No passado dia 3 de Setembro de 2009 faleceu o líder do último partido genuinamente marxista de Portugal, e quiçá de toda a Europa. Estou a falar de Guilherme Pais, mítico líder do PCAOP (Partido Comunista dos Agricultores e Operários Portugueses). Poucos meses antes de soltar o último suspiro, Pais havia escrito um texto que podemos interpretar como um testamento, e que nos permitimos agora reproduzir sem mais demoras.
«Esperar muito da vida é a mesma coisa que apanhar uma enorme ressaca após uma noite ébria. Era isto que pensava no final de mais uma das minhas aulas de filosofia. Continuo a pensar que a filosofia é uma disciplina imprópria para ser ensinada. Nada estranho que Nietzsche perdesse a voz perante os seus (talvez) não muito interessados pupilos suíços.
Limitei-me a observa-los passada a hora de terminar a aula. Quando eu me sinto precisamente sob o ponto de tocar em algo celeste, falo-lhes das grandes correntes filosóficas dos séculos XIX e XX. Descobrira uma vida de enganos para tantas dessas almas nobres, que tudo passava em silêncio e tudo se desfazia, que mais importante era o mundo que os esperava lá fora, como os via, em passo acelerado, voltando ao mundo aniquilador. Sim, aniquilador. E disto isto não preciso de acrescentar nada.
Surgia-me então um outro pensamento. Qual seria a diferença, sim, a diferença, se eu, Guilherme Pais, professor e político, senhor de uma biblioteca interna de vários volumes, eu, senhor de ossos, músculos, tendões, braços, pernas, cabeça, afectasse esses mesmos músculos, tendões, braços, pernas, cabeça ao único fim para o qual parecem ter sido concebidos: viver – mas é de outro modo de vida que falo, aquela que desconheço ou da qual não tenho memória. Fruição. Como um animal que usa apenas a sua capacidade de abstracção em sintonia com a finalidade para a qual se adaptou: caçador-recolector. Não sou Darwinista, mas essa foi e continua a ser a nossa sina, essa que para nós caiu em esquecimento. Não admira pois que cada vez que a esquecermos só encontraremos infelicidade.
Quando em horas funestas olho para esses jovens que desejam tirar proveito da vida, hedonistas à sua maneira. Pelo menos de uma maneira que julgam que é a sua, e que ao fim e ao cabo é a de todos. Que sonham viajar e salvar as criancinhas esfomeadas do Sudão, salvar mulheres muçulmanas do patriarcalismo radical islâmico, resgatando-as das garras da morte. Quando vejo toda esta gente tão cheia de vida, tolerante, organizada, bondosa – terrivelmente bondosa, com devaneios calculados, os filhos do mundo globalizado a quem fizeram crer que tudo é possível. Quando vejo a um só, a todos, a nenhum, enfim, são todos iguais, apenas desejo ser como eles e viver a vida com um sorriso nos bons momentos, um ligeiro amuo nos maus, viver e envelhecer e um dia pousar levemente a cabeça no travesseiro e dormir o sono eterno. Por certo sei que não será assim.
Disse chamar-se Lola. Lola tinha 30 anos e falava pelos cotovelos. Lola era baixita e tinha o cabelo curto. Falava convulsivamente em avalanches verbais que rolavam até ao esgotamento do fôlego. Quando pensávamos que daquele sopro já não sairia mais nenhuma palavra Lola surpreendia. Era assim Lola. Tinha 30 anos Lola. Aos 30 anos todos chutam uma mulher para canto: os patrões, os gajos, tudo…
Um dia deste deram-me a entender que um logicista da minha casta deveria ser perfeito. Não porque nascesse perfeito, mas porque os ossos do ofício o exigiam. Quem constrói a realidade como uma montanha de blocos, uma pirâmide ordenada nada mais tem a fazer do que ser perfeito e exigir dos outros nada menos que a perfeição. Pobres loucos estes! Se soubessem que ainda hoje desejei tão ardentemente aquela jovenzita de quinze anos mais as suas carnes tenras, saberiam como tudo isto é vida e tudo isto é arte.
Lola bombardeou-me com informação autobiográfica. Se fosse minimamente perspicaz Lola notaria perfeitamente o meu desinteresse pelo enredo intricado das impressões da loucura da sua vida. Mas amo-te assim Lola. A ti e à tua vulgaridade, porque essa é a vulgaridade de tudo, e é ela que nos faz apaixonar pelo mundo. Nada parece fazer sentido se pensares, Lola, que tudo o que nos apega terrivelmente às coisas tem um substrato volátil. São essas sensações fugazes que nos fazem, Lola. É por elas que julgaremos tudo o que temos de mais precioso.
Saí para o mundo e ele tinha mudado. Apenas vi sombras disformes, mas guardei-o para mim. De que adianta falar, quando todos caminham alegremente para a perfeição? Porque seria eu a estragar o bom ânimo da festa, como me disseram um dia. Compreendi perfeitamente. Compreendi que uma nova fé universal se propagava pela Europa, e que os seus sacerdotes eram mais terríveis que os seus predecessores, precisamente porque trocaram a espada pelo sorriso. Compreendi que já ninguém era levado a sério se não falasse como um desses sacerdotes dos tempos modernos, se não abusasse das suas palavras vazias. O mais terrível seria pensar que me acolheriam com um sorriso ainda mais aberto se descobrissem que não sou um dos deles. Que os quero ver mortos. O Deus empresa prepara o seu pontificado.
Lola, querida, achas mesmo que me ficam bem estas calças? Olha que, magro como estou, com estas calças vão julgar que sou um problema de saúde pública.
Essa chusma de babosos que agora se passeava nas empresas era justamente igual a outros. Esses homens fracos que se pavoneiam como nos corredores ao longo da história, arrancando do fundo do peito fingido odes apaixonadas à natureza, a Deus, à Razão, a tudo, a nada…
Pior do que tudo, (e aqui reside a verdadeira decadência porque nem decadente é), falam agora não mais num tom grave mas sereno, da sua empresa e das suas ninharias. Falam de enriquecer e de outras veleidades como quem falava da revolução em tempos de utopia, e isto sim, isto é o século XXI: merda! Gente a mais que se mata por ninharias. Pior! Não se matam! Mais valia que o fizessem…
Que enfiassem no rabo todas as suas desditas, a igualdade de direitos, os pobrezinhos da Etiópia, os seus merdosos espaços assépticos (tão limpinhos que quase se pode comer no chão), que não sabem mais que fazer. Multiculturalismo (deste nem me atrevo a falar)?. Sussurravam até, veja-se lá, a transformação da linguagem, que até aos dias de hoje ignorou o género feminino – querem transformar o plural masculino. E dizem-me que há lugar para o que quer que seja neste mundo, onde os revolucionários são recebidos pelos ricaços com um sorriso? E isto é o mundo? E isto é a Europa? Mais valia nunca ter passado de um promontório asiático dominado por Atila, o Huno. Mais valia que Hitler e a sua máquina racional sob ímpetos irracionais conquistara todos os cantos desta terra maldita. Aqui deixam-nos viver e sorriem-nos sempre e fazem-nos crer que tudo é possível e que somos todos iguais e que um dia todos seremos presidentes ou reis ou que quer que seja. E isto é a puta da Europa?
De certa forma, Lola vivia num mundo fantástico, onde seres inanimados ganham voz, mortos ressuscitam e presidentes de vários organismos a assediam constantemente para cargos muitíssimo bem remunerados, que invariavelmente declina. O seu fervor persistente em dobrar roupa na loja da esquina prevalecia sobre tudo. Pelo menos era a única dedução possível, atendendo às suas próprias palavras. A sua caminhada estóica reduzia-se, suspeito que involuntariamente, a essas quatro paredes.
Lola vivia oprimida por uma doença imaginária que, ainda segundo a mesma, aguentava trabalhando para não sobrecarregar o Estado. A sua preocupação pela sustentabilidade do Estado Social levava-a a tal sacrifício.
A minha experiência marxista diz-me que nenhum Estaline deste mundo precisa de inventar os seus verdugos. Eles existem e por vezes encontramo-los pasmados nas esquinas. Só então alguém lhes coloca uma vara na mão e diz: “vai e conhece o mundo!”
O verdugo recém-inventado nada tem que o distinga do vulgar ladrão, do vulgar charlatão, do vulgar assassino. Apenas a sua legitimação pelo sistema o distingue dos espécimes citados. O verdugo não tem que ser culto e inteligente (normalmente não o é). Apenas tem que ser suficientemente covarde e cego de valores para fazer (como operacional) aquilo que o regime espera dele: torturar, delatar, matar, o que, repito, é comum a todas as épocas - ou seja, todas as épocas e sociedades têm os seus, sejam quais forem as circunstâncias. O grande quid specificum do verdugo é que apenas tem coragem de espreitar por detrás da amurada quando é protegido pelo sistema. A segunda grande diferença é a sua extrema heterogeneidade e capacidade de mutação. O verdugo pode ter sido um ex-chefe da polícia, um artista medíocre, um jovem arrivista ou até mesmo uma dona de casa. Todos têm em comum o verem na nova posição que o sistema lhes oferece uma oportunidade. Uma oportunidade de carreira, em primeiro lugar; uma oportunidade de dar largas à sua malvadez, em segundo lugar.
Os verdugos odeiam toda a gente. Ou porque a sociedade não lhes deu no passado aquilo que julgavam merecer, ou até porque esse é o seu mais profundo instinto animalesco, que convém em libertar.
Uma terceira razão pode residir pura e simplesmente no medo e no desespero. Medo de ser o próximo visado por essa máquina brutal e inumana; desespero, tão só porque a época é de desespero e só o miserável de rua que nada tem a perder não está desesperado.
De tudo isto convém reter que é a própria máquina cega e brutal que elege e selecciona os seus verdugos. Depois diz-se que a ideologia está morta, que desde a queda do Muro de Berlim o capitalismo continua a sua marcha triunfante, sem uma proposta alternativa credível ou exequível. E é este crer na inevitabilidade da história e dos factos, este determinismo, que começa a verdadeira morte do último marxista.
Criei o meu Partido Comunista dos Operários e Agricultores Portugueses numa época em que se acreditava em algo mais, ou senão em algo diferente que não o dinheiro. Estamos a falar de um tempo em que grupos de jovens se sentavam à bord de la seinne para filosofar e praticar o amor livre. Olho para os jovens de agora e não posso deixar de chegar à conclusão que até o idealismo se tornou algo insuportável. Análises económicas da literatura, atitudes optimizadoras, coaching e outras merdas. Tudo é útil e tudo tem que ser útil – no limite, optimizado, como se essa fosse uma escatologia irrenunciável, mas digo, até os jovens idealistas se tornaram insuportáveis. Não por serem ricos, ou burgueses, ou vaidosos, o que foram características de muitos grandes homens ao longo da história, que nem por isso deixaram de ser grandes homens. Crítico apenas aquilo que neles é artificial, armado, fabricado, protocolar, como se fosse suposto ser bombista na adolescência e conservador na idade adulta, essa idade em que os antigos bombistas se vangloriavam em salões da moda perante os seus comparsas, de copo de wisky na mão, dos seus tempos bons de juventude, e quão bons eram, e quão bom era voltar, e de como tudo isso é impossível hoje, de como não há revolucionários, nem pides, nem padres inflamados contra a invasão vermelha, nem nada que se pareça. Depois de tudo voltarão aos seus lares, onde se deitarão nas suas belas poltronas, ou na sua confortável cama com a sua agradável mulher, com quem farão amor toda a noite (quiçá com a ajuda de medicamentos para aumentar a potência sexual), e dir-lhes-ão palavras bonitas enquanto fazem amor, e falar-lhes-á de coisas amáveis quando descansarem do coito libertador, e depois tudo isto é vida…
Porque trazes hoje presa no cabelo uma flor vermelha? Porquê Lola? De onde vem esse vermelho. Do sangue? Da fleuma? Do trauma de ser vulgar? Dizes-me que gostas… Fica-te bem, Lola. Fica-te bem…
Mas vezes houve em que me revoltei contra o povo, aliás, penso que os marxistas modernos mais não têm feito do que se revoltar contra o povo. Se somos herdeiros de uma ideologia que coloca o povo no seu centro gravitacional, porque não votam em nós? Nós, os que defendem os seus interesses. Porque votam nos partidos que defendem os interesses do patronato? Porque têm mais dinheiro, e porque dominam os meios de comunicação social, e assim conseguem captar o eleitorado com mais eficácia? Não me ocorre melhor resposta do que esta: o povo não existe. O povo já não existe. Já só existem indivíduos, indivíduos que não precisam ser dispersos por maquiavélicas leis anti-ajuntamento, mas que se isolam voluntariamente. Se imaginarmos uma sociedade onde o indivíduo não pode parar de pensar, pensar em como pagar o crédito que vence no dia X, da prestação da casa que vence no dia Y, do seu emprego que breve se extinguirá. Se mantivermos a sociedade como uma massa amorfa em constante movimento não precisamos de máquinas repressivas estatais. O próprio cidadão, por sua livre e espontânea vontade, parará de pensar, resignar-se-á com todo o prazer àquilo que lhe for dado. Por isso, esses verdugos não precisam de se organizar em torno do Estado. Instalam-se nas empresas onde toda a sociedade civil funciona. Isto não pode deixar de gerar uma situação inédita e paradoxal: o Estado passa a bom da fita e os particulares dão-se ao luxo de o ignorar, e fazendo-o sabem que o fazem impunemente, e esta será uma das novas facetas do Estado. A outra será a sua faceta punitiva: multas, regulamentos, normas. O seu único objectivo é arrecadar normas que possam suster o já decrépito Estado social. Enquanto houver Estado social o povo não se revolta, pensam. E a verdadeira razão da opressão permanece mascarada sob os bons preceitos do politicamente correcto: higiene, segurança, previsão, erradicação do caos, e tão pouco saberão que estamos a ser preparados para normas ainda mais intrusivas, que prepararão, quiçá, a tomada de assalto final do Estado pelos verdugos.
Sabes Lola, de todas as leis, as únicas que respeito são as da dor. Talvez sejam as únicas que devam ser respeitadas, porque no fim tudo se resume a isso. Quando imagino as diversas situações que a vida me trouxe e me imagino deitado numa cama de hospital, anónimo, deitado, apenas um corpo diminuído, não posso ver aí alguma dignidade. Não existe dignidade alguma, pelo menos no sentido que os grandes senhores da história lhe deram. Por isso só a vida que procedeu esse momento miserável pode ter tido alguma dignidade. Mas tu Lola, que nada percebes de dignidade a não ser ter o tão pãozinho na mesa e uma cama fofa para te deitares, não verias nada de indigno nessa imagem ridícula, e eu amo-te por isso.
Mas digo-vos, povo, que vos perdoo tudo. Perdoo-vos a vaidade, a inactividade, o conformismo, se continuardes a ser homens no pleno sentido da palavra. Digo isto com a consciência de se tratar de um lugar comum, e com uma consciência oculta ainda mais forte de saber em quantas formas e quantas línguas isto pode ser e já foi dito. Como dizer algo, nos nossos dias, sem que não tenha sido dito por um número indeterminado de personagens do assombro, sobre tantas formas e roupagens diferentes?
Alguma vez me perguntaste, minha querida, como é que o medo assentou arraiais na minha pessoa? Sabes muito bem que passei a ter medo de tudo, e foi o medo que me levou a tudo. Foi em homenagem ao medo que construí o meu império, e foi no seu altar que realizei o meu primeiro holocausto.
E sigo, sob a minha fé marxista. Bani Estaline e a magnífica sociedade que crescia debaixo dos seus braços abertos e os seus bigodes de ratazana. Bani Lenine e essa pretensiosa nova facção que procura reabilitar a sua imagem, e ter morrido novo, e ter proposto uma nova política, e os enfartes, e o maldito Estaline. Bani Trotski e o Anti-Estalinismo, e o pathos, e a picareta, e a agonia. Não sei o que fica. Marx? Criemos mais um Deus imaginário e gritemos o seu nome até à exaustão. Bem sabemos que, ao contrário dos homens, os Deuses ouvem-nos sempre e se pensarmos que tardam nas suas respostas, isso é apenas fruto da impressão contingente que temos do tempo, que o que é para nós uma infinidade de tempo é para os Deuses uma fracção de segundo.
Não quero mais hoje nada teu Lola. Nem o teu sorriso, que me dá descanso aos olhos, nem os teus pés, que me massajam as costas, nem o teu sexo, que conheço já como a palma das minhas mãos. Se inventasses outra língua diria tudo aquilo que sinto por ti, e aí ficarias a saber, e talvez já não me amasses de forma tão pura. Dizias que eu não descansaria enquanto não voasse com as aves, mas estavas enganada. Não te queria abandonar e trocar pelas aves. Queria ir com os vermes. São eles os que sabem mais da vida. Mas o amor, esse… esse nunca esquecerei. Lembras-te como o teu corpo te fazia subir aos céus para logo de seguida te atirar para o Reino dos Infernos? Como incerto moravas nesse Reino para um dia voltares e gritares de novo: isto é a vida! Não te esqueças que só isso vale a pena, querida Lola.»
sábado, 24 de outubro de 2009
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