Talvez um atavismo desse tempo em que se acreditava que se alguém captasse o nosso olhar roubar-nos-ia a alma.
Segunda Estação: Port-Royal; segunda página do jornal: Recente estudo levado a cabo por universidade britânica prova que as mulheres sentem maior atracção e atingem mais facilmente o orgasmo com homens de conta bancária saudável. Saem alguns estudantes e alguns turistas. Não entra quase ninguém. Fecham-se as portas. O último senhor a entrar, muito provavelmente gaulês, não se sentou, apesar da abundância de lugares vagos. Terceira página do jornal: “Grupo de portugueses detido em Aversa. Um grupo de passageiros sem o respectivo título habilitante tentou empreender, sem sucesso, a viagem Nápoles-Roma no passado dia 1 de Maio. O grupo de desordeiros procurava assim manter a tradição e entrar “à portuguesa” no dia 1 de Maio. A ordem foi imediatamente restabelecida graças à pronta intervenção das nossas forças policiais”. Terceira Estação: Denfert-Rochereu: saem alguns passageiros, estudantes. Entram outros tantos. Cerca de cinco polícias entram no comboio, provavelmente porque imediatamente antes deles entraram cinco jovens com aspecto magrebino. Soa o sinal. O comboio avança. Os jovens não se sentam. Quarta página: “Saiba como vencer a crise. Técnicas de auto-motivação e procura de emprego. Por apenas mais 10 euros adquira o suplemento: “O que é que as empresas procuram?”. Por apenas mais 5 euros adquira também o suplemento “Dá mais visibilidade ao teu cv.” Quarta estação: cité universitaire. Saem muitos estudantes. Entram algumas pessoas. Fecham-se as portas. Quinta página: “ Existem famílias a viver em regime poligâmico na localidade de Clichy-sur-Bois”. Quinta e última estação: Parque. Inês saiu. Chegou ao seu destino. Ainda á saída do túnel encontrou o seu amigo Z…
- Olá, tudo bem?
- Tudo. Contigo?
- Vai-se andando. Que tens feito?
- Isto e aquilo…
- Uau, que emocionante…
- Olha Inês, sabes quem foi Aristóteles?
- Sei, foi um filósofo grego.
- Boa! Conheces alguma cena que tenha dito?
- Não, só sei que foi um filósofo.
- Pois… Sabes que ele dizia que uma verdadeira tragédia deve acontecer dentro de 24horas?
- Ai sim? Isso é muito tempo… E em quantos actos?
O Parque
Para chegar ao Parque, Inês devia ainda apanhar o tram, cuja paragem se localizava mesmo à saída da estação de comboio. Apenas dez minutos de viagem. A cerca de três minutos do final da viagem já se avistava o Parque em toda a sua imponência. Era um recinto do tamanho de uma pequena vila e avistava-se ao longo em virtude da profusão de cores vivas da sua construção, e particularmente por três colossais torres em estilo romântico que constituam o seu ex-libris. Aí funcionava a administração do Parque. Inês desempenhava funções de guia neste Parque de fantasia. Toda a iconografia do Parque gira em torno de um conhecido mundo de desenhos animados outrora criados por um bom-homem. Diz-se que esse homem não queria envelhecer nunca. A sua juventude eterna e a sua visão de um mundo idílico, sem guerras, sem stress, sem dissabores – projectado em personagens imaginadas e humanizadas de animais. Teríamos assim: o “ratinho”, o “cachorrinho”, o “patinho”, o “periquito”, “o papagaio”, entre outros.
Dir-se-ia que esse homem, ao criar o seu sonho criou o sonho da humanidade inteira. As pessoas precisam de sonhos e esperança para viver. Os vendedores de sonhos sabem-no melhor do que ninguém.
Voltando à singular historia da nossa protagonista, Inês, como já foi dito, era guia turística no Parque. Conseguira o emprego graças ao seu extraordinário talento para falar diversos idiomas “praticamente sem sotaque”, como lhe viriam a dizer muitos dos visitantes do Parque das mais variadas origens.
Em tempos, também fora uma sonhadora. Aquando da sua meninice, desenvolvera uma paixão obsessiva – compulsiva pelos desenhos animados temáticos do Parque. Era mesmo proprietária de diversos peluches do ratinho e do cachorrinho, os seus favoritos. Cresceu e tornou-se uma mulher. Um dia apaixonou-se.
O seu namorado convencera-a a empreender com ele uma viagem em busca de uma vida melhor, noutro país. Fugira com ele. Não chegara a frequentar a universidade. Chegada ao país de destino, nem a imaturidade dos seus verdes anos nem o amor duradouro pelo seu parceiro de aventura impediram de reconhecer a dura realidade. Se no seu país, esse querido e pequenino país natal, que normalmente só se ama à distância, as oportunidades lhe estavam vedadas, isso acontecia também e por maioria de razão no país de acolhimento. Na verdade, não sabia muito bem qual era o seu sonho, mas era qualquer coisa diversa daquilo. Não que tivesse uma vida má, pelo menos o sentido material do termo (esse que normalmente tudo vence), e tão pouco tinha razões para infelicidade no plano pessoal. Tinha muitos e bons amigos (maioritariamente do seu país de origem) e um companheiro que a amava. Era qualquer insatisfação, qualquer vazio que nascia dentro de si, uma mancha negra que nasce como uma borbulha e que alastra e alastra até que toma conta de todo o ser. Apaga qualquer brilho nos olhos, seja de amor, ódio ou rancor. Antes os transforma em pedra, apaga a sua chama vital e impõe o morno da morte.
A infância não fora, contudo, apagada do seu imaginário. Tinha ainda o seu quarto decorado de motivos alusivos às mascotes do Parque, de maneira que o mundo ganhava uma inusitada unidade: do Parque ao seu quarto. A cidade era apenas uma imensa ponte a pulular de vida.
Voltando ao terreno, Inês dirigiu-se à recepção do edifício onde funcionava a administração, esse já referido, das três torres românticas. Devia depois descer dois lances de escadas laterais que a conduziriam a dois corredores separados por duas portas de serviço. Ao fundo do segundo corredor encontrava-se a central de segurança. Aí picaria o ponto e ser-lhe-ia atribuída uma hora de entrada.
A segurança era algo que fora pensado ao pormenor. Teríamos mesmo a sensação que fora a principal razão da construção deste Parque, a segurança. Um imenso furor preventivo escorria das suas paredes decoradas com câmaras, como se a todo o momento esperassem Átila e os seus hunos; como se a ordem do universo dependesse da câmara estrategicamente colocada num ponto morto da sala, invisível ao visitante desatento; como se todo o equilíbrio da natureza repousasse no olhar atento dos seguranças, vestidos a rigor, alguns até montados em cavaletes eléctricos, uma espécie de versão moderna de um ciclope. Adiante-se, só que alguns eram zelosos ate ao desespero. Tinham como função a observância do cumprimento das regras do Parque por parte dos visitantes e funcionários. Principalmente, quanto a estes últimos, e dada a especial prevalência que a administração concedia à imagem do Parque – a que se transmite ao público, os seguranças tinham como função verificar a correcção e observância pelos funcionários das regras de decoro. A saber: cabelos penteados, nada de piercings ou tatuagens expostos, barbas cortadas e uniformes limpos. Aqueles que tinham a seu cargo uma performance especial era-lhes controlado o rigor da prestação assim como o feedback pelo público. Por sua vez, os seguranças eram avaliados por auditores especialmente designados para o efeito. Estes possuíam uma grelha e uma escala de classificação. Por sua vez, os auditores eram supervisionados e controlados por determinados membros da administração que, de resto, não detinham qualquer função demasiado específica. Escusado será dizer que num mundo como estes, onde toda a gente controla toda a gente, onde o espaço é reduzido a um mínimo insustentável e o oxigénio artificial e rarefeito, haveria lugar a alguns respiradouros naturais, que sempre surgem em semelhantes circunstâncias.
Passo a explicar: embora fosse suspeita qualquer movimentação ou contacto prolongado entre funcionários do Parque, isto é, longas conversas e formação de solidariedades sólidas (que a administração procurava conscientemente evitar), casos aconteciam de trocas de fluidos em circunstâncias e locais duvidosos, escapados de todo à vigilância. À parte disto, toda a população funcionária do Parque parecia viver num desespero constante vertido em olhares indiscretos e libidinosos. Os seguranças usavam o zoom das câmaras de vigilância para ver de ângulo privilegiado os decotes das senhoras mais ousadas. Os restantes, quando não lhes calhava um posto de segurança junto do controle das câmaras, comentavam com o compincha do outro lado do edifício, através de intercomunicadores, a boazona que acabava de passar. Pode-se também dizer que toda, mas mesmo toda a actividade do Parque estava regulamentada ao pormenor. Não havia aspecto nem percalço, nem situação corriqueira estivessem em branco relativamente à agulha omnipotente do legislador do Parque.
Quando um dia começa bem
Nem por especial generosidade se podia dizer que Inês era uma pessoa simpática. Inês não era uma pessoa simpática, nem no sentido mais amplo nem corrente do termo. Não tinha sorriso fácil e dentado. O sorriso que a performance da sua posição lhe exigia, o que de resto não passava despercebido a vigilantes e visitantes, era arrancado a ferros, forçado, artificial, que facilmente poderia ser confundido com o acto de abrir a boca para morder. Ora, claro está que, embora o seu sorriso fosse forçado, o que não era de todo desejável aos olhos da administração, não era também facilmente sindicável pelos vigilantes. Apesar de toda esta paranóia e atavismo que lembra o período da Inquisição, em que algum Cristão-Novo podia ser preso e torturado por “falta de atenção na missa”, não é fácil fundamentar tal acusação sem se cair no extremo ridículo. Não que não se tenha o direito de ser ridículo. Antes pelo contrário…
Encaminhados os senhores turistas em tratos doces na sua língua materna, chega-se à hora do almoço. A cantina do Parque está apinhada de gente, como de costume. Inês não gosta de almoçar no Parque. A comida é de qualidade duvidosa e escassa – tudo feito ao barato.
Ainda não terminara de descer o segundo lance de escadas, Inês sentiu uma voz na sua direcção que lhe gritava: “Espera, espera!”. Esperou.
Por detrás de si surgiu uma figura masculina, alta e esguia, cabelos muito negros e pele morena, com traços evidentes de mestiçagem ibérica do Médio-Oriente. Inês parou. Quando foi alcançada voltaram, agora juntos, a encetar a marcha. Seria estranho pensar que mesmo depois desta irrupção violenta, os dois recém-amigos caminharam cerca de cinco minutos, lado-a-lado, em silêncio, como que mudos. Evidente que esta situação era insustentável. Então Inês decide quebrar o gelo e olha-o com certa perplexidade e de olhar esbugalhado. Esboçou um tímido e quase imperceptível “Olá!”, “Como te chamas?” “Pablo”, respondeu, “Sou teu vizinho”
- Vizinho?
- Sim, vizinho. Também moro no catorze.
- Ah! Que engraçado… Nunca te tinha visto por lá…
- Vi-te eu a ti
- Chamas-te Pablo… és espanhol?
- Sim. Sou de T…
- nunca lá fui.. Só conheço M… e B… De passagem, quase.
- Tu como te chamas?
- Inês
- Como?
- Inês
- É difícil pronunciar…
- Nem por isso… É uma questão de hábito…
Aí vai Inês… desce as escadas do refeitório. Pisa os degraus como quem pisa as estrelas. Talvez nunca saberás que é esta a matéria dos sonhos e todo o resto da tua vida o passarás em busca dessa primeira felicidade. Se ainda viveres o suficiente verás que apenas aí tudo é possível.
Visita ao Castelo
Por volta das duas da tarde, depois do almoço, Inês recebeu um ofício que a convocava para se dirigir à administração. Construiu o castelo e colocou-lhe umas pequenas pétalas no cume – um modesto adorno.
Subiu no primeiro elevador que chegava ao rés-do-chão sob o olhar vigilante do segurança. Premiu o botão dois e o Castelo levantou voo, alto, muito alto, até às estrelas. À medida que subia, via como tudo lá em baixo parecia pequenino, como de brincar: o Parque e o seu desenho ortogonal, as pessoas já como pontinhos até que desaparecem, os carros em torno do Parque que, primeiro perdem o movimento para depois desaparecer; os campos, pequeninos, como que desenhados.
Chegara finalmente ao segundo andar. Passou três corredores esquisitos e de cheiro duvidoso, até que abriu duas portas de serviço. Atrás de um compartimento provisório, dividido como que por um biombo dos tempos modernos, escondia-se a sua supervisora.
Alertada pela chegada de Inês, levantou-se de um salto e dirigiu-se-lhe com uma cordialidade pré-ordenada, protocolar, artificial. Inês compreendeu-o rapidamente, até porque sabia perfeitamente os limites que a posição supra-ordenatória de um supervisor lhe impõe.
- Boa tarde Inês,começou;
- Boa tarde
- Chamei-a aqui para tratar um assunto consigo
- Sim
- Sim Inês. Já agora, permita-me que lhe faça uma pergunta,
- Com certeza…
- A Inês tem família lá no seu país?
- Sim, tenho…
- Marido, filhos, irmãos, pais…?
- Sim, tenho… quer dizer, apenas pais e dois irmãos,
- Muito bem… Agora, voltando ao que interessa, a razão porque a chamei aqui prende-se com uma questão do regular funcionamento do serviço. Como sabe, aqui no Parque, e esta é uma das qualidades que se nos reconhece em todo o mundo, primamos pela excelência no nosso serviço. Neste sentido, a excelência do serviço, do nosso em concreto, significa estar à altura dos sonhos das pessoas. A Inês tem sonhos e esperanças… projectos?
Riu ao de leve e corou um pouco…- Claro que sim…
- Pois… mas assim em concreto… Por exemplo: eu sei que a Inês tem educação superior. É formada. Anda a prepara alguma tese, pós-graduação?
- Não,
-Pois Inês, mas olhe que nos dias de hoje parar é morrer… E tem, como hei-de dizer isto, um ideal de vida?
- Bom… Confesso que me apanha de surpresa com essa pergunta. Nunca tinha pensado nisso. Penso que o meu ideal de vida é o de toda a gente: viver.
A supervisora soltou um risinho irónico e maldoso, como que suspeitando que Inês reinava dela:
- Pois claro… É certo que esse todos temos, mas enfim! Como lhe dizia, aqui no Parque a excelência do serviço é sinónimo de estar à altura dos sonhos dos nossos visitantes. Passo a explicar: o mundo inteiro sonha com o Parque. Esperamos estar à altura desse sonho. O nosso objectivo é fazer com que entre sonho e a visita ao Parque haja uma continuidade onírica, a visita como que um prolongamento e materialização do sonho, embora com personagens e espaços reais – o realizar dessa explosão de imagens turvas e pantanosas que é o sonho. Não sei se me faço entender… Mas como já me respondeu, a Inês também sonha não é?...
- Sim…
- Já agora, diga-me, em alguns desses sonhos, digo, sonhos agradáveis, aqueles em que como que passeia entre as estrelas, tudo são imagens e sensações de prazer, certo?
- Pressuposto, respondeu Inês;
- Portanto, e porque a Inês é, para além de uma pessoa inteligente e bem apessoada, alguém que também sonha, compreende que o espírito e o projecto do Parque não se compadecem com caras amarradas…
- Como?!, exclamou intranquila Inês, como que acordando de um transe;
- Sim, Inês, continuou a supervisora. Nós sabemos que, tendo em conta esse espírito e projecto do Parque que, de resto, era já um pré-requisito no acto de aceitação de alguém ao nosso serviço: a simpatia, o sorriso afável para o público é exigida;
- Sim, mas…
- Temos informação que a prestação da Inês neste ponto em concreto fica aquém do desejável;
- E como obtiveram essa informação, se me é permitido saber? Inquiriu Inês;
- Sabe Inês, não é suposto responder-lhe a essas perguntas, mas porque se apresentou tão prontamente na administração quando tal lhe foi solicitado, e porque, à parte esta pequena observação, tem sido uma funcionária responsável, dir-lhe-ei em primeira mão as recentes mudanças em sede de gestão dos recursos humanos. Recentemente, isto é, desde que assumiu a direcção do Parque o novo administrador, alguém mais novo, com ideias modernas, procurou-se uma nova política, mais eficiente, de gestão de recursos humanos. A partir de agora todos os nossos funcionários estão sujeitos a uma avaliação periódica mensal. Tal avaliação consiste num formulário que os nossos agentes de segurança preenchem segundo alguns critérios. Os dados recolhidos são posteriormente inseridos num sistema que se encarrega da sua gestão. Finalmente, será elaborado um gráfico com a evolução da prestação do trabalhador, assim como será atribuída uma nota. Como é óbvio, não lhe posso revelar o que quer que seja acerca dos nossos critérios, mas posso garantir-lhe que dois deles são o sorriso e a alegria demonstrados. A Inês deve-se apresentar mais alegre. Sabe, é importante para a nossa política…
- Está bem, respondeu Inês,
- Já não desceu pelo elevador, mas por um belo balão cor-de-rosa prostrado à janela do castelo.
Dias cinzentos
Apesar da multiplicidade de cores e de sons emitidos à vez pela vida que pulula no Parque: gente feliz, funcionários contentes e castelos imponentes, não parece que as condições atmosféricas se queiram curvar à felicidade humana. Os dias parecem sempre cinzentos, e o tão desejado sol esconde-se, ora tímida, ora teimosamente, por detrás de uma nuvem escura. A natureza persiste no seu capricho e indiferença.
O balão de Inês poisou justamente junto de uma enorme roda onde se apinhava uma multidão. Por entre essa multidão destacava-se, pelo seu volume e altura, uma figura de peluche. Um ratinho, que ora pegava as crianças no colo, ora tirava fotos com os seus progenitores, adultos tornados crianças. Logo corria para alguém mais caricato por entre a multidão, interagindo, provocando a risada por entre o público.
Aproveitando o que restava do seu intervalo, Inês caminhou em direcção a um pequeno compartimento, bem discreto, no rés-do.chão de um dos edifícios da avenida central. Aí já se encontrava o ratinho, em descanso. Chamava-se Juha. Não é certo que esse fosse o seu nome, embora fosse conhecido assim em todo o Parque. Provinha de um qualquer país africano. Atravessara parte do mediterrâneo num caiaque fretado com mais de quarenta seus compatriotas. Uma outra parte atravessou-a a nado, evitando assim o comité de boas-vindas há muito organizado e estabelecido neste país para os cidadãos da sua origem. Uma vez em terra, Juha deambulara por uma conhecida cidade mediterrânica, pedindo esmola e roubando o que podia. Impressionados com o seu aspecto bovino, que contrastava fortemente com os seus enormes olhos aguados e amarelos, em muito assemelhados aos de um cachorrinho abandonado e pontapeado por todos os transeuntes, os patrões de ocasião empregavam-no em tarefas duras, a maior parte das vezes a troco apenas de comida, já que o dinheiro, esse, não tem dono. Um dia descobriu o Parque e uma alma caridosa procedeu à sua legalização. Desde então, Juha vivia do seu magro rendimento no Parque. Vivia sozinho e sem qualquer perspectiva de um dia regressar ao seu país de origem.
Na pequena sala, Juha fumava um cigarro ainda com a parte superior do peluche (que constituía a cabeça do ratinho) pendendo dos seus ombros.
- Olá Juha,
- Olá boneca
- Como vai isso?
- Ça va…
- Já fizeste muitos amigos hoje? Ironizou Inês,
- Não preciso de fazer amigos… respondeu Juha entre risos. Toda a gente é minha amiga desde que nasci.
- Deveras?! Uau… que sorte que tu tens!
Nesta altura da conversa, Inês reparou numa pequena ferida que Juha tinha numa das maçãs do rosto. Era realmente pequena, mas via-se claramente que era fresca e gotejava mesmo umas gotículas de sangue.
- O que é isso que tens na cara Juha? perguntou Inês;
- O quê? Isto? Perguntou Juha colocando bruscamente o dedo sobre a ferida;
- Sim, isso…
- É uma ferida muito antiga. Tenho-a desde que me lembro de ser gente…
- Mas como é isso possível? Como pode ser uma ferida assim tão antiga, se continua a sangrar?
- Bom, acontece…às vezes sangra…
- Deves estar a gozar comigo. Se isso fosse verdade há muito tinhas morrido com uma hemorragia… mesmo se são apenas pequenas gotículas de sangue… Como é possível que nunca tenha cicatrizado?
- Não! Não estou a brincar! É assim tão difícil acreditar que existem feridas que nunca cicatrizam? Por vezes o sangue estanca durante uns tempos, mas quando penso que vai sarar logo o sangue volta a correr. Primeiro em pequenas gotículas espaçadas no tempo para depois crescerem em volume e intensidade. Com o tempo a gente habitua-se. Já ouviste falar num senhor que disse que o maldito ser-humano habitua-se a tudo? Pois como não se havia de habituar a umas pequenas gotículas?
- Tens razão, Juha! Habituamo-nos a tudo… Ás vezes penso que morreria de desgosto se não fosse e não tivesse aquilo que sonhei para mim. As coisas foram acontecendo, e quando dei por mim… já não havia nada. Retiram-nos até o mais básico e singelo dos sonhos e, no entanto, continuamos a viver… Continuamos a sonhar… só já não sei se ainda estamos vivos ou apenas num sono sem sonhos.
- Pois… sono sem sonhos…
A conversa continuou mais uns minutos, o tempo de acabar o cigarro. Juha voltou a encapuçar a cabeça do ratinho e voltou ao trabalho com Inês. Entretanto, o céu continuava cinzento e ameaçava chuva.
Afinal é um palhaço!
Já regressada ao trabalho, conduzindo um grupo de turistas, Inês deparou-se com um amontoado de crianças que soltava gritinhos e palmas. Ao centro destacava-se um palhaço. Será possível? Um palhaço? Mas nos Parque não existem palhaços… existem ratinhos, cachorrinhos, periquitos e cowboys, mas não palhaços. Seria algum trapaceiro ou algum freelancer em busca de rendimento extra? Teria entrado no Parque com farda civil, ter-se-ia infiltrado com a roupa de palhaço escondida, ter-se-ia vestido e maquilhado rapidamente para ganhar os seus próprios trocos. É uma questão de tempo até ser descoberto.
À parte de ser, muito provavelmente (e excluindo ainda a possibilidade do Parque admitir palhaços ao seu serviço), um palhaço impostor, o seu aspecto em nada diferia de um palhaço qualquer. Encontrava-se trajado com roupas largas, de um vermelho, verde, amarelo e roxo berrantes, sapatos castanhos enormes, a cara pintada de branco com um enorme sorriso desenhado. Os olhos prolongavam-se artificialmente num desenho que acrescentava algumas lágrimas. O nariz era uma bola vermelha. Fazia pequenas figuras com balões: cabritos, flores, cães, etc. Inês parou no meio da multidão e observou mais algumas das suas façanhas. Quando este terminou seguiu-o cautelosamente. Viu que ele se escondera numa casa-de-banho. Intrepidamente, Inês entrou na casa-de-banho masculina e viu, numa das repartições, os sapatos enormes do palhaço. Não resistiu e empurrou a porta. Era Pablo.
Enquanto a noite não cai
-Ah, és tu, disse Pablo,
- Pablo ! Que pensas que estás a fazer ? Porque estavas vestido assim ? Que vem a ser isto? Não sabes que não são permitidos palhaços no Parque?
- Sei,
- Então?!
- Bem, qualquer parque precisa de palhaços. Antigamente precisavam de os contratar. Agora, como podes ver, já os há voluntários.
- Bem vejo,
Nisto, ouviram que mais alguém entrava na casa-de-banho. Pablo puxou Inês com força para si e fechou a porta do compartimento. Neste acto, Inês encostou instintivamente a cabeça ao seu peito.
- Faz pouco barulho, antes que nos descubram, disse Pablo.
- Isto é uma loucura Pablo! Se nos descobrem eu sou, no mínimo, despedida, e tu vais preso, com toda a certeza! Sussurrou Inês.
Dito isto, Pablo agarrou o seu pescoço com ambas as mãos e beijou-a, ainda com os lábios pintados da máscara. Inês não ofereceu resistência. Era um fulgor de pensamentos que não diziam nada, gestos que falavam, toques apaixonados, gritos mudos. Se se ouvisse alguma vez naquele aperto mudo que leva em si todo o sentido que as coisas possam ter, dir-se-ia, beija-me, e que a tua saliva seja como um ácido que escorre no meu interior, que apaga todas essas memórias sujas do mundo.
- Será uma questão de tempo até os descobrirem, Pablo,
- Sim, eu sei… já não estamos em tempo de palhaços.
Entretanto a noite caía.
sábado, 17 de outubro de 2009
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Amigo Aristotélico,
ResponderEliminarGostei bastante do conto, do final, incluído!
Abraço
Low Gones
Viva amigo Low!
ResponderEliminarObrigado! É sempre bom ter um feedback de um companheiro de ofício.
Um abraço