quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Um dia na vida de Adolfo Comensal

Busca Adolfo! Caça!

Adolfo Comensal é um jovem português de 32 anos de idade. É comercial de profissão, solteiro e bom rapaz. Tem cerca de 1,80m de altura, 72 kg de peso e não gosta de romãs. O seu corpo é delgado e um pouco esquivo, o que lhe tem trazido, de certa forma, alguns dissabores na apreciação implacável do sexo oposto. A sua cabeça é de tamanho regular e denota já uma certa calvice, a qual Adolfo procura disfarçar dentro dos resignados limites que a moda lhe impõe. No local e durante o horário de trabalho, Adolfo usa um fato (não muito requintado, diga-se de passagemNos dias de folga e aos fins de semana, Adolfo usa blazer e jeans.
Adolfo vende cartões de crédito em regime de comissionista, representando uma dessas grandes multinacionais ligadas ao sector financeiro.
A consciência religiosa de Adolfo leva-o a comparar a actividade da sua empresa com as divinas concessões do Espírito Santo. Pois tal como na origem dos tempos, no Paraíso, Deus colocou a Árvore do Pecado no Jardim do Éden à disposição dos pecadores (ainda sem o saber), Adão e Eva, também a Sancticrédit (chamemos-lhe assim) coloca o seu majestoso crédito ao serviço de todos.
A Sancticrédit dispõe de um serviço de angariação de clientes espalhado pelos quatro continentes (no qual Adolfo se integra), um serviço de gestão de informação e um serviço de cobranças, para os faltosos. Tal como o Espírito Santo, já se viu que a Sancticrédit concede com a mesma bondade que cobra aos infractores (que neste caso bem se poderiam chamar pecadores). Tal como o Espírito Santo, a Sancticrédit não teria razão de existir sem devedores. Estes são o cerne da sua existência.
Recentemente, e dentro da política de expansão professada pela empresa, a Sancticrédit reinventou a sua política de angariação de contratos em algo mais agressivo. A acentuada concorrência que se faz sentir no sector exige uma redobragem dos esforços para vencer a concorrência, um esmero sem precedentes na argúcia dos comerciais, uma dedicação divina por parte dos prospectores de mercado. “Um projecto é aquilo que fazemos dele”, eis a máxima sacramental da Sancticrédit, a angariadora de almas e vendedora de sonhos. Esse esmero consiste em nada menos que na deslocação ao próprio domicílio do cliente para que este assine o contrato de adesão. O trabalho prévio é levado a cabo por um callcenter com funções de telemarkting. Os teleoperadores contactam telefonicamente os potenciais aderentes com base em uma lista de nomes e contactos de acesso público: as páginas amarelas. Ora, efectuado o contacto com o número em questão, o teleoperador comercial explica sucintamente o produto em causa ao potencial cliente e este, desta feita, acede ou não acede a uma visita por parte do director comercial.
Este não é ainda o caso de Adolfo. Adolfo dispõe de uma pequena banca pré-fabricada instalada num Centro Comercial. Esta banca é constituída por uma pequena mesa à altura do peito, dois bancos altos e um ecrã. Como é óbvio, esses dois bancos destinam-se ao comercial e ao cliente, sendo o local onde vão celebrar o contrato de adesão. O visor tem duas funções: por um lado a perspectiva publicitária, isto quando se trata do visionamento de spots publicitários destinados aos transeuntes frequentadores do centro comercial; por outro lado destina-se à própria doutrinação do comercial. Afinal, quem será capaz de vender um produto em cujas vantagens não acredita? Qual será o vendedor de sonhos ou ideologias o que não é, ele próprio, um sonhador e idealista?
Adolfo não é um idealista, mas acredita na função social que a sua profissão implica. É uma função essencialmente democrática, nas palavras do próprio, uma vez que assim se possibilita o acesso ao crédito a toda e qualquer pessoa, vantagem que antes estava reservada a uma minoria empresarial privilegiada. A democracia, o progresso e a concorrência trazem vantagens aos cidadãos. É esta a grande crença e ideologia de Adolfo.
Tirando estes preliminares, resta-nos apenas acentuar duas notas: primeira, que Adolfo trabalha já para a Sancticrédit há dois anos; segundo, que a sua profissão lhe agudizou de forma incrível a percepção. Afinal, tudo se trata de percepção e psicologia. Adolfo espera, o potencial cliente passa, Adolfo dispõe de uma espécie de visão raio-x que lhe permite identificar rapidamente um potencial aderente, pela maneira como anda, como veste, como fala, como olha. Exemplifiquemos. Imagine-se um centro comercial e uma chusma de gente que passa. Numa primeira abordagem, e seguindo os mais elementares princípios da probabilidade, quanto maior a quantidade de gente que passa, maior será a probabilidade de Adolfo conseguir mais uma alminha para o seu Paraíso. Nada mais falso! O que conta, antes de tudo, é a sorte. Recorde-se o episódio bíblico em que o bom semeador lança as sementes ao caminho. Umas frutificam em terra fértil, ao passo que outras caem na pedra ou em terra estéril, pelo que não frutificam. O mesmo se passa com a prospecção de aderentes. A única e cruel diferença é que as hipóteses de sucesso não parecem subir com o aumento do número de tentativas. Antes pelo contrário, a um aumento desenfreado de tentativas corresponderia, quase invariavelmente, a criação de uma certa dinâmica de fracasso, uma aura de derrota à medida que as recusas se vão multiplicando. Tudo isto pela simples razão de que o pensamento do vulgo segue esta lógica: “Se não é bom para o meu vizinho, porque o será para mim?”; assim como verdadeira é a proposição inversa: “o que é bom para o meu vizinho é bom para mim”. Afonso sabe disto. A experiência já lhe ensinou o suficiente para terminar o dia com algo nas mãos.
Forçoso é também evitar os zombeteiros e ociosos. Ainda tem bem na memória aquele fatídico dia em que lhe surgiu um espécime desses. Há que desconfiar sempre dos mais solícitos. A solicitude em excesso leva sempre algo na manga. Trata-se de um caso em que Adolfo, ainda a frescos dias de exercício da profissão, abordou um jovem que não teria mais que os seus vinte e cinco anos. O jovem em questão não se encontrava mal apresentado e ostentava um sorriso natural e franco, embora não muito astuto. Ora, Adolfo abordou então o nosso jovem e apresentou, de forma sucinta, clara e atractiva o seu produto. Ás afirmações de Adolfo, o jovem respondia com olhares iluminados e sorrisos curiosos. Foi sem hesitação que o jovem acedeu ao convite de Adolfo para “abancar” e assinar o dito contrato. Oh! Não sei de nojo que o conte, como diria o poeta! O jovem dera uma morada e nome falsos a Adolfo, pelo que fora o seu vizinho que recebera o cartão e em nome nada menos do que do seu cão. Até o cãozinho teria um cartão de crédito. Mais uma vez, recorrendo à sabedoria dos antigos, seria caso para dizer: “Foge cão que te fazem Barão! Para onde, se me fazem Conde?”
Assim, já com as devidas ressalvas mentais, Adolfo observa a chusma de gente que invade os corredores do centro comercial numa tarde chuvosa de Domingo. Ali vai o velho reumático engravatado! Provavelmente recebe apenas uma reforma miserável e veste gravata apenas para recordar os velhos tempos de dignidade; ou então é um velhote rico e informado que já conhece todas as nossas artimanhas, portanto, a investida mais não será que uma perda de tempo. Ali vai a senhoreca de meia-idade vistosa! Não! Pelo aspecto já deve ter um cento de cartões deste género, pelo que mais vale evitar mais um “Não obrigado!” ou “Obrigado, já tenho.” Ali vai o jovem de olhar sombrio e mochila. Não! Ou é mais um estudante teso ou mais um desses intelectuais da treta anti-consumistas. O melhor que teria seria mais um “Não obrigado”, seguido de um olhar de desprezo monumental ou, com um pouco mais de sorte, uma asserção fastidiosa dessas do género: “Ainda não me rendi!”; “Essas coisas não são para mim!”. Olha, a menina fútil de penteado da moda! É uma boa candidata mas… aqueles sapatos devem ter pelo menos dois anos… e a mala é, de certeza, sua contemporânea… Ah, ah, ah! Aí vem os meus preferidos! A família típica! Dois miúdos ranhosos dentro de um carro de compras em pacífica convivência com duas caixas de Super Bock; a mater com alguns fios de cabelo brancos e o corpo deformado de gordura nos locus habituais da espécie mediterrânica e claro, a cereja no topo do bolo, o paterfamilias baixote, gorducho, testa suada e cachaço peludo. Exactamente o género dos que, a meio do mês, já não tem dinheiro para as despesas correntes… Ataca Adolfo, Ataca!
-Boa tarde! Posso-lhe fazer uma pergunta? Disse Adolfo ligeiramente curvado e de cabeça inclinada. Adolfo compreende já o enorme poder sugestivo da pergunta e o seu poder sobre os corações humanos. É claro que, se em vez de um Adolfo tivéssemos uma Catarina, de formas e carnes apetitosas, dispensar-se-iam todos estes meandros de exploração teórica da psicologia do consumidor. A psicologia é uma ciência magnífica. É definitivamente a ciência do século XXI. Uma ciência do novo-riquismo e do esgotamento de todas as possibilidades. A psicologia é algo parecida com o olhar vago de uma rapariga loira. Nunca tem fim!
- Boa tarde! Ora faço o favor de dizer amigo!
- O senhor trabalha?
- Sim, trabalho. E posso saber porque o quer saber?
- Muito bem, quer dizer que se o senhor trabalha não precisa do nosso cartão!
- Mas o senhor está a vender cartões?
- “ Eu não vendo cartões, estimadíssimo senhor. Eu vendo sonhos. Eu vendo “O Cartão”. Nada mais do que o melhor cartão de crédito do mundo! Pertenço à companhia Sancticrédit. O senhor conhece?
- Sim, já ouvi falar. Mas ouça lá amigo, se eu não preciso do cartão, como de facto não preciso, porque é que estamos a ter esta conversa. Melhor, porque estamos ainda a conversar?
- Pergunta pertinente, senhor… desculpe, tenho o prazer de estar a falar com o Sr…
- Hermínio Costa;
- Muito bem Sr. Hermínio Costa, como lhe estava a dizer, o senhor não precisa deste cartão, e é precisamente por isso que é do seu inteiro interesse adquiri-lo.
- Não compreendo
- Passo a explicar Sr. Hermínio. É que um cartão como este, tal como a graça divina, só se concede a quem não necessita. Precisamente por isso é uma graça.
- Muita graça tem você, estou a ver…
- O Sr. Hermínio já fez férias este ano?
- Ó amigo, se eu e a minha esposa ganhamos o salário mínimo, com dois filhos, como é possível tirar férias? Só se for no quintal lá de casa…
- Exactamente Sr. Hermínio! Mas com a Sancticrédit poderá realizar este sonho, uma vez que serão sorteados dois dos nossos primeiros dez aderentes para umas fantásticas férias de dois dias nas Maldivas. Além disso, o Sr. Hermínio pode ainda usufruir de 10%de desconto em compras numa das lojas desta cadeia de supermercados, em todo país. Além disso, bastará um certificado de rendimentos para que lhe concedamos um plafond superior a 1,500 euros.
- Mas isso tem um custo certo?
- Ora, sim… pode usufruir de todas estas vantagens por apenas 20 euros por mês, sendo que a compra lhe será descontada na sua conta bancária entre o dia um e sete do segundo mês seguinte à data da compra. O que acha Sr. Hermínio?
- Bem… Acho que a gente deve adaptar os gastos aos nossos ganhos… Se eu ganho 450 euros e a minha esposa outros 450 euros, isto perfaz um total de 900 euros. Se comprar um artigo que custe 500 euros, é certo e seguro que este dinheiro me irá faltar no orçamento familiar, certo?
- Sim, mas a dilação no pagamento tornará possível a compra, Sr. Hermínio…
- Olhe, desculpe amigo, mas não estou interessado naquilo que me está a propor… Não necessito deste cartão!
- Sim necessita Sr. Hermínio, – e ao dizer isto acelerava o passo à medida que a presa se afastava.
- Permita-me só mais uma pergunta!
- O quê?
- O Sr. Hermínio considera-se uma pessoa solitária?
- O que quer dizer com isso?
- Digamos que… sem grandes rodeios, o Sr. Hermínio tem outras diversões, para além de ser um pai de família dedicado, como já vi que é…?
- Bem, digamos que… por vezes dou umas voltinhas…
- Muito bem Sr. Hermínio. Então numa dessas voltinhas, o Sr. Hermínio já viu a vergonha que o seu divertimento vai sofrer se, um dia, nem que seja apenas um dia, se tornar mais caprichoso… digamos, mais carente?
- Pois, lá isso é verdade…
- Senhor Hermínio, não pense mais! A Sancticrédit poupá-lo-á a semelhante vergonha. Adira já!
Dito isto, o gordinho Sr. Hermínio abancou na mesa da verdade e assinou o decreto que o livraria de semelhantes vergonhas no futuro.
Á parte do aspecto prosaico que ressalta desta pequena narração porque, de resto, temos plena consciência da ausência de brilho de um acontecimento destes, que polvilha o Reino de Aquém e Além Mar. Ressalto aqui apenas a habilidade argumentativa de Adolfo. A forma como soube identificar o potencial aderente, de como o abordou, como conseguiu salvar a situação, mesmo quando tudo parecia perdido. A forma como ,enfim, conseguiu explorar a pobreza franciscana do Sr. Hermínio, colocando-lhe na hora certa o leitão em cima da mesa. Se viver o bastante para o saber, Deus próprio se encarregará de colocar o leitão no outro prato da balança, no dia do Julgamento Final. Esta é a sina dos justos…


Encontros Imediatos com o Chefe. O Delírio.

Afonso recobrou o ânimo depois desta pequena vitória. A vida de um comercial não é fácil, e os ganhos sempre incertos.
Enquanto cogitava nas suas continhas de fim-de-mês, Afonso avistou ao longe o vulto obtuso do seu chefe. Era um homem de estatura média, vestia fato de estilo fraque e caminhava a passos largos e rápidos, como se perseguisse sempre algo invisível - a sua sombra, um vulto feminino atraente, algo deste género. Aproximou-se da banca.
- Viva Afonso! Como vai isto?
- Vai andando, Dr. Carlos… Sabe como é… isto tem dias. Mas hoje até nem está mal de todo. Acabei de marcar um.
- Bravo Afonso! Sabe, tenho um assunto para conversar consigo. O Afonso sabe da nossa mais recente política de expansão, que envolve a própria prospecção de aderentes ao domicílio…
- Sim, ouvi falar…
- Pois, é esse mesmo assunto que me traz aqui hoje à sua banca. Nós, e quando digo “Nós”, refiro-me à empresa, quer dizer, à delegação regional da nossa empresa, temos estado atentos aos progressos dos nossos comerciais, e chegamos à conclusão que o Afonso merece algo melhor do que esta banca, neste centro comercial. A questão é a seguinte: que me diz o Afonso, se lhe propuser um lugar como director comercial do concelho X, onde o Afonso encarregar-se-á da angariação de contratos. Como já deve estar informado, os nossos operadores de telemarkting efectuam a primeira abordagem com o cliente, sendo que, após tal contacto, o Afonso apenas terá de se deslocar a casa do cliente e celebrar o dito contrato. Escusado será dizer que o seu salário aumentará para o dobro, excluindo as comissões, é claro.
- Bem, eu…
- Ah! Bem me parecia que o Afonso encaixava perfeitamente neste perfil. O Afonso tem o dinamismo e a próactividade requeridas para a função. O Afonso é um visionário! Sabe que, na nossa área de negócios o mercado está, de certa forma, saturado. A concorrência é feroz e imaginativa. Temos que dar tudo de nós próprios! Temos que viver o negócio e inventar! Sobretudo inventar! Ser criativos! - enquanto pronunciava o seu discurso as suas faces enrubesciam e os seus olhos crispavam. As órbitas oculares pareciam já denotar um certo púrpura, como aquele que vemos nas mãos dos mortos em certos velórios. Continuava.
- Sabe Afonso, a propósito de imaginação, devo partilhar consigo uma das minhas recentes reflexões. O que pensei foi nada menos do que o seguinte. Sabendo nós, de fonte segura, que este mercado está saturado, e quando digo saturado refiro-me não só ao facto de praticamente toda a população activa adulta possuir um cartão de crédito, da nossa ou de outra qualquer empresa, mas mais precisamente a algo inquietante. Ao contrário do que acontecia há alguns atrás, as pessoas começam a ficar cada vez mais informadas dessa propaganda nefasta sobre os malefícios do consumismo. Ouve-se nos telejornais casos de pessoas que desgraçam as suas vidas por dívidas, casas penhoradas, famílias destroçadas. O Afonso compreende o perigo que isto pode representar para a nossa causa? Por outro lado, sabemos também que a publicidade em excesso pode ter efeitos contraproducentes.
- Sim, Dr. Carlos, é uma das impressões que tenho tido desta nossa actividade. A solicitude em demasia desacredita o produto.
- Exactamente Afonso! Imagine só! O Afonso também anda aí na luta… certo?
- Não compreendo Dr. Carlos!
- Na luta, quero dizer, no engate, o Afonso é solteiro não é?
- Sim, sou.
- Imagine, o Afonso vê uma rapariga bonita. Quer conhecê-la. Quer passar bons momentos com ela, enfim, namorar, casar, o que queira…compreende?
- Sim, sim…
- Ora, suponhamos que o Afonso começa a gostar muito dessa rapariga, a venerar os seus passos, a enfeitiçar-se com cada sorrisinho ou inclinar do queixinho…
- Sim, sei exactamente do que está a falar…, - disse, um pouco embaraçado.
- Bravo Afonso! Agora suponha que tem um concorrente, isto é, alguém que também viu o mesmo docinho e também quer provar… Mas diferentemente do Afonso, esse nosso D. João “de trazer por casa” é calculista e desinteressado. Conhece todos os picos de emoção feminina. Dá-lhe um pouco de tudo nas medidas certas. Não lhe liga todos os dias, aproveita o timing exacto para atacar… não carrega o semblante com um ar de carneiro mal morto apaixonado. Um desses que “a sabe fazer”, compreende? Desses que não fala muito sobre si mas faz com que o seu nome esteja escrito em toda a parte. Agora imaginemos que o nosso Afonso, apaixonado como está, não se controla nas suas emoções, liga-lhe a toda a hora até à exaustão, abre as suas entranhas para que a pequena veja como são belos e puros os seus sentimentos, de como ela poderá viver eternamente na sua confiança… Diga-me Afonso, quem pensa que levará a melhor? Você ou o D. João “de trazer por casa”?
- Pois…, - disse Afonso com um ar de certa forma resignado,
- Bravo Afonso! Você é um homem inteligente! É precisamente por este facto, por esta tendência humana para pensar que o incógnito e o desinteressado é o melhor para si, que vamos alterar radicalmente a nossa estratégia de markting. Vamos acabar com a publicidade televisiva e outdoors… O Afonso acredita que a maior parte das tragédias e catástrofes humanas acontecem por um único motivo, o tédio? Acredita que a mensagem cristã vingaria com outdoors e sloogans chatos? Nunca. O triunfo foi-lhe outorgado pela publicidade oculta. Pela mensagem simples que passa de boca em boca… Eis a chave do sucesso…
Pois é o seguinte: todos os nossos operadores de telemarkting deverão, no acto de ingresso na empresa, trazer consigo o nome de quinze contactos de amigos, conhecidos, familiares. Estabelecerão a abordagem prévia com esses contactos, para que logo de seguida recebam a visita domiciliária dos nossos directores comerciais. Assim poderemos tirar vantagem, por um lado, do enorme fluxo de operadores de telemarkting que recebemos na nossa empresa; por outro lado, da segurança que o contacto pessoal proporciona em termos de receptividade e empatia com o produto. O que acha Adolfo?
- É muito boa ideia Sr.Dr.;
- Sim Adolfo, além disso envolve um dos mais nobres sentimentos que a existência humana nos permite, miseráveis animais.
- O quê?
- A solidariedade. Repare que, nem que a pessoa esteja plenamente convencida da inutilidade que o produto representa para si, o laço de afectividade que o une ao operador de telemarkting fará com que adira. É a nova face do comércio no século XXI, Adolfo. É a marcha inexorável do progresso…
- É a história…
- “Sim Adolfo, você e eu somos a história e toda a sua inexorabilidade que lhes cai em cima. O século XXI, como de resto já foi provado, correrá todo ele no domínio da imaterialidade. A riqueza de um indivíduo poder-se-á avaliar por toda a escala de benefício material que a sua produção imaterial pode proporcionar. Isto implica que todos devemos dar o nosso máximo. As possibilidades de ganho e de alcance material são ilimitadas, se ilimitada for também a capacidade de um indivíduo para se adaptar a estas novas grelhas de acção.
- Grelhas de acção? - inquiriu Adolfo;
- Sim Adolfo, a capacidade que cada um terá para se adaptar aos novos padrões impostos pelo sistema. Da mesma forma, este excluirá todos aqueles que não se lhe adaptem. É a sobrevivência do mais apto na luta pela vida.
Adolfo, já um pouco confuso, levado ao limite das suas capacidades intelectuais, começara a sentir uns suores frios nas costas, na palma das mãos e na planta dos pés. Despediram-se.


Voa Adolfo! Voa!
Nesse mesmo dia, Adolfo, acabado o seu turno no centro comercial, dirigiu-se a casa, quando recebeu uma esperada chamada. O chefe liga.
-Sim, Adolfo, no seguimento da nossa conversa e após uma visita relâmpago ao nosso escritório, encontrei a tarefa ideal para si. Que tal fazer uma visitinha aqui a um potencial aderente. Acabou de ser proposto por um dos nossos operadores de telemarkting. É um pouquinho longe, mas segundo as informações que tenho é aposta ganha. Que acha?
- Ok! Está bem! Precisava só que me desse a morada”;
- Claro, é a senhora Josefina Macarrão, Rua do Futuro, nº31. Apontou?
- Sim, está bem… já memorizei. Vou apenas colocar aqui o nome da rua no GPS.
- Bravo Adolfo! Até logo!
Adolfo dirigiu-se a toda a velocidade para a dita casa de uma senhora qualquer que tinha sido proposta por um dos teleoperadores. Assim até se aposta em valores mais seguros, pensou. A viagem não iria ser tão rápida como pensava. O local encontrava-se num espaço ermo já fora do núcleo central da cidade. Era uma casa já bastante antiga, estilo senhorial do século XIX, construída sob uma ligeira colina. Logo abaixo da colina encontrava-se um terreiro seguido de um pequeno afluente do rio.
Adolfo estacionou bem juntinho ao número 31 da rua do Futuro, onde se encontrava já estacionado um carro de marca BMW. Um indivíduo alto, com cerca de 1,80m aguardava junto ao portão e fumava pausadamente. “-Quem será aquele tipo? - pensou Adolfo.
Saiu do carro e dirigiu-se apressadamente ao portão.
- Boas tardes.
- Boas tardes.
- O Sr. sabe-me dizer se é aqui que vive a Sr. Dona Josefina Macarrão?
- Sim, penso que sim. Quer dizer, pelas indicações que tenho…sim. Há já quinze minutos que aqui estou a tocar a campainha e ninguém vem à porta, por isso duvido que esteja em casa.
- Mas o senhor também deseja falar com a Sra. Dona Josefina?
- Pois sim! Pertenço à empresa Sancticrédit e tenho indicações para fazer aqui um contrato…”
- Como??!! Mas só pode estar a brincar! Eu também sou agente, quer dizer, agora director comercial da Sancticrédit e também recebi indicações para fazer aqui um contrato!
- O Sr. … desculpe, como se chama?
- Adolfo… Adolfo Comensal.
- Sr. Adolfo, deve haver aqui algum equívoco, porque foi a mim que foi incumbida a tarefa de vir precisamente aqui, a esta casa, fazer um contrato, por indicação de um dos nossos teleoperadores.
- Não, não pode ser! Deve haver aqui algum engano. Vou ligar ao Dr.Carlos para esclarecer esta questão; - disse irritado. Ligou mas ninguém atendeu.
- Olhe Sr… desculpe, ainda não me disse o seu nome…
-Ricardo… Ricardo Contrição.
- Sr. Ricardo Contrição, eu fui incumbido pelo Sr.Dr. Carlos Amorim, sim, esse mesmo que é director regional de vendas, de fazer uma visita a esta casa e de fazer um contrato. Não sei que tipo de confusão pode aqui haver, nem sei que tipo de informação lhe possam ter dado, mas este contrato é meu!
- Sr. Afonso Comensal, em primeiro lugar não gosto do tom em que me fala. Em segundo lugar, eu não arredo daqui pé até fazer o contrato, como tinha previsto, com a Sra. Dona Josefina Macarrão.
Não acabava, quando Adolfo lhe desferiu um violento soco no queixo, que lhe abalou todo o perímetro craniano. Não foi, contudo, suficiente para imobilizar Ricardo, porque este, imediatamente, o agarrou pela grava, puxando-o para si até que ambos caíram no chão de terra. Agarravam-se freneticamente, rebolando pelo chão num emaranhado de braços e de pernas dificilmente distinguível, umas vez que a sua indumentária e compleição física era parecida. Rolaram pelo pequeno declive que se encontrava do outro lado do caminho, até parar junto ao riacho.
Quando finalmente pararam de rolar, Ricardo encontrava-se praticamente imobilizado. Havia embatido violentamente com a cabeça num pedregulho que ali se encontrava. Adolfo soergueu-se lentamente, agarrou o pedregulho e bateu com a sua parte pontiaguda na testa de Ricardo, o que provocou imediatamente um jorro de sangue.

E agora Adolfo?
Levantou-se lentamente e a muito custo, já que a queda o tinha macerado em várias partes do corpo. Olhou brevemente para a cara desfigurada de Ricardo e ajeitou o fato, descomposto, sujo e rasgado em alguns sítios. Pegou na pedra ainda tingida de sangue. Como lhe custou pegar novamente na pedra. Tornara-se pesada. Excessivamente pesada. Lançou a pedra ao rio. De seguida, agarrou em Ricardo pelas pernas e arrastou-o a muito custo para o rio. Já com os pés dentro do rio e o cadáver de Ricardo submergido até aos joelhos, saiu do rio e empurrou definitivamente Ricardo para longe da margem. Limpou o suor da testa.
Saiu do rio. O suor banhava-lhe todo o corpo, tinha os pés encharcados e uma terrível náusea apoderara-se dele.
Subiu o pequeno declive que se encontrava à beira-rio, não sem antes tropeçar algumas vezes e bater com os joelhos no chão terreno.
Finalmente conseguiu alcançar de novo o portão. À medida que avançava para o portão, o seu corpo tornava-se mais pesado e a náusea agudizava-se a um ritmo alucinante. Mesmo assim conseguiu tocar a campainha, apoiado com a cabeça no lance de parede adjacente. Tocou uma segunda vez.
Esperou cerca de dois minutos, quando ouviu um ranger de porta, desses pesarosos e estridentes, típicos das portas antigas.
- Quem está aí? - ouviu-se uma voz idosa que vinha de dentro.
Ricardo recompôs-se de súbito e colocou a voz o melhor que as circunstâncias lhe permitiam.
- Sr. Dona Josefina, o meu nome é Adolfo Comensal, e estou aqui em representação da empresa Sancticrédit. Foi-me indicado por um dos nossos colaboradores que estaria interessada nos nossos produtos…
- De quem?!?! - interrompeu D. Josefina.
- Sancticrédit, - respondeu Adolfo animado;
- Aproxime-se mais da porta que não o estou a ouvir bem, meu jovem! -
Adolfo aproximou-se e subiu dois lances de escada que o levavam directamente ao pórtico de entrada. Só quando se encontrou na soleira da porta viu de mais perto a sua potencial aderente. Era uma velha senhora, com cerca de 82 anos, cabelos brancos, ligeiramente corcovada e com a face profundamente enrugada. Diria mesmo incrivelmente enrugada. Poder-se-ia mesmo dizer que ninguém acumula numa vida só tantas rugas.
- Então o que estava a dizer meu jovem? Oh, veja só! O senhor está a sangrar do lábio e tem o fraque roto. O que lhe aconteceu?
- Nada… não se preocupe Sr. D. Josefina, foi apenas uma pequena queda quando saía do carro. Não se preocupe, não foi nada…
- Não, espere que vou ali buscar um pouco de água oxigenada e tintura de iodo para tratar essa ferida, que está com um aspecto um pouco feio. Espere-me só um minutinho, meu jovem.
- Com certeza, D. Josefina.
Enquanto a idosa senhora se afastava, Adolfo reparava na decoração da casa. Encontrava-se numa velha cozinha revestida de pedra, com uma mesa de madeira ocupando quase todo o perímetro da cozinha. Bancos corridos adornavam os flancos. Na parede do lado poente ressaltava à vista um velho fogão de ferro com uma porta semiaberta. A partir do ponto de vista de Adolfo, apenas se entrevia uma ténue chama que queimava o último pedaço de madeira que ainda sobrava. Não tardaria em se apagar, pensou.
D. Josefina voltou pouco tempo depois, a passos lentos, habituais em pessoas agraciadas pela longevidade. Trazia numa das mãos um frasco de vidro espesso e na outra um pouco de algodão. Embebeu o algodão com um pouco de água oxigenada e aplicou no local da ferida, perto do lábio inferior de Adolfo. Ao aplicar a solução a ferida reagiu com um pequeno fervilhar de cor branca.
- O que arde faz bem! - disse a senhora.
- Muito obrigado pela sua atenção, D. Josefina. Estou-lhe muito grato pela sua hospitalidade e cuidado. De qualquer forma não se preocupe que estou bem.
- Sim, isto vai sarar rápido, - disse D. Josefina.
-Então, como lhe estava a tentar dizer na nossa conversa de há pouco, venho em representação da empresa Sancticrédit, e foi-nos indicado por um dos nossos colaboradores, que a D. Josefina estaria interessada no nosso cartão de crédito, cujas condições e benefícios penso que já conhece. No entanto, será uma honra e um prazer voltar a explicar-lhos, se a D. Josefina o desejar…
- Não, não é necessário, - disse a idosa num tom maquinal.
Muito bem, sendo que já está inteiramente informada sobre as vantagens e encargos do nosso cartão, trago-lhe aqui este contrato, que a D. Josefina pode ler, e que deve assinar precisamente aqui nesta última linha, - e dito isto apôs uma pequena cruz onde a senhora deveria assinar.
- Pronto, agora só falta a D. Josefina assinar aqui onde lhe indiquei.
Dito isto, Josefina apôs também uma cruz no local indicado para a sua assinatura. Adolfo, perplexo, continuou,
- Não compreendeu, Dona Josefina, tem que escrever aqui o seu nome;
- Não sei ler nem escrever, meu bom jovem…
Adolfo enrubesceu. Pensou imediatamente, mas que espécie de idiota me indica uma aderente que não sabe ler nem escrever! Isto não me pode estar a acontecer…!
- Mas coloco aqui a minha cruz, bem juntinho da sua. Suponho que as cruzes, tal como as assinaturas, nunca são iguais. Cada um tem a sua…, -
Adolfo não vislumbrou nenhum impedimento legal, pelo menos do que sabia sobre contratos de adesão, para os quais o mínimo sopro vital exprime uma vontade.
- Está bem! Serão as nossas cruzes, Sra. D. Josefina…
- Sim, serão as nossas cruzes…
Adolfo levou o dedo indicador ao lábio inferior que ainda sangrava um pouquinho, tingindo-o com o seu próprio sangue. Estampou-o sobre as cruzes colocando a sua impressão digital em tons de vermelho claro.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta, deixando uma cópia do contrato a D. Josefina. Ao abrir a porta reparou que nunca havia estado tão trémulo na sua vida, e se algum espelho houvesse naquele preciso local veria como a sua face empalidecera de súbito. Desceu o duplo lance de escadas com o corpo descaído e balançando a cabeça ao ritmo da descida.
Quando finalmente saiu do portão e entrou no carro, limpou o pouco de sangue que ainda lhe restava no lábio, ajeitou o espelho retrovisor, fixou o olhar no horizonte e arrancou a toda a velocidade em direcção à cidade. Entretanto, a noite caía.

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