quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A fantástica viagem de Pedro ao país do nada

I

Faz pouco tempo que Pedro está nesta cidade, mas o pouco foi já suficiente para criar um pequeno núcleo de amigos. Mudou-se de uma pequena vila, não muito distante, para o núcleo urbano Y, em busca de um pouco de tudo, trabalho, cultura, amigos, amor (o que quer que isso seja).
Encontrou trabalho como vendedor de uma conhecida empresa de cosméticos, não obstante as suas reservas intelectuais ao culto do corpo. Depois de algumas visitas a certos estabelecimentos de estética, chegou, afinal, à conclusão, que as coisas do corpo não formam uma realidade tão horrorosa como a pintam os intelectuais. Há certas ocasiões em que a beleza vale por si, disso ninguém pode duvidar…
A cidade é pré-fabricada, e nem de perto se pode dizer que seja acolhedora, particularmente para quem vem de fora. O exotismo deixou de ser moda há já muito tempo nas cidades europeias. Tempos houve, pensa, enquanto come pausadamente a sua sandwich/almoço, em que as pessoas acharam piada à diferença. Ao provinciano, ao estrangeiro, ao sotaque, ao moreno, ao loiro, ao religioso, ao ateu. Mas ninguém acredita nisso nos dias que correm, o que não deixa de ser certa forma paradoxal em tempos de globalização, quando o superavit de informação deveria tornar a sociedade mais cativa à aceitação do estrangeiro. Enfim, não se pode exigir tudo, e mais vale aceitar o olhar carrancudo com que o olham as velhinhas que passeiam o cachorrito no jardim do que o deserto da sua cidade natal.
O seu grupo de amigos, restrito mas perfeitamente compatível consigo em termos de afinidades, partilha dessa opinião. Com efeito, inventou já toda uma gíria e institucionalizou toda uma ritualística em torno do assunto. Por exemplo, a teoria da folha branca. Segundo esta teoria, quem vem de fora deve fazer da sua mente uma folha branca à data da chegada à cidade. É aí que a experiência urbana deve imprimir a sua marca. Um exemplo, entre muitos outros, que iremos explanar à medida que o nosso enredo se for desenvolvendo.
Como não pode deixar de ser nestas coisas, o amor, que o nosso herói conhece já sobre contornos tortuosos, é sempre importante numa cidade onde a solidão é a regra. Mas a própria solidão encontra-se institucionalizada de tal modo que, mesmo assim, é facilmente colmatável. Basta ligar para um desses números que enchem os fóruns todos os dias, e o amor surge... Não que Pedro se deixe seduzir por essas formas fáceis e consumistas das relações afectivas, que o próprio sexo, por mais desinteressado que seja, leva inevitavelmente consigo. Aliás, é da opinião que deve ser a prática a ditar as regras à teoria, isto é, devem ser as necessidades do dia-a-dia, a espontaneidade, que levam a uma configuração mental das coisas, a enformar as nossas escolhas de vida. Daí que pense que o amor não se procura, o amor encontra-se, o que, sejamos honestos, não é uma posição de todo ingénua, indiciando mesmo algum tacto para a coisa…
Correndo o risco de ser profilático em relação à conduta deste nosso herói, podemos mesmo dizer que ele é um “bom”, no sentido mais quotidiano do termo, como já ironizaram muitas das personages que foi encontrando ao longo da sua vida. É nestas alturas em que o seu eu, a sua maldita cara e o seu maldito corpo, que envelhece todos os dias, lhe lembra a maldição de ser sempre o mesmo, ainda que em constante mutação, passando como um espelho ao longo dos espaços e diante das gentes, sempre esse presente.

II

Quando se começa a desenhar o esboço de um personagem, começa-se, e é por aí que se deve começar, pela vida afectiva. Primeiro, porque esta, quer queiramos quer não, é sempre a mais importante e determinante de tudo o resto. É o alicerce de bronze de todas as outras vertentes, de tal forma nos condenou a mãe natureza, diria Pedro, quando tiver voz na narração, o que acontecerá dentro de pouco tempo. Já nas suas conversas de café, Pedro não pode deixar de notar, e esta realidade é particularmente viva aos seu olhos, que o tema sexo é o único no qual todos podem participar com um nível bastante aceitável de profundidade, não obstante a sua origem social, sexo, idade, educação, estatuto. Daqui, não custa depreender a importância que o assunto tem na vida das pessoas. Também não custa compreender que esta tenha sido uma das primeiras preocupações de Pedro logo após estarem resolvidas as questões mais essenciais à sobrevivência: trabalho e habitação.
Foi nesta ordem sincrónica de escalagem da pirâmide das necessidades que Pedro conheceu Sissy. Antes de maiores desenvolvimentos quanto a esta personagem, que por certo conquistará a simpatia do leitor, é nosso dever acentuar, em jeito de prolegómeno, o seguinte: primeiro, não se deixem iludir pelo “ar” porno do nome Sissy, não só porque estamos a falar de um exemplar acabadinho da burguesia do século XXI, isto é, aquela que trabalha no sector dos serviços, a família trabalha no sector dos serviços, todos os seus amigos trabalham no sector dos serviços, e nem por sombras se lhe assomaria a ideia de escolher um companheiro que não um membro desse mesmo sector económico. Para Sissy, os frangos nascem das árvores já depenados e embalados, prontos a distribuir nos supermercados, e a fruta com caroço será objecto da investigação científica com vista à sua alteração genética. Segundo, se o nome indicia algo de ingénuo em relação à pessoa, partindo do princípio, às avessas no nosso grande Nobel Saramago, que o nome tenha alguma relação com a pessoa que identifica, desencantem-se já dessa ideia. Sissy, no decurso dos diversos encontros preliminares que teve com Pedro, esses encontros que servem de protocolo para “algo mais”, viria a demonstrar uma hábil racionalidade prática que nenhum Kant, nos seus monótonos passeios por Könisberg, poderia adivinhar.
Por tudo isto, e porque algumas situações, só por si, apenas pelo facto de existirem e serem reais e perceptíveis, são cómicas, chamaria a esta subdivisão do texto de “O alegre capítulo de Sissy”, não fôssemos nós, como somos, desprezadores natos da forma em prol do conteúdo.
Como já foi dito, Sissy era um membro, par excelence, dessa burguesia promovida a nobreza dos serviços, enriquecida muito antes desse mesmo sector dos serviços, também ele, se proletarizar, invadido pelas hordas de camponeses novos-ricos intelectuais. Era loura, de um louro que Sissy fazia questão de evidenciar ainda mais recorrendo à coloração e a tratamentos capilares, que Pedro sabia bem caros dada a sua experiência profissional no ramo. Media cerca de 1,78 de altura e revestia a sua ossatura de formas sumptuosas que, de forma algo invulgar, não evidenciava em demasia, o que agradou ao nosso herói. Abaixo da sua testa curta e pálida, que tentava disfarçar recorrendo a base de cor assentando-lhe uma tez trigueira de tom artificial, jaziam dois olhinhos pequenos e bem delineados de cor castanha e tom vago. Destaca-se o seu queixo bem desenhado, secundado por uma boca de lábios finos belíssimos, simplesmente belos. Pedro sabia que Sissy se encontrava livre para amar, sem namorado, há já um par de meses, e que desde então buscava novo amor, em jeito dessas vedetas que desfilam pelas páginas das revistas de socialite. De facto, Sissy pertencia a esse grupo de mulheres surpreendentemente grande, que quando não tem namorado o mundo desaba à sua volta. Tudo lhe parece solitário e ameaçador, hostil, foge-lhe o chão dos pés. Portanto, era este o estado de coisas que Pedro encontrou quando se fez ao mar revolto, onomatopeico símbolo da cabeleira loura de Sissy. Era também essa fragilidade emocional da nossa personagem feminina que lhe conferia uma certa receptividade a Pedro, não obstante o facto desta, em circunstâncias normais, nunca o ver como uma possibilidade real e efectiva, e foi com a mesma incerteza no valor das palavras e dos actos, que Sissy acedeu logo ao terceiro sms de Pedro de convite para um café. Como sabemos, nós, pessoas experientes na arte da sedução, a quem não aterrorizam todas essas descobertas draconianas da ciência que proliferam nos dias de hoje, procurando explicações e fenómenos bioquímicos para tudo, analisando de uma perspectiva animalesca os rituais de acasalamento dos mamíferos, incluindo os humanos, uma realidade que, de resto, os cientistas consideram tão evidente que nem sequer encontra oposição entre os membros mais conservadores da Igreja, o que não deixa de nos causar uma certa desilusão. Sabemos, dizia, que a assimetria de posições sociais conta nestas coisas, assim como outros factores. E sabemos que Pedro tinha perfeita noção disso quando resolveu “lançar o barro à parede”. Portanto, o embaraço que Pedro já sentia, naturalmente, com os exemplares do sexo feminino, agravou-se ainda mais quando deu de caras com Sissy, frente-a-frente, ali, para ele, para ele, Pedro, lutar por ela, conquistar, convencer, persuadir, que ele, Pedro, era o homem ideal para preencher a lacuna que o último namorado de Sissy havia deixado no seu coração. Esse facto, o de Pedro encarnar agora um potencial, entre outros, correctamente ordenado e de número de contacto actualizado na lista telefónica de Sissy, colocar-lhe-ia um outro peso sobre os ombros que o nosso herói não havia sentido até então. Expliquemo-nos melhor. Quando foram apresentados e se desenrolaram os primeiros fios de conversa, Pedro era ainda, na imagem simplificada de Sissy, um exemplar vindo de não-se-sabe- de-onde que, sem prejuízo do facto de ser bem parecido, parecia carregar nos ombros uma herança pesada, a mais pesada de todas, na opinião de alguns, a herança da pobreza. Ora, essa impressão em nada contou no desenrolar da conversa, que inserida no contexto de promiscuidade controlada de noites ébrias nada tem de acutilante. As coisas mudaram de figura com um vibrar inusitado quando Pedro enfileirou, como já referimos, a lista de potenciais. Aqui, recorrendo à preciosa ajuda da metodologia, podemos classificar alguns dos caminhos que Sissy empreendeu para dissecar a figura de Pedro.
Usou, em primeiro lugar, o método indiciário. O que é que isto significa afinal? Significa que Sissy construi o cv de Pedro usando um intricado e muito pessoal método maiêutico, do qual, suspeita-se, fazia uso por sistema. Começou pela identificação: nome e apelidos. Em tom de gracejo sobre certos apelidos de significado actual duvidoso, Sissy observou que o apelido de Pedro nada tinha de invulgar, tudo em tom de gracejo, como é óbvio, ou seja, que o seu apelido era compartilhado por mais uns milhões de portugueses, dito de outra forma, que uma parte nada despicienda da lusofonia possuía um apelido semelhante. Pedro levou-se em tom de brincadeira, embora não pudesse evitar que as suas faces se ruborizassem ligeiramente. Enquanto dizia isto, Pedro pensou que algumas mulheres, por mais estúpidas que sejam no sentido intelectual do termo, possuem um instinto feminino que lhes indica as perguntas certas na forma certa e no momento exacto. Sissy volta à carga. Chegamos à parte da residência, embora se confesse que, nesta sede, Pedro não saísse completamente desfavorecido aos alhos interessados de Sissy. Morava na baixa da cidade, e se bem que a baixa seja ainda associada à criminalidade, aos bairros, aos pobres, o inferno sissyano, havia recentemente uma tendência de os jovens de boas famílias e posses assentarem arraiais na baixa da cidade, em bairros especialmente requalificados para o efeito ou condomínios fechados. Por isso mesmo, esta parte não ofereceu particulares dificuldades. A parte da formação académica foi apenas ventilada, resumindo-se a pormenores fúteis de jantaradas e bebedeiras siderais. Passou-se à parte da competência linguística, quando Sissy lhe perguntou “que línguas falava”, ao que Pedro respondeu: Inglês, francês, italiano, espanhol e até um pouco de alemão, se bem que a sua preferida fosse a sua língua materna, o português, nacionalismo este que Pedro não sentiu nada abonatório em seu favor, já que Sissy era uma adepta incondicional e fervorosa do cosmopolitismo que as suas heroínas exibiam nas revistas. Foi a este propósito que falou nos países que gostava de visitar, na Índia e no TajMahal, onde, pelos vistos, segundo Sissy, se alojavam príncipes em mil e um quartos para mil e uma noites, nas piscinas fantásticas do México onde as suas referências biográficas se sentavam debaixo de um céu azul para beber água de coco. Gosta de italiano, Sissy, por isso mesmo pediu a Pedro que dissesse algo em italiano. Para lhe fazer o gosto, Pedro disse “ma che bella dona tu sei!”, o que agradou a Sissy, que lhe agradeceu com um sorrisinho plástico. Depois de uma breve passagem pela experiência profissional, Sissy chegou ao ponto mais almejado da construção do seu cv: o “Incomming”. Pedro sentiu isso quase imediatamente. Sentiu que a parte do Incomming era essa caixa de Pandora que lhe permitia tirar todos os segredos que Sissy, a começar, e principalmente, pelas roupas da moda que naquela tarde oprimiam de forma algo insolente as suas apetitosas carnes. Sentiu que, de facto, se esta parte fosse satisfatória aos olhos de Sissy, a menina burguesa amá-lo-ia com sinceridade. Perguntou se, vivendo Pedro a X quilómetros da localidade Z, onde trabalhava, lhe “compensava” fazer o trajecto casa-trabalho/trabalho-casa todos os dias. Pedro compreendeu que este “compensava” levava em si todas as coisas reais e toda a metafísica do mundo. Compreendendo que a conversa ficara subitamente pesada, Pedro falou um pouco do Natal que se avizinhava, e que bom que era, reunir com a família, as prendas e essas coisas todas. Sim, respondia Sissy, esperava que o Pai Natal, quando largasse da sua terra Natal, a Polónia, se lembrasse dela. Pois, o Pai Natal, da Polónia… Nesse momento, Pedro ensaiou um riso à Pai Natal meneando os ombros e rindo de forma idiota, o que soou ridículo aos olhos de Sissy, já que as coisas em si nunca são ridículas, tudo dependendo de quem as faz. A quem é rico é que fica tudo bem. Nesse gesto de meneio dos ombros, Pedro tocou ao de leve num dos mamilos vigorosos de Sissy, tendo recuado muito ligeiramente para trás com um sorriso espontâneo cheio de malícia, disparando imediatamente um clima erótico na sala, um templo asiático cheio de aromatizantes e opiáceos onde Sissy, a idiota das belas carnes, era a poderosa Afrodite.
Despediram-se poucos minutos depois, e Pedro ficou com a impressão que não voltaria a ter novas de Sissy. Nessa noite, dormiu um sono leve pejado de sonhos sem sentido. Sonhou com o Pai Natal, que desenlaçava uma das suas renas da porta principal do campo de concentração de Auschwitz. Pouco depois o Pai Natal sobrevoava a sua cidade com uma torrencial chuva de prendas. Na imagem seguinte surge Sissy no trenó, em vez do pai natal, semi-nua, belíssima, debaixo de uma tempestade de dinheiro. Oh Sissy! Como a beleza vale só por si, por mim, por todos os idiotas morais deste mundo. Quantas ideias nobres não abandonaria para poder morder a tua cervical, que de forma tão perfeita adorna e coroa o cume das tuas costas, essas costas que formam duas colinas despegadas. Percorreria esse vale com a língua até chegar à beleza erótica das tuas nádegas. Como eu mergulharia voluntariamente nessa mediocridade da vida a dois se pudesse suspender com os meus lábios o teu queixo, beijar fogosamente as tuas maçãs do tosto, morder levemente os teus mamilos, cheirar a tua carótida, percorrer levemente com as minhas orelhas frias o teu abdómen até chegar á beleza oculta do teu sexo, onde tocaria ao de leve com a ponta da língua as terminações nervosas do teu clitóris. Sissy percorria a minha cidade de trenó sob uma chuva torrencial de notas e moedas. Passado um pouco, encontrava-se já no meu quarto, onde inadvertidamente se lançou de pernas abertas para a minha boca.

III

Há já tantos anos que tenho a sensação de ouvir a mesma música. A mesma música em todo o lado, como se a história não tivesse imaginação, ou como se a imaginação, nestes tempos do Fim da História a abandonasse de uma vez por todas. Mas é a mesma, essa música terrível e monótona, que soa em todo lado, e há tanta gente e tanta coisa em todo lado, e tantas histórias na história, histórias de vida deveras admiráveis, de gente comum, que se banqueteia no início do mês e castiga o estômago lá para o fim, a história ressurge, na forma de uma música, um remix, uma voz isolada, uma orquestra, de início irreconhecível, mas que, mal os olhos se avivam, e estamos já prontos para a vomitar.
Por isso é sem surpresa que dou por mim nos cantos e nas esquinas, ouvindo os mesmos argumentos, gastos pelo tempo, mas que de alguma forma a estupidez generalizada não deixa de validar com os seus votos de gente. É também por isso que, se alguém me sorri, acredito na sinceridade do sorriso ainda que este leve em si toda a ignorância do mundo. Nesses cantos, onde me perco, recusam-me tudo o que não peço sem dizer uma única palavra. Além disso existem fases da vida, e clichés, e mais cedo ou mais tarde acabamos por encaixar em algum. É então que eu pego no meu e visto-o com todo o orgulho, como um soldado enverga o seu uniforme manchado de sangue inocente, e sabe que não deve sentir vergonha por isso, porque é precisamente vergonha que deveria sentir, e nada mais que a vergonha lhe agrada. Depois, é tão bom manter as aparências… O espaço social é, simultaneamente, o mais rico em estupidez e o mais importante. Daí que seja de todo honesto contar-vos que Pedro não sentiu vergonha, quando fizeram dele, aliás, com argumentos bastantes convincentes, um vencido-da-vida. Sim Pedro, eles riem-se de ti, e não fora a convenção social, cuspir-te-iam também. Sabes porquê? Tu és o seu inimigo natural, e eles sabem disso, e tu também, mas nunca ninguém to diz abertamente. Tal como hienas esfomeadas, esperam apenas o momento de dispersão dos leões para atacar, mas não atacam tão abertamente, dão-te apenas umas mordidas subtis para que vás sangrando até à morte. É o seu instinto, e não os podes recriminar por isso. No seu lugar farias o mesmo. Acredita que sim. Mesmo aqueles que te querem bem, ou que supostamente te querem bem, apenas transfiguraram o desejo que têm do teu sofrimento. O seu desejo sempre foi ver-te morto, ou então que desapareças, mas desaparecer completamente, até da memória dos outros, esse lugar cativo que sempre se assegurou aos nossos avós, mas que o tempo moderno, na sua crueldade ilimitada, deseja também ver proscrito. Para isso amigo, não apagarão a face do teu sarcófago, nem rasurarão o teu nome de todas as paredes do templo em jeito de danação ad eternum. Farão precisamente o contrário, repetindo o teu nome até à exaustão: nos bancos, na escola, na faculdade, no trabalho, no hospital, nas ruas. Em todo o lado, a palavra que serve de suporte verbal ao teu nome, esse conjunto articulado de sons, deixará de fazer qualquer sentido. Mas não julgues, por isso, que o fazem só por ti. Seria tolo pensar isso, uma vez que o mesmo acontecerá com eles. Não és assim tão especial, porque essa angústia que sentes, essa angústia e exasperação, essa é a angústia de todos, e quando todos mostram esse doce desespero de ver o seu nome escrito em toda a parte lutam apenas para não desaparecer. No futuro, todos lutaremos para não desaparecer definitivamente da memória dos homens, esse lugar comum disputado por tantos invulgares. Só acreditaremos nisso enquanto julgarmos que a história se compadece com estes ensejos pueris, porque mal daremos conta que já ninguém é nada, e aí aparecerá Berlusconi para nos salvar.
Se pudesse nomear de alguma forma este capítulo, seria como o “Elogio” a Berlusconi”, e embora eu saiba que todas as palavras são poucas para designar um homem providencial, não me cansarei de repetir o seu nome.
Cansados de discutir, de debater a verdade, de repisar os argumentos, de investigar as falácias do comportamento humano, de encher páginas e páginas de humanidade e civilização, nada mais restará do que a animalidade para definir um homem. Quando já todos estivermos tão cansados de tudo, e de pensar, e de fazer, chegará o homem que dirá: “Faça-se!”. Lembremo-nos da história do nosso ditador “de trazer por casa”, Salazar. Estamos nos anos sessenta, e foi constituída uma comissão para a feitura de um novo código civil. A dada altura do seu labor justiniano, o legislador depara-se com um obstáculo inesperado, uma perplexidade excruciante. O género do termo jurídico: “usucapião”. Suspendem-se todos os trabalhos para se encetar a discussão. Convidam-se para um grupo de trabalho todos os juristas mais prestigiados do país, filólogos e gramáticos de renome. O ilustre concílio durou meses sem qualquer resultado. A dada altura, já quando todos se mostravam visivelmente exaustos e frustrados com os parcos resultados obtidos, que não fosse uma aproximação à origem latina do termo, alguns contextos, alguns sentidos usados nas compilações legislativas anteriores. Parecia inacreditável, que sendo o direito civil o mais antigo direito existente, e a usucapião uma das suas mais vetustas instituições, ninguém tivesse sentido a necessidade de empregar um artigo, definido ou indefinido, que lançasse alguma luz sobre o seu género. Esse desleixo histórico, agora repercutido tão cruelmente na nação lusitana, que aguarda o seu código civil e coloca toda a sua fé nesse grupo de sábios. Foi então que uma voz iluminada disse: “Já sei! Vamos perguntar a Salazar!”. O tímido emissário avança, cauteloso, abre cuidadosamente a porta do gabinete do professor Salazar, e lança-lhe em breves reptos o problema em questão e o estado actual dos trabalhos. Com um desdém que é próprio a quem tem mais que fazer, Salazar responde-lhe, quase sem largar vista dos seus documentos: “É feminina!” Dois segundos apenas.
Oh! Berlusconi! Enche-nos com tudo aquilo que sabe tão bem! Faz palhaçada, orgias com adolescentes, escândalos de corrupção, manobras políticas sujas, discursos de charlatão, mas salva-nos de nós próprios!

IV

A primeira vez que Marília encontrou Pedro achou-o snob e pretensioso. De resto, Pedro encetou sinceros esforços por passar essa imagem. Por tudo isto, o título ideal que Marília encontraria para definir este capítulo seria “Estranheza”. Foi estranha a forma como Marília aceitou, a golpes de espada, o convite de Pedro para jantar. Foi estranha a conversa que tiveram nesse estranho jantar.
Falaram da Revolução no século XXI, da estética Holliwoodiana, da indiferença da bioquímica aos sentimentos humanos, entre outras coisas… estranhas. Desde logo, porque um tipo que se cobre de roupa de marca não deveria falar de forma tão acirrada dos direitos dos pobres, da escravatura no século XXI, da frustração de expectativas de toda uma geração, isto é, de todo aquilo de que ele próprio não sofria.
Pedro proferiu a frase mais do que gasta de que “este mundo é uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma”, depois falou na sua Revolução, que esta começa com o derrube dos muros mentais de cada um, e que aí reside o início de tudo, quando o fenómeno se generaliza. Por outro lado, continuava, acabava por agradecer às classes dominantes o irracionalismo e cegueira de valores, porque só assim, segundo ele, se reuniriam as condições ideais para a Revolução. Além disso, prosseguiu, seguindo a tendência evolutivo-dialéctica da história, o século XXI seria um século que iria conhecer a violência e brutalidade mais crua. Fim da História? Não lhe falem nisso… Isso é uma treta. Não teriam os ennuyés do século XIX razões para o seu pacato século se lhes assemelhar um Fim da História? No entanto, enquanto os barões se deleitavam com as cocottes, milhões e milhões de seres humanos eram escravizados. No entanto, não seria o mundo escravizado a assaltar o mundo hipócrita e civilizado, mas seria a sua própria implosão que provocaria a queda. A hiper-civilizada sociedade do século XIX morreria enterrada na lama das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Da mesma forma tendemos a ver o nosso mundo civilizado ocidental como um Fim da História, e julgamos que todo o universo é agora civilizado, ou em vias de o ser, apenas porque adoptou os nossos procedimentos democráticos estúpidos mas sabemos que isso não é verdade. A ideia de democracia é essencialmente ocidental, e as instituições nunca sobreviverão em lado nenhum quando impostas de cima. É a própria vida e realidade que leva os germes da mudança, e o caminho do avanço civilizacional é feito com um trilho de sangue, ou a dentes de siso, como queiram. Mas existem vozes sinceras nesses países que falam a favor da democracia? Sim, claro que sim. Vozes sinceras, mas o seu verdadeiro desejo e função é perecer. São fenómenos e ilhas isoladas, não raro educadas em países ocidentais com bolsas ocidentais. Fará algum sentido a sua inclusão nas suas sociedades de origem? Nenhuma. Ou apanharão uma desilusão de morte, ou então tornar-se-ão numa coisa pior, bastante pior… Não temos o exemplo dos líderes africanos dos movimentos de libertação?
Pedro falou ainda na irracionalidade dos sentidos, e que a vertente racional da nossa existência é apenas uma capa muito fina e frágil, derrogável a qualquer momento, também ela uma imposição do instinto de sobrevivência. A epopeia humana, mais concretamente, a masculina, mais não foi até hoje do que um desejo de, ora esquecer, ora combater a violência e indiferença da natureza em relação a tudo aquilo que o Ser-Humano constrói, e todo esse Babel de afectos de que se rodeia. Aí mesmo se projecta o sentido estético humano, nada mais do que um desejo de superação, ou, se quisermos, um desejo de domesticação da natureza, esse ensejo essencialmente masculino. Não seriam as mulheres essa violência, essa indiferença em relação às aspirações masculinas? Não seria, até essa, a violência masculina, uma forma desesperada de medo e de desmistificação da mulher, que mais do que qualquer outra coisa o homem teme?
Neste ponto da discussão, na qual Marília ainda não interviera a não ser através de olhares, ora pasmados, olha envergonhados, quando Pedro proferia exasperados palavrões que serviam de mata-borrão a algumas das suas ideias, para as quais julgava as palavras singularmente inadequadas ou inexpressivas. Quando se cansou do seu monólogo, Pedro voltou a fixar o olhar no miolo do pão, com o qual começou a fazer bolinhas. Nesse preciso momento, Marília olhou-o fixamente, olhar que Pedro nem sequer sentiu, porque olhava para o chão. Não estava seduzida, nem com a sua inteligência, nem com a argúcia da sua visão política. Apenas uma frase lhe acorria ao pensamento: “Queres-me comer! Isso é mais que óbvio, mas daqui não vais levar nada, nem levarias, nem que fosses o último homem à face da terra”!
Quando se despediram, na primeira esquina à saída do restaurante, Pedro sentiu em plenitude o fracasso da sua empresa. Talvez por isso mesmo nem tenha tentado a sua técnica habitual do beijo furtivo. Quando Marília virou costas, Pedro pensou: “Marília, és burra como uma porta, mas és a coisa mais linda que já vi. Por isso, amo-te”. Poucos segundos depois, Marília espreitava do escuro a esquina que Pedro já dobrava, e esse homem que não lhe inspirava o mais pequeno sentimento de amor fazia agora desaparecer a sua linha de perfil na escuridão. Marília sentiu uma enorme compaixão por ele, e só por isso seria capaz de o amar. Mais tarde, viria mesmo a admitir que verteu algumas lágrimas.

sábado, 5 de dezembro de 2009

A confissão de um homem-médio

Possibilidades limitadas

Conservo uma memória histórica de alguma forma limitada desses tempos de revolução em que tudo parecia possível. Limitada, desde logo porque é construída com base em pressupostos criados pela minha imaginação e interpretação dos factos, e não por uma vivência real. Talvez se a tivesse vivido na realidade, se tivesse marchado com Lenine da estação Finlândia ainda tivesse uma ideia mais deformada das coisas. O que é certo é que as coisas apenas mudaram de revestimento, porque o conteúdo é exactamente o mesmo. Era óbvio que os senhores da guerra, filhos de pastores e sapateiros, depois de ascenderem eles próprios ao poder teriam como função primordial, antes de todas as outras, impedir que os filhos de outros pastores e sapateiros ascendessem socialmente. Eles sabiam melhor que ninguém o perigo que representavam para si próprios. Daí que o século XX me pareça apenas uma forma perversa de destruição de si próprio, de aniquilação de possibilidades. Não é com grande surpresa, e até, confesso, uma certa complacência, com esses senhores das secretárias que num sistema de abolição da propriedade encaram os seus cargos como propriedade privada. Não é de estranhar que os senhores das empresas públicas e universidades, logo que assumem um cargo importante, tenham apenas duas preocupações em mente: primeira, puxar o tapete a todos aqueles que eventualmente lhe possam fazer sombra; segunda, puxar o tapete a todos aqueles que eventualmente possam vir a concorrenciar com os seus filhos no acesso aos cargos; terceiro: criar a sua própria Casta, a sua própria linhagem. Por isso vemos essas aberrações de nomes conjugados e patronímicos proposicionais acrescentados fora de tempo, como “de Silva”, “de Moreira”.
Certo é que voltamos à estaca zero em termos de mobilidade social, e o ódio com que o mujique citadino olha o senhor engravatado é o mesmo com que os paisans et vilains olhavam o senhor feudal. Mas diferentemente da Idade das Trevas, os sains coullottes de hoje não se podem organizar em massa para combater os seus inimigos de classe. De nada lhes vale organizarem-se em hordas estúpidas e esfomeadas, saqueando tudo o que encontram pelo caminho. O monstro que os oprime é uma colossal máquina burocrática, sem face e sem nome. Os relatórios constituem os seus tentáculos. As interpretações engenhosas da legislação que brotam aos jorros todos os dias fazem mais pela castração da sociedade civil do que qualquer decreto imperial. Cada jovem intelectual que lançam no desemprego faz mais pela censura do que qualquer index. Nem preciso pensar o que será da liberdade de expressão quando todos se puderem exprimir livremente, mas tão livremente que não existe ninguém para ouvir, não existe ninguém para reprimir, ninguém para abafar, nenhuma policia anti-motim, mas todos os dias que se deitarem na mediocridade das suas camas, se sentarem na miserescência das suas cadeiras de escritório, sentirão todo o peso da história, como a vida limita só por si, e tudo voltou a ser como dantes.








Casos pendentes

Quem é esse homem que tão apressado se dirige a parte alguma? Qual o seu nome? Qual a sua missão? Chama-se Joaquim, José, António, Manuel, Rodrigo, Frederico, Pedro, Adelino, Alberto, Cristiano, Carlos, Ricardo, Vítor, João, Tiago. Tem todos os nomes, todas as profissões e todos os desejos. Talvez porque todos os desejos, de toda a gente seja o seu, aderiu de forma hábil ao partido do governo. O partido que governa e que, de resto, é também o único. É um partido que pretende agregar todas as tendências e todas as aspirações dos cidadãos. Houve mesmo um teórico do partido que definiu a sua existência como anterior, mesmo em relação à própria sociedade. Antes dos homens se autorganizarem em grandes sociedades, as relações de força impunham já assunção de uma determinada política e uma vontade de poder a que podemos chamar partido. O partido é anterior a tudo e condição necessária de tudo. Chega então àquela fase da sua vida onde já não se pode ir muito além da perfeição, porque enfim, esse é o destino glorioso dos que enveredam pelo bom caminho. E o partido é isto, sou eu, tu, ele, as árvores, o chão que pisamos. Mas a política e as decisões que emana deverão, para que o povo nos ame, ser sempre algo de profundamente incógnito ao comum dos mortais. Diremos apenas esse FIAT, destruiremos, construiremos sobre o sangue dos nossos inimigos, façamos doutrina, separemos famílias, destruiremos vida, destruir-lhes-emos a vida, massacraremos, roubaremos até as o pão que têm sobre a mesa, as cuecas que têm para vestir, e eles adorar-nos-ão por isso. Por isso o homem só é capaz de amar aquilo que de alguma forma lhe é incompreensível.
Surgiu recentemente o rumor de que o partido quer refazer as suas bases, quer reorganizar a sua estrutura em ordem a prosseguir objectivos mais sólidos, sem recuos como aos que assistimos no passado. Só assim a nossa credibilidade sairá inabalável.
Quanto ao povo, a massa, o melhor é nem falar. Porque a vontade do partido é a vontade de todos, que se exprime na voz de um só homem. A voz de esse homem anunciou recentemente à porta fechada que é necessário refazer, reinventar. Disse que há alguns casos já decididos e outros pendentes.

Porque partem os comboios?

Porque partem os comboios a toda a pressa, e porque levam eles tanta gente? Porque há tanta gente tão apressada a ponto de viajar de pé, recusando inclusive o aquecimento, condição essencial num país tão frio como o nosso. Porque vão de armas e bagagens e as suas crianças choram, como se pressentissem que nunca mais voltariam? Porque é que se imprime nos olhos de todos uma expressão de abandono, de quem perdeu toda a esperança no que quer que seja. Se são já seres humanos, porque é que ninguém se contenta em ser simplesmente humano?
O nosso Querido-Líder compreendeu, antes de nenhum outro, que as pessoas devem estar em constante movimento. A única forma de estar do ser-humano é o constante movimento, e só esse movimento lhes permite fazer a limpeza histórica das suas memórias. Num território tão vasto como o nosso não parece ser difícil. A ingovernabilidade do nosso colossal país é apenas ilusória. Basta manter os comboios em movimento, e o tempo e o espaço farão o resto, tal como a natureza se governa por si própria.

Homens de gabardine

Quando Joaquim se levantou, cumpriu o seu hábito de correr as cortinas da janela do seu quarto que dá para a estrada. Foi sem surpresa e viu dois homens de gabardina preta, que fumam encostado a um carro do outro lado da estrada.
Tomou o seu duche do costume e defecou na sua não muito confortável sanita da minúscula casa-de-banho.
É escriturário, como toda a gente neste país… Este país vive de relatórios, e o relatório é a única coisa que parece alimentar a nossa imaginação. O relatório é uma espécie de rosário deste mundo moderno, onde a sua inalterável prosa constituiria, sem qualquer dificuldade, já um género literário menor. Tem a vantagem de transformar os homens em ilhas, ilhas remotas onde as únicas barcaças que nos permitem comunicar são esses relatórios em papel de imprensa, que circulam na segurança de envelopes lacrados transportados por fiéis mensageiros.
Quando sai para a rua sem que ninguém repare em si, não deixa de reter que o mundo moderno ensinou como nenhum outro a lição de cada um se meter na sua vida. Aprendeu, ele próprio, que as maravilhas da civilização são um pau de dois bicos – por exemplo, quantos tribunais não julgam hoje em dia pessoas inocentes? E não as condenam? E não as torturam? Quantas leis, regulamentos, directivas, circulares, não trazem mais a liberdade do homem pela lei mas a sua opressão sobre um tirano diferente? Não há duvida que o tirano é a espécie rara mais fácil de substituir, o que só por si é um paradoxo. Mas não há dúvida que a ciência e a tecnologia são um pau de dois bicos. Por exemplo, se não existissem automóveis não estavam agora aqueles dois sujeitos de gabardine encostados num; e se não existissem metropolitanos não me seguiam eles até ao metropolitano, sentando-se apenas alguns lugares atrás de mim, conversando baixinho, baixinho.

O telefone toca

Saiu do metro com bancos corridos almofadados, algo que penso ser um exclusivo da nossa cidade, ou melhor, da nossa sociedade. Pois foi aqui que o homem conheceu, primeiro que todos os outros o sabor da libertação do jugo das classes dominantes. Um poderoso fim de uma história repetida ad eternum nos séculos passados. Fossem os escravos, cansados da sua condição de objectos fungíveis que matavam os seus senhores para depois saborear o instinto da liberdade, esse que a sua condição de escravos desde o nascimento mantinha adormecido. Fossem os servos da gleba, caminhando sobre séculos de escuridão e de trabalho árduo, puxando o arado com a sua própria força sulcando o solo gelado das terras do senhor. De todos eles, cujos ossos jaziam em descampados após um massacre militar, novos valores e novos escravos e servos da gleba levantavam-se, lembrando-se que o homem fez-se para ser livre, que a exploração do homem pelo homem não é a condição da natureza, mas o seu oposto. Por isso eu amo o meu partido, porque foi o primeiro que deu o grito intelectual de todos esses nomes sacrificados pela história. Ainda que não tivessem nome, ainda que fossem apenas faces sem nome, nomes sem faces, corpos sem sombra, sombras sem corpos.
As escadas rolantes estendiam-se em direcção à rua num sentido vertical, demasiado vertical. O túnel do metropolitano fora criado fundo, demasiado fundo. Por isso quem subia pelas escadas rolantes tinha a sensação se ascender aos céus, neste caso à terra, o único céu possível. Mas porque não se contentam então em ser apenas humanos? Porque é que não chega ser humano?
É com o mesmo desejo de me fundir com a multidão, pois assim lograria o meu esconderijo, que me sento abespinhado na minha secretária, enquanto pensava em alguma razão válida para as coisas. Porque é que esta cidade, a Jerusalém dos tempos modernos, a Constantinopla das almas ateias, tem mais de dez milhões de habitantes e é precisamente para a janela do meu escritório que pasmam aqueles dois homens de gabardina? Porque é que esta chuva gelada de Outubro que começa agora a cair não dissolve tudo à sua volta, os seu edifícios e as caras das pessoas, tudo em desintegração, como que banhados por ácido. Talvez depois dessa chuvada esses homens já não estivessem aí e a minha alma teria algum descanso. Tudo é a tão indiferente a tudo, mas acredito que a única coisa que pode tirar o homem da indiferença é quando a sua vida corre perigo. Só um perigo mortal é capaz de provocar alguma reacção em alguém.
Sempre me ensinaram que esse perigo mortal provinha do exterior, e nós, o povo escolhido, encolhido no nosso enorme país continental seriamos sempre motivo de inveja e cobiça pelos nossos vizinhos. Que repetidamente tentariam anexar partes ou a totalidade do nosso território, e o perigo está em todo o lado. Está no Ocidente, está no Oriente, está no Norte e está no Sul. A Ocidente estão os outros que sempre invejaram a nossa prosperidade continental, e por isso nunca lhes invejamos a sua prosperidade ultramarina, que tão bem conhecemos sem conhecer. A Norte está o limite do globo, e aí o nosso inimigo é apenas o tempo, sempre ele, esse único e invencível que tudo devora. No oriente e no sul estão os bárbaros, que destruirão logo que possam a nossa próspera civilização que não conhecem.
Chega mais um relatório, e este traz uma pequena lombada vermelha, o que é sinal do alto grau de importância. O mesmo tempo que agarro com as duas mãos este relatório o telefone toca o seu uníssono estridente.
Atende, era o chefe, que diz que foi contactado essa mesma manhã para se apresentar na esquadra que o assunto era urgente, muito urgente, o caso grave, muito grave.

Uma ténue luz amarela

Quando cheguei ao escritório com as minhas mãos empapadas em suor apesar do frio que se faz sente já nesta altura do ano, a primeira coisa que me chamou a atenção foi um candeeiro pendendo to tecto com uma lâmpada de luz amarela, que iluminava de uma luz ténue as parede branco-sujo da esquadra. Porque é que nos momentos limite fixamos a nossa atenção nestes elementos sem importância? Porque é que as pedras e os muros e os edifícios e as casas e as estradas são indiferentes ao sangue e sofrimento que por eles passa? Olho para a Praça Vermelha, e onde precisamente hoje se faz uma esmagadora parada militar já morreram centenas de milhares de pessoas empaladas. O que é que significa tudo isto afinal?
No início, já sabíamos que confiávamos em alguns homens onde depositamos todas as angústias que trazíamos acumuladas. Fizemos do sofrimento o nosso modo de viver e da luta a nossa máscara. Quando pensávamos que era a hora de tirar a máscara já nos tínhamos desencantado de tudo, já tudo era igual, homogéneo, e haverá algo pior que ser homogéneo? Haverá dor maior que a de ser vulgar?
Essa ténue luz amarela que se instala nas almas, nos atrofia toda e qualquer palavra, que irradiada por essa luz parece pequena ou insuficiente. Foi essa luz amarela a primeira coisa que vi quando entrei naquele escritório. O mobiliário sóbrio e os símbolos pungentes do partido parecem indiciar aquilo que já todos sabemos. Que a vida é o partido e nada existe além do partido. Deus morreu, mas sabemos que ainda podemos contar com o partido, esse céu terreno que um dia se abaterá sobre nós.

Sobre certas e determinadas coisas

O chefe Parménides arrastou levemente a cadeira sentando-se confortavelmente. Olhei nos olhos os bustos dos nossos padroeiros, contemplei as suas testas longas e a forma como se demoravam ao fitar-me. O chefe dirigiu-se a mim num tom sereno, sem amor nem ódio. Apenas aquilo que deveria ser. Nesse mesmo tom calmo informou-me que tinha sido informado de certas e determinadas coisas que me comprometiam seriamente em relação à minha fidelidade com o partido e com a nação. Não respondi. “De maneiras que”, continuou, tenho aqui um documento que circunstancia todos os factos relativos a essa situação. Como pode reparar, aqui, no final, encontra-se um termo de responsabilidade, o qual deve assinar. Um confissão, portanto. O que pretendem é que eu assine uma confissão, um termo de culpa por certas e determinadas coisas.

Para quê, a culpa?

Acabada a sua prelecção, o chefe perguntou-me se tinha algo a dizer sobre o que ali constava. Os escrivães debruçam-se diligentemente sobre os seus cadernos para iniciar o relato. Respondi que não tinha conhecimento de nada do que ali constava. Respondi que sempre tinha sido inteiramente fiel ao partido e aos seus princípios, que tinha cumprido escrupulosamente tudo o que me tinham ordenado, inclusive, alguns processos semelhantes àquele a que agora me submetem. Sim, também eu, em tempos, fui encarregado deste tipo de processos. Na altura, tratou-se tão só de “despachar” X número de burgueses da região Y, que, não obstante o seu comportamento anti-social e inimizade para com toda a causa humana, refugiando-se apenas nos seus interesses pessoais, foram submetidos ao due process of Law, porque o nosso país é um país civilizado, não como esses países bárbaros de mongóis onde se mata por tudo e por nada. Aqui matamos, mas os acusados têm a oportunidade de apresentar as respectivas observações.
“Se conheces assim tão bem o nosso procedimento”, acrescentou o chefe, “sabes melhor do que ninguém o que aqui está em causa…”. Sim, sei o que está em causa, o que está em causa é o meu desaparecimento. Precisam que eu desapareça… Mas se eu sempre fui fiel ao nosso partido e à nossa causa… “Se és assim tão fiel ao teu partido e à causa, assinarás este termo de culpa, ainda que sem culpa, porque é isto que o teu partido exige de ti”. Se os meus superiores e o meu partido exigem de mim esta confissão, se eles determinaram que eu deveria ser alvo deste processo, certamente que terão boas razões para isso. Eles sabem o que fazem. Assinei.

domingo, 15 de novembro de 2009

Deambulações invulgares em lugares comuns

I- Uma vida série B

Já vi tantas coisas estranhas que no entanto conheço tão bem…
Quando não temos dinheiro, até os cães nos mijam nas pernas. Isto é mais verdade em Nápoles do que em qualquer outra cidade que conheço.
Nasci em Génova, famosa cidade do Norte de Itália. Apaixonei-me por Nápoles ainda sem a conhecer. Sempre me disseram que Nápoles era um lugar de perdição, por isso, talvez a força centrípeta que me atraía a Nápoles fosse o meu próprio desejo de auto-esquecimento. O paraíso e o inferno, o tudo e o nada, no mesmo lugar. Poderá haver algo mais fascinante do que isto?
A minha paixão por essa Nápoles ainda desconhecida fez com que galgasse num comboio apertado a península Itálica em direcção ao sul. Cheguei à Estação Garibaldi em plena hora de ponta numa tarde de Outono. O céu estava muito nublado e o tempo seco, como que a adivinhar chuva.
Apenas duas breves impressões da primeira vez que coloquei os pés em solo napolitano: primeira, não fui assaltado, como advertiram insistentemente os meus amigos mais zelosos. Segunda: a agradável confusão – a calma azáfama da Piazza Garibaldi. Ainda hoje me parece impossível como o caos pode ser tão calmo, como todo aquele amontoado de carros sem direcção definida, peões abnegadamente prostrados na estrada, o barulho ensurdecedor do rufar das motos, a poluição… meu Deus, a poluição! Tudo flui numa calmaria incessante, como se o tempo não existisse ou fosse uma coisa puramente suprível, como se a cidade tivesse a sua própria noção de tempo.
Saí do recinto da estação e apanhei um táxi na praça adjacente. Bom, quando disse que não fui assaltado em Nápoles estava a ser benevolente com a fama desta cidade que tanto amo. Na verdade, fui assaltado, mas não de arma em punho e rangeres de dentes ameaçadores. Antes com sorrisos e conversas corriqueiras intercaladas com palavrões e maldições em dialecto: o taxista. No curto percurso que vai da Estação Garibaldi à Via dei Tribunali, onde tinha o quarto reservado, o maldito (com um palito na boca e um sorriso desdentado) cobrou-me nada menos que 40 euros! Mamma mia! Che coglione! Primeiro pensei dizer-lhe que não pedira uma visita turística, depois pensei perguntar se o preço incluía uma noite com a sua esposa. Calei-me. Paguei.
Não trazia na mala nenhum objectivo ou aspiração, quando cheguei a Nápoles (nem era suposto que assim fosse). Pretendia apenas deixar-me fluir na multidão e deixar que as intricadas malhas do acaso me envolvessem. Trazia alguns “trocos” juntos de Génova, amealhados com o suor do meu trabalho e algumas pequenas privações. O plano era simples: fruiria do meu dinheirito acumulado, depois logo se via. Se gostasse, pensaria arranjar trabalho e ficar por lá “uns tempos”. Se não gostasse, voltaria para Génova com o rabo entre as pernas.
Empreendi assim, de imediato, o meu auspicioso “não-plano” de dolce fare niente. O meu trabalho seria esse: não fazer nada. O tempo viria a mostrar-me que Nápoles é uma cidade mais dura do que generosa, mesmo para quem não faz nada.
A primeira vez que me fiz ao caminho na minha rua, a via dei Tribulani, excluindo o dia em que cheguei, em que a vi apenas de relance, esse primeiro dia, nunca o esquecerei. Era estranha a sobreposição de realidades que comportava aquele espaço. As belas e decadentes arcadas à minha esquerda, o comércio tradicional, os motorini a toda a velocidade, passam tão perto de mim que me basta erguer o braço para assoar o nariz para lhes tocar. Virei à esquerda na Via Nilo, cercada de altos palazzi com a roupa a secar, alguns de estrutura estalada pelo terramoto dos anos 30. Cheguei à Spacanapoli. A primeira vez que ouvi o nome dessa famosa avenida napolitana pareceu-me ouvir “scapanapoli”! Uma avenida enorme cortando a cidade antiga em duas, cheia de vida, estudantes, turistas, motorini, pedinchões, ociosos… um pouco de tudo. Segui um pouco em frente e encontrei a Piazza Gesú. Continuei e encontrei a não menos famosa Via Toledo ou Via Roma, como lhe chamam os locais. Dei o meu primeiro passeio na Via Roma, apinhada de gente caminhando a passo de caracol (o que me custou, uma vez que tenho o hábito de andar rápido), com o vetusto quartier Spagnolo à minha direita. Já no fim, encontrei a Piazza Trento e Trieste, e a via Chiaia à minha direita. Mesmo em frente, o Palazzo Reale e a Piazza Plebiscito. Que monumentalidade! Que imperialismo! Caía a noite. Fui jantar ao restaurante com a melhor relação qualidade/preço que o meu guia recomendava: O restaurante Nennella, no Quartier Spagnolo. Muito bom, de facto.

Costuma também dizer-se que Nápoles pertence à chamada “Itália série B”. Logicamente que este chavão pressupõe que a Itália série A seria a Itália do Norte, de Roma para cima, bem entendido. Temos assim uma Itália do Norte industrial, cosmopolita, esquecida das suas origens para abraçar unicamente o italiano como língua. A Itália do Sul, a Itália dos terrani, será aquela Itália a que alguns também chamam de esquecida, não só porque o poder central, o Estado, essa categoria de facto tão estranha a tantos italianos, a tinha esquecido, a da industrialização incipiente, crime organizado, a pizza, o falar aparatoso. Não interessa! Optei pela Itália série B.
De resto, a minha escolha não é assim tão estranha no cômputo geral das minhas opções de vida. Sou aquilo a que poderiam chamar: um falhado bem sucedido. O que será isso de um falhado bem sucedido? Em que consiste? Consiste precisamente no facto de que, desde o fundo da minha alma, nunca desejei outra coisa a não ser o falhanço. Poder-se-ia dizer que este tipo de opções irreflectidas são coisas de juventude, devaneios… Não me parece! Tão simplesmente pelo facto de que nesta altura do campeonato levo já 28 anos de idade e nenhuma perspectiva de vida, pelo menos no sentido vulgar do termo. O facto essencial é que, por via popular ou erudita, o termo falhado assenta-me como uma luva. O meu pai disse-me que eu era o típico caso da montanha que pariu um rato. Não o censuro… A extraordinária sensação de conforto que sinto na pele de falhado até a mim me apavora. Imagino então o que suscitará aos que me rodeiam.
Começo mesmo a imaginar-me neste papel como um estóico resistente ao sistema, esse que nos impõe objectivos, metas, modelos de vida. A inteligência desta opção consistirá precisamente nessa resistência passiva. Imaginava-me já a passar junto aos meus companheiros de luta, isto é, os amigos de faculdade, e todos me cuspiam, ou pior, olhavam com piedade. Dir-lhes-ia: “Isto sou eu!”. Afinal, serão as nossas angústias muito diferentes? Será diferente a angústia do que não tem dinheiro para uma refeição decente, daquele outro que não tem dinheiro para comprar o fato de marca, mas tão só a imitação? Não me parece. Qual será então a diferença, comparando a angústia do tédio do italiano do norte daquela do italiano do sul, privado de oportunidades, ostracizado no próprio país, imerso na precariedade e na insegurança? Nápoles ensinou-me que esta pode ser extremamente tonificante - quiçá, a vida em risco não é o nosso estado etéreo de felicidade?
Na manhã seguinte saí para comprar um pouco de pão e um bilhete postal para enviar à minha querida Francesca. Cheguei à padaria e pedi cinco pães. Fui enganado descaradamente. Vi perfeitamente que o funcionário me cobrou mais sessenta cêntimos pelo pão, pelo menos segundo as minhas contas e tendo em conta o preço que havia cobrado ao cliente que me antecedeu. Como se não bastasse a infâmia, tentou ainda enganar-me no troco. Não aguentei. Reclamei. Depois de alguma hesitação e alguns franzires de cara pró-forma, o funcionário lá concordou em devolver-me o troco justo, ainda que não do preço justo. Saí irritado. Fui ao pequeno quiosque comprar o postal que já havia visto no dia anterior. Tinha duas pessoas à minha frente. Uma terceira pessoa chegou e tomou a dianteira de todas as outras. O espantoso é que, enquanto o fazia, não mostrou qualquer pudor, qualquer hesitação. Fê-lo como se, de facto e de iure, estivesse pré-destinado a fazê-lo., como se fosse tão natural como as leis da física. Desta vez não reclamei. Pois os meus dois consortes tomaram a iniciativa, irrompendo em vociferações violentas. Facto espantoso: o prevaricador não se acanhou, não vacilou (como seria de esperar). Antes contra-argumentou como se, ainda na ordem natural das coisas, existisse algum argumento válido no direito natural ou positivo, capaz de sustentar tal atitude.
Ainda um pouco aturdido pelo sucedido, empreendi caminho em direcção ao autocarro, via Garibaldi. Quando entrei no autocarro, munido do respectivo título, introduzi-o na maquineta para efectuar a respectiva validação. Feito isto, voltei a face para os ocupantes do autocarro e percebi que muitos deles olhavam para mim esboçando um leve sorriso. Confesso que fiquei um pouco perplexo com isto, pelo menos até ao momento em que compreendi a razão de ser daquela empatia inusitados dos passageiros para comigo. Compreendi quando o revisor entrou no autocarro, já a poucas paragens da estação Garibaldi, e em virtude disto a maioria dos ocupantes do autocarro se precipitou apressadamente para a saída. Viajavam sem bilhete. Curiosamente, como quem já sabe o que o espera, o revisor aguardou mesmo alguns momentos junto ao motorista que os prevaricadores saíssem, como se também isso estivesse na ordem natural das coisas. Tudo isto me leva a pensar que, em Nápoles, o prevaricador goza de um reconhecimento e compreensão que não se encontra em mais lado algum. O acto de prevaricação é encarado como um reflexo legítimo de sobrevivência. Não consigo encontrar outra razão para tal reconhecimento.

II – C’e festa à Pagani

Encontrei a estação Garibaldi de sempre, ambígua entre um burburinho de gente interminável em desolação constante. Apanhei o próximo circunvesuviano em direcção a Pagani. Era dia de festa lá, pelos vistos. Era a chamada festa popular da Madona dei Galini. Segundo a lenda, algumas galinhas embrenhadas na sua rotina animal descobrira o quadro de uma Madona enquanto bicava laboriosamente o chão. Alguns testemunhos da piedosa cena teriam atribuído tal facto a um milagre, de maneira que todos os anos, por essa altura, se organizava a procissão da Madona dei Galini.
Apenas algumas curiosidades em relação a esta festa. Em primeiro lugar, é sabido que a fé não se renova sem o elemento de culto por excelência: o milagre. Ora, o milagre da festa consistia precisamente na procissão. O andor em que era transportada a Madona era constituído por uma base, espécie de mini-capoeira. Segundo as fontes locais, as galinhas não se moveriam durante toda a procissão, mantendo-se assim submissas, aninhadas durante todo o cortejo. A assegurar-se do regular funcionamento do milagre, um grupo de varões zelava em torno do andor durante toda a procissão tapando-o com os seus corpos. Assim que algum espectador temerário se aproximava de forma um pouco mais suspeita do andor, este olhavam-no com um olhar furioso, tapando-o com zelo redobrado. Alguns espectadores afluíam ao andor a passo apressado, desejosos de lhe tocar, tocar na Madona. Assim que o faziam benziam-se logo de seguida. A procissão seguia assim a passo não apressado ao som do ribombar dos tambores e do som estridente da orquestra. Era curioso ver a coexistência pacífica entre o entusiasmo, o barulho caótico e o espírito piedoso. Pareciam dois mundos completamente inconciliáveis que aqui, em Pagani, coexistiam. Falo, pelo menos, em comparação com as suas congéneres mediterrânicas, nomeadamente as ibéricas, que tive oportunidade de conhecer de perto. Nestas, o espiritual, o profano e o piedoso parecem conter-se, mostrando dificuldades em micigenar-se. Veja-se um procissão na semana Santa em Espanha, nas localidades mais conservadoras. Nela tudo é pesar, negro, desejoso de sangue e de sofrimento. A alegria é mesmo vista com rancor. Algo de semelhante se poderia dizer em relação às procissões da Semana Santa em Portugal. Nestas, não é tanto o desejo de sangue e de sofrimento que se respira, mas uma piedade algo diferente, pejada de lágrimas, beata.
Portanto, aqui em Pagani, sagrado e profano pareciam conviver lindamente. A Madona avança pelo meio da multidão entre aplausos e confeitos prateados lançados das varandas. Os confeitos brincam e reluzem com o trovoar do fogo de artifício caseiro lançado por alguns dos moradores dos bairros adjacentes. Aliás, neste último caso, isto é, dos moradores lançarem fogo-de-artifício, o andor parava e voltava-se respeitosamente para o benfeitor como que em reconhecimento pelo esforço piedoso. Já no fim da procissão, quando a Madona já completou um círculo perfeito em torno do núcleo principal da vila, a multidão dispersa-se em todas as direcções em busca de crepes quentes, limão cortado com gelo (engenhoso refresco, possivelmente com ascendência romana, que combina a extrema simplicidade com o sabor magnífico), sandes de carne assada e outras iguarias.
Outra nota em relação a Pagani que havia já sido aflorada na nota anterior. Se existe um local, no vetusto mediterrâneo, onde se pode observar o fulgor reminiscente da antiguidade pré-cristã, esse local é, sem dúvida alguma, Pagani. A festa é cristã, e embora não tenha lido absolutamente nada sobre a efeméride, posso dizê-lo, sem medo de errar, que a festa outrora pagã fora assimilada com o advento do cristianismo, mantendo ainda hoje muitas das suas características ancestrais. Diga-se que o próprio nome da localidade, Pagani, indicia que, possivelmente, esta fora um último reduto de antigos habitantes da península Itálica que se recusaram a abraçar a jovem religião do cristianismo quando esta começara a ganhar honras de cidade. Não posso afirmar categoricamente nada do que estou a insinuar até porque, como já disse, não li nada de erudito ou minimamente fiável sobre o assunto. Mas a verdade (e isto sim, sei-o de fonte segura) é que o cristianismo inicialmente, proibido do elenco de cultos romanos e perseguido pelos imperadores Nero e Adriano, foi posteriormente tolerado e até, finalmente, consagrado como religião oficial por Constantino. Sei também que este reconhecimento oficial do cristianismo fora seguido da concessão de privilégios aos cristãos, e da retirada de muitos mais aos velhos pagãos. Estes últimos resistentes da velha crença seriam, muito provavelmente, auto ou hetero-isolados numa espécie de guetos onde velhos rituais sobreviviam aos tempos.
É precisamente nesta linha de ideias que vi grupos de jovens e adultos envergando castanholas e pandeiretas. Embora me parecesse que o som que emitiam era um pouco anacrónico e sem sentido, notei porém, mais tarde, uma certa ordem nesse conjunto de sons, dúvidas estas que se dissiparam por completo quando constatei que existia uma dança.
Não é necessário um golpe muito engenhosos de imaginação para entrever nestas danças a antiguidade clássica, grupos de mulheres semi-nuas que tocam, não castanholas mas conchas unidas por atilho. A concha, símbolo da feminilidade e fertilidade, um possível atavismo matriarcal. Quem tiver oportunidade de visitar o Museu Arqueológico de Nápoles, e aí observar os frescos preservados de Pompeia, não terá qualquer dificuldade em ver em Pagani um quadro vivo de outros tempos.
Vi mesmo, com os meus olhos corruptos, uma pagã perdida, pandeireta na mão e castanholas noutra, saia comprida e cabelos selvagens, de cabeça baixa, talvez nunca recuperada do tiro fatal desferido pelo Deus Cristão.

sábado, 24 de outubro de 2009

O último aforismo de Guilherme Pais

No passado dia 3 de Setembro de 2009 faleceu o líder do último partido genuinamente marxista de Portugal, e quiçá de toda a Europa. Estou a falar de Guilherme Pais, mítico líder do PCAOP (Partido Comunista dos Agricultores e Operários Portugueses). Poucos meses antes de soltar o último suspiro, Pais havia escrito um texto que podemos interpretar como um testamento, e que nos permitimos agora reproduzir sem mais demoras.

«Esperar muito da vida é a mesma coisa que apanhar uma enorme ressaca após uma noite ébria. Era isto que pensava no final de mais uma das minhas aulas de filosofia. Continuo a pensar que a filosofia é uma disciplina imprópria para ser ensinada. Nada estranho que Nietzsche perdesse a voz perante os seus (talvez) não muito interessados pupilos suíços.
Limitei-me a observa-los passada a hora de terminar a aula. Quando eu me sinto precisamente sob o ponto de tocar em algo celeste, falo-lhes das grandes correntes filosóficas dos séculos XIX e XX. Descobrira uma vida de enganos para tantas dessas almas nobres, que tudo passava em silêncio e tudo se desfazia, que mais importante era o mundo que os esperava lá fora, como os via, em passo acelerado, voltando ao mundo aniquilador. Sim, aniquilador. E disto isto não preciso de acrescentar nada.

Surgia-me então um outro pensamento. Qual seria a diferença, sim, a diferença, se eu, Guilherme Pais, professor e político, senhor de uma biblioteca interna de vários volumes, eu, senhor de ossos, músculos, tendões, braços, pernas, cabeça, afectasse esses mesmos músculos, tendões, braços, pernas, cabeça ao único fim para o qual parecem ter sido concebidos: viver – mas é de outro modo de vida que falo, aquela que desconheço ou da qual não tenho memória. Fruição. Como um animal que usa apenas a sua capacidade de abstracção em sintonia com a finalidade para a qual se adaptou: caçador-recolector. Não sou Darwinista, mas essa foi e continua a ser a nossa sina, essa que para nós caiu em esquecimento. Não admira pois que cada vez que a esquecermos só encontraremos infelicidade.

Quando em horas funestas olho para esses jovens que desejam tirar proveito da vida, hedonistas à sua maneira. Pelo menos de uma maneira que julgam que é a sua, e que ao fim e ao cabo é a de todos. Que sonham viajar e salvar as criancinhas esfomeadas do Sudão, salvar mulheres muçulmanas do patriarcalismo radical islâmico, resgatando-as das garras da morte. Quando vejo toda esta gente tão cheia de vida, tolerante, organizada, bondosa – terrivelmente bondosa, com devaneios calculados, os filhos do mundo globalizado a quem fizeram crer que tudo é possível. Quando vejo a um só, a todos, a nenhum, enfim, são todos iguais, apenas desejo ser como eles e viver a vida com um sorriso nos bons momentos, um ligeiro amuo nos maus, viver e envelhecer e um dia pousar levemente a cabeça no travesseiro e dormir o sono eterno. Por certo sei que não será assim.

Disse chamar-se Lola. Lola tinha 30 anos e falava pelos cotovelos. Lola era baixita e tinha o cabelo curto. Falava convulsivamente em avalanches verbais que rolavam até ao esgotamento do fôlego. Quando pensávamos que daquele sopro já não sairia mais nenhuma palavra Lola surpreendia. Era assim Lola. Tinha 30 anos Lola. Aos 30 anos todos chutam uma mulher para canto: os patrões, os gajos, tudo…
Um dia deste deram-me a entender que um logicista da minha casta deveria ser perfeito. Não porque nascesse perfeito, mas porque os ossos do ofício o exigiam. Quem constrói a realidade como uma montanha de blocos, uma pirâmide ordenada nada mais tem a fazer do que ser perfeito e exigir dos outros nada menos que a perfeição. Pobres loucos estes! Se soubessem que ainda hoje desejei tão ardentemente aquela jovenzita de quinze anos mais as suas carnes tenras, saberiam como tudo isto é vida e tudo isto é arte.

Lola bombardeou-me com informação autobiográfica. Se fosse minimamente perspicaz Lola notaria perfeitamente o meu desinteresse pelo enredo intricado das impressões da loucura da sua vida. Mas amo-te assim Lola. A ti e à tua vulgaridade, porque essa é a vulgaridade de tudo, e é ela que nos faz apaixonar pelo mundo. Nada parece fazer sentido se pensares, Lola, que tudo o que nos apega terrivelmente às coisas tem um substrato volátil. São essas sensações fugazes que nos fazem, Lola. É por elas que julgaremos tudo o que temos de mais precioso.

Saí para o mundo e ele tinha mudado. Apenas vi sombras disformes, mas guardei-o para mim. De que adianta falar, quando todos caminham alegremente para a perfeição? Porque seria eu a estragar o bom ânimo da festa, como me disseram um dia. Compreendi perfeitamente. Compreendi que uma nova fé universal se propagava pela Europa, e que os seus sacerdotes eram mais terríveis que os seus predecessores, precisamente porque trocaram a espada pelo sorriso. Compreendi que já ninguém era levado a sério se não falasse como um desses sacerdotes dos tempos modernos, se não abusasse das suas palavras vazias. O mais terrível seria pensar que me acolheriam com um sorriso ainda mais aberto se descobrissem que não sou um dos deles. Que os quero ver mortos. O Deus empresa prepara o seu pontificado.

Lola, querida, achas mesmo que me ficam bem estas calças? Olha que, magro como estou, com estas calças vão julgar que sou um problema de saúde pública.

Essa chusma de babosos que agora se passeava nas empresas era justamente igual a outros. Esses homens fracos que se pavoneiam como nos corredores ao longo da história, arrancando do fundo do peito fingido odes apaixonadas à natureza, a Deus, à Razão, a tudo, a nada…
Pior do que tudo, (e aqui reside a verdadeira decadência porque nem decadente é), falam agora não mais num tom grave mas sereno, da sua empresa e das suas ninharias. Falam de enriquecer e de outras veleidades como quem falava da revolução em tempos de utopia, e isto sim, isto é o século XXI: merda! Gente a mais que se mata por ninharias. Pior! Não se matam! Mais valia que o fizessem…
Que enfiassem no rabo todas as suas desditas, a igualdade de direitos, os pobrezinhos da Etiópia, os seus merdosos espaços assépticos (tão limpinhos que quase se pode comer no chão), que não sabem mais que fazer. Multiculturalismo (deste nem me atrevo a falar)?. Sussurravam até, veja-se lá, a transformação da linguagem, que até aos dias de hoje ignorou o género feminino – querem transformar o plural masculino. E dizem-me que há lugar para o que quer que seja neste mundo, onde os revolucionários são recebidos pelos ricaços com um sorriso? E isto é o mundo? E isto é a Europa? Mais valia nunca ter passado de um promontório asiático dominado por Atila, o Huno. Mais valia que Hitler e a sua máquina racional sob ímpetos irracionais conquistara todos os cantos desta terra maldita. Aqui deixam-nos viver e sorriem-nos sempre e fazem-nos crer que tudo é possível e que somos todos iguais e que um dia todos seremos presidentes ou reis ou que quer que seja. E isto é a puta da Europa?

De certa forma, Lola vivia num mundo fantástico, onde seres inanimados ganham voz, mortos ressuscitam e presidentes de vários organismos a assediam constantemente para cargos muitíssimo bem remunerados, que invariavelmente declina. O seu fervor persistente em dobrar roupa na loja da esquina prevalecia sobre tudo. Pelo menos era a única dedução possível, atendendo às suas próprias palavras. A sua caminhada estóica reduzia-se, suspeito que involuntariamente, a essas quatro paredes.
Lola vivia oprimida por uma doença imaginária que, ainda segundo a mesma, aguentava trabalhando para não sobrecarregar o Estado. A sua preocupação pela sustentabilidade do Estado Social levava-a a tal sacrifício.

A minha experiência marxista diz-me que nenhum Estaline deste mundo precisa de inventar os seus verdugos. Eles existem e por vezes encontramo-los pasmados nas esquinas. Só então alguém lhes coloca uma vara na mão e diz: “vai e conhece o mundo!”
O verdugo recém-inventado nada tem que o distinga do vulgar ladrão, do vulgar charlatão, do vulgar assassino. Apenas a sua legitimação pelo sistema o distingue dos espécimes citados. O verdugo não tem que ser culto e inteligente (normalmente não o é). Apenas tem que ser suficientemente covarde e cego de valores para fazer (como operacional) aquilo que o regime espera dele: torturar, delatar, matar, o que, repito, é comum a todas as épocas - ou seja, todas as épocas e sociedades têm os seus, sejam quais forem as circunstâncias. O grande quid specificum do verdugo é que apenas tem coragem de espreitar por detrás da amurada quando é protegido pelo sistema. A segunda grande diferença é a sua extrema heterogeneidade e capacidade de mutação. O verdugo pode ter sido um ex-chefe da polícia, um artista medíocre, um jovem arrivista ou até mesmo uma dona de casa. Todos têm em comum o verem na nova posição que o sistema lhes oferece uma oportunidade. Uma oportunidade de carreira, em primeiro lugar; uma oportunidade de dar largas à sua malvadez, em segundo lugar.
Os verdugos odeiam toda a gente. Ou porque a sociedade não lhes deu no passado aquilo que julgavam merecer, ou até porque esse é o seu mais profundo instinto animalesco, que convém em libertar.
Uma terceira razão pode residir pura e simplesmente no medo e no desespero. Medo de ser o próximo visado por essa máquina brutal e inumana; desespero, tão só porque a época é de desespero e só o miserável de rua que nada tem a perder não está desesperado.
De tudo isto convém reter que é a própria máquina cega e brutal que elege e selecciona os seus verdugos. Depois diz-se que a ideologia está morta, que desde a queda do Muro de Berlim o capitalismo continua a sua marcha triunfante, sem uma proposta alternativa credível ou exequível. E é este crer na inevitabilidade da história e dos factos, este determinismo, que começa a verdadeira morte do último marxista.

Criei o meu Partido Comunista dos Operários e Agricultores Portugueses numa época em que se acreditava em algo mais, ou senão em algo diferente que não o dinheiro. Estamos a falar de um tempo em que grupos de jovens se sentavam à bord de la seinne para filosofar e praticar o amor livre. Olho para os jovens de agora e não posso deixar de chegar à conclusão que até o idealismo se tornou algo insuportável. Análises económicas da literatura, atitudes optimizadoras, coaching e outras merdas. Tudo é útil e tudo tem que ser útil – no limite, optimizado, como se essa fosse uma escatologia irrenunciável, mas digo, até os jovens idealistas se tornaram insuportáveis. Não por serem ricos, ou burgueses, ou vaidosos, o que foram características de muitos grandes homens ao longo da história, que nem por isso deixaram de ser grandes homens. Crítico apenas aquilo que neles é artificial, armado, fabricado, protocolar, como se fosse suposto ser bombista na adolescência e conservador na idade adulta, essa idade em que os antigos bombistas se vangloriavam em salões da moda perante os seus comparsas, de copo de wisky na mão, dos seus tempos bons de juventude, e quão bons eram, e quão bom era voltar, e de como tudo isso é impossível hoje, de como não há revolucionários, nem pides, nem padres inflamados contra a invasão vermelha, nem nada que se pareça. Depois de tudo voltarão aos seus lares, onde se deitarão nas suas belas poltronas, ou na sua confortável cama com a sua agradável mulher, com quem farão amor toda a noite (quiçá com a ajuda de medicamentos para aumentar a potência sexual), e dir-lhes-ão palavras bonitas enquanto fazem amor, e falar-lhes-á de coisas amáveis quando descansarem do coito libertador, e depois tudo isto é vida…

Porque trazes hoje presa no cabelo uma flor vermelha? Porquê Lola? De onde vem esse vermelho. Do sangue? Da fleuma? Do trauma de ser vulgar? Dizes-me que gostas… Fica-te bem, Lola. Fica-te bem…

Mas vezes houve em que me revoltei contra o povo, aliás, penso que os marxistas modernos mais não têm feito do que se revoltar contra o povo. Se somos herdeiros de uma ideologia que coloca o povo no seu centro gravitacional, porque não votam em nós? Nós, os que defendem os seus interesses. Porque votam nos partidos que defendem os interesses do patronato? Porque têm mais dinheiro, e porque dominam os meios de comunicação social, e assim conseguem captar o eleitorado com mais eficácia? Não me ocorre melhor resposta do que esta: o povo não existe. O povo já não existe. Já só existem indivíduos, indivíduos que não precisam ser dispersos por maquiavélicas leis anti-ajuntamento, mas que se isolam voluntariamente. Se imaginarmos uma sociedade onde o indivíduo não pode parar de pensar, pensar em como pagar o crédito que vence no dia X, da prestação da casa que vence no dia Y, do seu emprego que breve se extinguirá. Se mantivermos a sociedade como uma massa amorfa em constante movimento não precisamos de máquinas repressivas estatais. O próprio cidadão, por sua livre e espontânea vontade, parará de pensar, resignar-se-á com todo o prazer àquilo que lhe for dado. Por isso, esses verdugos não precisam de se organizar em torno do Estado. Instalam-se nas empresas onde toda a sociedade civil funciona. Isto não pode deixar de gerar uma situação inédita e paradoxal: o Estado passa a bom da fita e os particulares dão-se ao luxo de o ignorar, e fazendo-o sabem que o fazem impunemente, e esta será uma das novas facetas do Estado. A outra será a sua faceta punitiva: multas, regulamentos, normas. O seu único objectivo é arrecadar normas que possam suster o já decrépito Estado social. Enquanto houver Estado social o povo não se revolta, pensam. E a verdadeira razão da opressão permanece mascarada sob os bons preceitos do politicamente correcto: higiene, segurança, previsão, erradicação do caos, e tão pouco saberão que estamos a ser preparados para normas ainda mais intrusivas, que prepararão, quiçá, a tomada de assalto final do Estado pelos verdugos.

Sabes Lola, de todas as leis, as únicas que respeito são as da dor. Talvez sejam as únicas que devam ser respeitadas, porque no fim tudo se resume a isso. Quando imagino as diversas situações que a vida me trouxe e me imagino deitado numa cama de hospital, anónimo, deitado, apenas um corpo diminuído, não posso ver aí alguma dignidade. Não existe dignidade alguma, pelo menos no sentido que os grandes senhores da história lhe deram. Por isso só a vida que procedeu esse momento miserável pode ter tido alguma dignidade. Mas tu Lola, que nada percebes de dignidade a não ser ter o tão pãozinho na mesa e uma cama fofa para te deitares, não verias nada de indigno nessa imagem ridícula, e eu amo-te por isso.

Mas digo-vos, povo, que vos perdoo tudo. Perdoo-vos a vaidade, a inactividade, o conformismo, se continuardes a ser homens no pleno sentido da palavra. Digo isto com a consciência de se tratar de um lugar comum, e com uma consciência oculta ainda mais forte de saber em quantas formas e quantas línguas isto pode ser e já foi dito. Como dizer algo, nos nossos dias, sem que não tenha sido dito por um número indeterminado de personagens do assombro, sobre tantas formas e roupagens diferentes?

Alguma vez me perguntaste, minha querida, como é que o medo assentou arraiais na minha pessoa? Sabes muito bem que passei a ter medo de tudo, e foi o medo que me levou a tudo. Foi em homenagem ao medo que construí o meu império, e foi no seu altar que realizei o meu primeiro holocausto.


E sigo, sob a minha fé marxista. Bani Estaline e a magnífica sociedade que crescia debaixo dos seus braços abertos e os seus bigodes de ratazana. Bani Lenine e essa pretensiosa nova facção que procura reabilitar a sua imagem, e ter morrido novo, e ter proposto uma nova política, e os enfartes, e o maldito Estaline. Bani Trotski e o Anti-Estalinismo, e o pathos, e a picareta, e a agonia. Não sei o que fica. Marx? Criemos mais um Deus imaginário e gritemos o seu nome até à exaustão. Bem sabemos que, ao contrário dos homens, os Deuses ouvem-nos sempre e se pensarmos que tardam nas suas respostas, isso é apenas fruto da impressão contingente que temos do tempo, que o que é para nós uma infinidade de tempo é para os Deuses uma fracção de segundo.

Não quero mais hoje nada teu Lola. Nem o teu sorriso, que me dá descanso aos olhos, nem os teus pés, que me massajam as costas, nem o teu sexo, que conheço já como a palma das minhas mãos. Se inventasses outra língua diria tudo aquilo que sinto por ti, e aí ficarias a saber, e talvez já não me amasses de forma tão pura. Dizias que eu não descansaria enquanto não voasse com as aves, mas estavas enganada. Não te queria abandonar e trocar pelas aves. Queria ir com os vermes. São eles os que sabem mais da vida. Mas o amor, esse… esse nunca esquecerei. Lembras-te como o teu corpo te fazia subir aos céus para logo de seguida te atirar para o Reino dos Infernos? Como incerto moravas nesse Reino para um dia voltares e gritares de novo: isto é a vida! Não te esqueças que só isso vale a pena, querida Lola.»

sábado, 17 de outubro de 2009

O Parque

Tragédia em cinco actos

Inês saiu de casa por volta das 7:30.
Embora o seu domicílio distasse cerca de 30 km do Parque, os meios de transporte altamente eficazes da sua cidade permitiam-lhe chegar em apenas cinco minutos.
Apanhou o primeiro comboio, um dos muitos que faz do Parque uma das suas paragens obrigatórias. Como de costume, o comboio encontra-se apinhado de toda a massa matutina de trabalhadores: senhoras de etnias e proveniências diversas (algumas até envergam o traje típico dos seus países de origem), homens com pequenas bolsas (presumivelmente o seu lanche), estudantes sonolentos, uns conversadores, outros trabalhadores (com o portátil aberto àquela hora da manhã). A maioria lia os jornais gratuitos distribuídos à porta da estação (Inês pegou também um para si); algumas pessoas (poucas), progrediam nas suas leituras pessoais folheando o romance de ocasião.
Primeira estação: Luxembourg. Saem alguns turistas. Notícia de capa do jornal: “Recente estudo revela que cerca de 80% dos crimes na nossa cidade são perpetrados por imigrantes”. Os passageiros fixam os olhos no jornal, quiçá apenas pelo pretexto de não cruzar olhares. Talvez um atavismo desse tempo em que se acreditava que se alguém captasse o nosso olhar roubar-nos-ia a alma.
Segunda Estação: Port-Royal; segunda página do jornal: Recente estudo levado a cabo por universidade britânica prova que as mulheres sentem maior atracção e atingem mais facilmente o orgasmo com homens de conta bancária saudável. Saem alguns estudantes e alguns turistas. Não entra quase ninguém. Fecham-se as portas. O último senhor a entrar, muito provavelmente gaulês, não se sentou, apesar da abundância de lugares vagos. Terceira página do jornal: “Grupo de portugueses detido em Aversa. Um grupo de passageiros sem o respectivo título habilitante tentou empreender, sem sucesso, a viagem Nápoles-Roma no passado dia 1 de Maio. O grupo de desordeiros procurava assim manter a tradição e entrar “à portuguesa” no dia 1 de Maio. A ordem foi imediatamente restabelecida graças à pronta intervenção das nossas forças policiais”. Terceira Estação: Denfert-Rochereu: saem alguns passageiros, estudantes. Entram outros tantos. Cerca de cinco polícias entram no comboio, provavelmente porque imediatamente antes deles entraram cinco jovens com aspecto magrebino. Soa o sinal. O comboio avança. Os jovens não se sentam. Quarta página: “Saiba como vencer a crise. Técnicas de auto-motivação e procura de emprego. Por apenas mais 10 euros adquira o suplemento: “O que é que as empresas procuram?”. Por apenas mais 5 euros adquira também o suplemento “Dá mais visibilidade ao teu cv.” Quarta estação: cité universitaire. Saem muitos estudantes. Entram algumas pessoas. Fecham-se as portas. Quinta página: “ Existem famílias a viver em regime poligâmico na localidade de Clichy-sur-Bois”. Quinta e última estação: Parque. Inês saiu. Chegou ao seu destino. Ainda á saída do túnel encontrou o seu amigo Z…
- Olá, tudo bem?
- Tudo. Contigo?
- Vai-se andando. Que tens feito?
- Isto e aquilo…
- Uau, que emocionante…
- Olha Inês, sabes quem foi Aristóteles?
- Sei, foi um filósofo grego.
- Boa! Conheces alguma cena que tenha dito?
- Não, só sei que foi um filósofo.
- Pois… Sabes que ele dizia que uma verdadeira tragédia deve acontecer dentro de 24horas?
- Ai sim? Isso é muito tempo… E em quantos actos?



O Parque

Para chegar ao Parque, Inês devia ainda apanhar o tram, cuja paragem se localizava mesmo à saída da estação de comboio. Apenas dez minutos de viagem. A cerca de três minutos do final da viagem já se avistava o Parque em toda a sua imponência. Era um recinto do tamanho de uma pequena vila e avistava-se ao longo em virtude da profusão de cores vivas da sua construção, e particularmente por três colossais torres em estilo romântico que constituam o seu ex-libris. Aí funcionava a administração do Parque. Inês desempenhava funções de guia neste Parque de fantasia. Toda a iconografia do Parque gira em torno de um conhecido mundo de desenhos animados outrora criados por um bom-homem. Diz-se que esse homem não queria envelhecer nunca. A sua juventude eterna e a sua visão de um mundo idílico, sem guerras, sem stress, sem dissabores – projectado em personagens imaginadas e humanizadas de animais. Teríamos assim: o “ratinho”, o “cachorrinho”, o “patinho”, o “periquito”, “o papagaio”, entre outros.
Dir-se-ia que esse homem, ao criar o seu sonho criou o sonho da humanidade inteira. As pessoas precisam de sonhos e esperança para viver. Os vendedores de sonhos sabem-no melhor do que ninguém.
Voltando à singular historia da nossa protagonista, Inês, como já foi dito, era guia turística no Parque. Conseguira o emprego graças ao seu extraordinário talento para falar diversos idiomas “praticamente sem sotaque”, como lhe viriam a dizer muitos dos visitantes do Parque das mais variadas origens.
Em tempos, também fora uma sonhadora. Aquando da sua meninice, desenvolvera uma paixão obsessiva – compulsiva pelos desenhos animados temáticos do Parque. Era mesmo proprietária de diversos peluches do ratinho e do cachorrinho, os seus favoritos. Cresceu e tornou-se uma mulher. Um dia apaixonou-se.
O seu namorado convencera-a a empreender com ele uma viagem em busca de uma vida melhor, noutro país. Fugira com ele. Não chegara a frequentar a universidade. Chegada ao país de destino, nem a imaturidade dos seus verdes anos nem o amor duradouro pelo seu parceiro de aventura impediram de reconhecer a dura realidade. Se no seu país, esse querido e pequenino país natal, que normalmente só se ama à distância, as oportunidades lhe estavam vedadas, isso acontecia também e por maioria de razão no país de acolhimento. Na verdade, não sabia muito bem qual era o seu sonho, mas era qualquer coisa diversa daquilo. Não que tivesse uma vida má, pelo menos o sentido material do termo (esse que normalmente tudo vence), e tão pouco tinha razões para infelicidade no plano pessoal. Tinha muitos e bons amigos (maioritariamente do seu país de origem) e um companheiro que a amava. Era qualquer insatisfação, qualquer vazio que nascia dentro de si, uma mancha negra que nasce como uma borbulha e que alastra e alastra até que toma conta de todo o ser. Apaga qualquer brilho nos olhos, seja de amor, ódio ou rancor. Antes os transforma em pedra, apaga a sua chama vital e impõe o morno da morte.
A infância não fora, contudo, apagada do seu imaginário. Tinha ainda o seu quarto decorado de motivos alusivos às mascotes do Parque, de maneira que o mundo ganhava uma inusitada unidade: do Parque ao seu quarto. A cidade era apenas uma imensa ponte a pulular de vida.
Voltando ao terreno, Inês dirigiu-se à recepção do edifício onde funcionava a administração, esse já referido, das três torres românticas. Devia depois descer dois lances de escadas laterais que a conduziriam a dois corredores separados por duas portas de serviço. Ao fundo do segundo corredor encontrava-se a central de segurança. Aí picaria o ponto e ser-lhe-ia atribuída uma hora de entrada.

A segurança era algo que fora pensado ao pormenor. Teríamos mesmo a sensação que fora a principal razão da construção deste Parque, a segurança. Um imenso furor preventivo escorria das suas paredes decoradas com câmaras, como se a todo o momento esperassem Átila e os seus hunos; como se a ordem do universo dependesse da câmara estrategicamente colocada num ponto morto da sala, invisível ao visitante desatento; como se todo o equilíbrio da natureza repousasse no olhar atento dos seguranças, vestidos a rigor, alguns até montados em cavaletes eléctricos, uma espécie de versão moderna de um ciclope. Adiante-se, só que alguns eram zelosos ate ao desespero. Tinham como função a observância do cumprimento das regras do Parque por parte dos visitantes e funcionários. Principalmente, quanto a estes últimos, e dada a especial prevalência que a administração concedia à imagem do Parque – a que se transmite ao público, os seguranças tinham como função verificar a correcção e observância pelos funcionários das regras de decoro. A saber: cabelos penteados, nada de piercings ou tatuagens expostos, barbas cortadas e uniformes limpos. Aqueles que tinham a seu cargo uma performance especial era-lhes controlado o rigor da prestação assim como o feedback pelo público. Por sua vez, os seguranças eram avaliados por auditores especialmente designados para o efeito. Estes possuíam uma grelha e uma escala de classificação. Por sua vez, os auditores eram supervisionados e controlados por determinados membros da administração que, de resto, não detinham qualquer função demasiado específica. Escusado será dizer que num mundo como estes, onde toda a gente controla toda a gente, onde o espaço é reduzido a um mínimo insustentável e o oxigénio artificial e rarefeito, haveria lugar a alguns respiradouros naturais, que sempre surgem em semelhantes circunstâncias.
Passo a explicar: embora fosse suspeita qualquer movimentação ou contacto prolongado entre funcionários do Parque, isto é, longas conversas e formação de solidariedades sólidas (que a administração procurava conscientemente evitar), casos aconteciam de trocas de fluidos em circunstâncias e locais duvidosos, escapados de todo à vigilância. À parte disto, toda a população funcionária do Parque parecia viver num desespero constante vertido em olhares indiscretos e libidinosos. Os seguranças usavam o zoom das câmaras de vigilância para ver de ângulo privilegiado os decotes das senhoras mais ousadas. Os restantes, quando não lhes calhava um posto de segurança junto do controle das câmaras, comentavam com o compincha do outro lado do edifício, através de intercomunicadores, a boazona que acabava de passar. Pode-se também dizer que toda, mas mesmo toda a actividade do Parque estava regulamentada ao pormenor. Não havia aspecto nem percalço, nem situação corriqueira estivessem em branco relativamente à agulha omnipotente do legislador do Parque.


Quando um dia começa bem

Nem por especial generosidade se podia dizer que Inês era uma pessoa simpática. Inês não era uma pessoa simpática, nem no sentido mais amplo nem corrente do termo. Não tinha sorriso fácil e dentado. O sorriso que a performance da sua posição lhe exigia, o que de resto não passava despercebido a vigilantes e visitantes, era arrancado a ferros, forçado, artificial, que facilmente poderia ser confundido com o acto de abrir a boca para morder. Ora, claro está que, embora o seu sorriso fosse forçado, o que não era de todo desejável aos olhos da administração, não era também facilmente sindicável pelos vigilantes. Apesar de toda esta paranóia e atavismo que lembra o período da Inquisição, em que algum Cristão-Novo podia ser preso e torturado por “falta de atenção na missa”, não é fácil fundamentar tal acusação sem se cair no extremo ridículo. Não que não se tenha o direito de ser ridículo. Antes pelo contrário…
Encaminhados os senhores turistas em tratos doces na sua língua materna, chega-se à hora do almoço. A cantina do Parque está apinhada de gente, como de costume. Inês não gosta de almoçar no Parque. A comida é de qualidade duvidosa e escassa – tudo feito ao barato.
Ainda não terminara de descer o segundo lance de escadas, Inês sentiu uma voz na sua direcção que lhe gritava: “Espera, espera!”. Esperou.
Por detrás de si surgiu uma figura masculina, alta e esguia, cabelos muito negros e pele morena, com traços evidentes de mestiçagem ibérica do Médio-Oriente. Inês parou. Quando foi alcançada voltaram, agora juntos, a encetar a marcha. Seria estranho pensar que mesmo depois desta irrupção violenta, os dois recém-amigos caminharam cerca de cinco minutos, lado-a-lado, em silêncio, como que mudos. Evidente que esta situação era insustentável. Então Inês decide quebrar o gelo e olha-o com certa perplexidade e de olhar esbugalhado. Esboçou um tímido e quase imperceptível “Olá!”, “Como te chamas?” “Pablo”, respondeu, “Sou teu vizinho”
- Vizinho?
- Sim, vizinho. Também moro no catorze.
- Ah! Que engraçado… Nunca te tinha visto por lá…
- Vi-te eu a ti
- Chamas-te Pablo… és espanhol?
- Sim. Sou de T…
- nunca lá fui.. Só conheço M… e B… De passagem, quase.
- Tu como te chamas?
- Inês
- Como?
- Inês
- É difícil pronunciar…
- Nem por isso… É uma questão de hábito…

Aí vai Inês… desce as escadas do refeitório. Pisa os degraus como quem pisa as estrelas. Talvez nunca saberás que é esta a matéria dos sonhos e todo o resto da tua vida o passarás em busca dessa primeira felicidade. Se ainda viveres o suficiente verás que apenas aí tudo é possível.

Visita ao Castelo


Por volta das duas da tarde, depois do almoço, Inês recebeu um ofício que a convocava para se dirigir à administração. Construiu o castelo e colocou-lhe umas pequenas pétalas no cume – um modesto adorno.
Subiu no primeiro elevador que chegava ao rés-do-chão sob o olhar vigilante do segurança. Premiu o botão dois e o Castelo levantou voo, alto, muito alto, até às estrelas. À medida que subia, via como tudo lá em baixo parecia pequenino, como de brincar: o Parque e o seu desenho ortogonal, as pessoas já como pontinhos até que desaparecem, os carros em torno do Parque que, primeiro perdem o movimento para depois desaparecer; os campos, pequeninos, como que desenhados.
Chegara finalmente ao segundo andar. Passou três corredores esquisitos e de cheiro duvidoso, até que abriu duas portas de serviço. Atrás de um compartimento provisório, dividido como que por um biombo dos tempos modernos, escondia-se a sua supervisora.
Alertada pela chegada de Inês, levantou-se de um salto e dirigiu-se-lhe com uma cordialidade pré-ordenada, protocolar, artificial. Inês compreendeu-o rapidamente, até porque sabia perfeitamente os limites que a posição supra-ordenatória de um supervisor lhe impõe.
- Boa tarde Inês,começou;
- Boa tarde
- Chamei-a aqui para tratar um assunto consigo
- Sim
- Sim Inês. Já agora, permita-me que lhe faça uma pergunta,
- Com certeza…
- A Inês tem família lá no seu país?
- Sim, tenho…
- Marido, filhos, irmãos, pais…?
- Sim, tenho… quer dizer, apenas pais e dois irmãos,
- Muito bem… Agora, voltando ao que interessa, a razão porque a chamei aqui prende-se com uma questão do regular funcionamento do serviço. Como sabe, aqui no Parque, e esta é uma das qualidades que se nos reconhece em todo o mundo, primamos pela excelência no nosso serviço. Neste sentido, a excelência do serviço, do nosso em concreto, significa estar à altura dos sonhos das pessoas. A Inês tem sonhos e esperanças… projectos?
Riu ao de leve e corou um pouco…- Claro que sim…
- Pois… mas assim em concreto… Por exemplo: eu sei que a Inês tem educação superior. É formada. Anda a prepara alguma tese, pós-graduação?
- Não,
-Pois Inês, mas olhe que nos dias de hoje parar é morrer… E tem, como hei-de dizer isto, um ideal de vida?
- Bom… Confesso que me apanha de surpresa com essa pergunta. Nunca tinha pensado nisso. Penso que o meu ideal de vida é o de toda a gente: viver.
A supervisora soltou um risinho irónico e maldoso, como que suspeitando que Inês reinava dela:
- Pois claro… É certo que esse todos temos, mas enfim! Como lhe dizia, aqui no Parque a excelência do serviço é sinónimo de estar à altura dos sonhos dos nossos visitantes. Passo a explicar: o mundo inteiro sonha com o Parque. Esperamos estar à altura desse sonho. O nosso objectivo é fazer com que entre sonho e a visita ao Parque haja uma continuidade onírica, a visita como que um prolongamento e materialização do sonho, embora com personagens e espaços reais – o realizar dessa explosão de imagens turvas e pantanosas que é o sonho. Não sei se me faço entender… Mas como já me respondeu, a Inês também sonha não é?...
- Sim…
- Já agora, diga-me, em alguns desses sonhos, digo, sonhos agradáveis, aqueles em que como que passeia entre as estrelas, tudo são imagens e sensações de prazer, certo?
- Pressuposto, respondeu Inês;
- Portanto, e porque a Inês é, para além de uma pessoa inteligente e bem apessoada, alguém que também sonha, compreende que o espírito e o projecto do Parque não se compadecem com caras amarradas…
- Como?!, exclamou intranquila Inês, como que acordando de um transe;
- Sim, Inês, continuou a supervisora. Nós sabemos que, tendo em conta esse espírito e projecto do Parque que, de resto, era já um pré-requisito no acto de aceitação de alguém ao nosso serviço: a simpatia, o sorriso afável para o público é exigida;
- Sim, mas…
- Temos informação que a prestação da Inês neste ponto em concreto fica aquém do desejável;
- E como obtiveram essa informação, se me é permitido saber? Inquiriu Inês;
- Sabe Inês, não é suposto responder-lhe a essas perguntas, mas porque se apresentou tão prontamente na administração quando tal lhe foi solicitado, e porque, à parte esta pequena observação, tem sido uma funcionária responsável, dir-lhe-ei em primeira mão as recentes mudanças em sede de gestão dos recursos humanos. Recentemente, isto é, desde que assumiu a direcção do Parque o novo administrador, alguém mais novo, com ideias modernas, procurou-se uma nova política, mais eficiente, de gestão de recursos humanos. A partir de agora todos os nossos funcionários estão sujeitos a uma avaliação periódica mensal. Tal avaliação consiste num formulário que os nossos agentes de segurança preenchem segundo alguns critérios. Os dados recolhidos são posteriormente inseridos num sistema que se encarrega da sua gestão. Finalmente, será elaborado um gráfico com a evolução da prestação do trabalhador, assim como será atribuída uma nota. Como é óbvio, não lhe posso revelar o que quer que seja acerca dos nossos critérios, mas posso garantir-lhe que dois deles são o sorriso e a alegria demonstrados. A Inês deve-se apresentar mais alegre. Sabe, é importante para a nossa política…
- Está bem, respondeu Inês,
- Já não desceu pelo elevador, mas por um belo balão cor-de-rosa prostrado à janela do castelo.


Dias cinzentos


Apesar da multiplicidade de cores e de sons emitidos à vez pela vida que pulula no Parque: gente feliz, funcionários contentes e castelos imponentes, não parece que as condições atmosféricas se queiram curvar à felicidade humana. Os dias parecem sempre cinzentos, e o tão desejado sol esconde-se, ora tímida, ora teimosamente, por detrás de uma nuvem escura. A natureza persiste no seu capricho e indiferença.
O balão de Inês poisou justamente junto de uma enorme roda onde se apinhava uma multidão. Por entre essa multidão destacava-se, pelo seu volume e altura, uma figura de peluche. Um ratinho, que ora pegava as crianças no colo, ora tirava fotos com os seus progenitores, adultos tornados crianças. Logo corria para alguém mais caricato por entre a multidão, interagindo, provocando a risada por entre o público.
Aproveitando o que restava do seu intervalo, Inês caminhou em direcção a um pequeno compartimento, bem discreto, no rés-do.chão de um dos edifícios da avenida central. Aí já se encontrava o ratinho, em descanso. Chamava-se Juha. Não é certo que esse fosse o seu nome, embora fosse conhecido assim em todo o Parque. Provinha de um qualquer país africano. Atravessara parte do mediterrâneo num caiaque fretado com mais de quarenta seus compatriotas. Uma outra parte atravessou-a a nado, evitando assim o comité de boas-vindas há muito organizado e estabelecido neste país para os cidadãos da sua origem. Uma vez em terra, Juha deambulara por uma conhecida cidade mediterrânica, pedindo esmola e roubando o que podia. Impressionados com o seu aspecto bovino, que contrastava fortemente com os seus enormes olhos aguados e amarelos, em muito assemelhados aos de um cachorrinho abandonado e pontapeado por todos os transeuntes, os patrões de ocasião empregavam-no em tarefas duras, a maior parte das vezes a troco apenas de comida, já que o dinheiro, esse, não tem dono. Um dia descobriu o Parque e uma alma caridosa procedeu à sua legalização. Desde então, Juha vivia do seu magro rendimento no Parque. Vivia sozinho e sem qualquer perspectiva de um dia regressar ao seu país de origem.
Na pequena sala, Juha fumava um cigarro ainda com a parte superior do peluche (que constituía a cabeça do ratinho) pendendo dos seus ombros.
- Olá Juha,
- Olá boneca
- Como vai isso?
- Ça va…
- Já fizeste muitos amigos hoje? Ironizou Inês,
- Não preciso de fazer amigos… respondeu Juha entre risos. Toda a gente é minha amiga desde que nasci.
- Deveras?! Uau… que sorte que tu tens!
Nesta altura da conversa, Inês reparou numa pequena ferida que Juha tinha numa das maçãs do rosto. Era realmente pequena, mas via-se claramente que era fresca e gotejava mesmo umas gotículas de sangue.
- O que é isso que tens na cara Juha? perguntou Inês;
- O quê? Isto? Perguntou Juha colocando bruscamente o dedo sobre a ferida;
- Sim, isso…
- É uma ferida muito antiga. Tenho-a desde que me lembro de ser gente…
- Mas como é isso possível? Como pode ser uma ferida assim tão antiga, se continua a sangrar?
- Bom, acontece…às vezes sangra…
- Deves estar a gozar comigo. Se isso fosse verdade há muito tinhas morrido com uma hemorragia… mesmo se são apenas pequenas gotículas de sangue… Como é possível que nunca tenha cicatrizado?
- Não! Não estou a brincar! É assim tão difícil acreditar que existem feridas que nunca cicatrizam? Por vezes o sangue estanca durante uns tempos, mas quando penso que vai sarar logo o sangue volta a correr. Primeiro em pequenas gotículas espaçadas no tempo para depois crescerem em volume e intensidade. Com o tempo a gente habitua-se. Já ouviste falar num senhor que disse que o maldito ser-humano habitua-se a tudo? Pois como não se havia de habituar a umas pequenas gotículas?
- Tens razão, Juha! Habituamo-nos a tudo… Ás vezes penso que morreria de desgosto se não fosse e não tivesse aquilo que sonhei para mim. As coisas foram acontecendo, e quando dei por mim… já não havia nada. Retiram-nos até o mais básico e singelo dos sonhos e, no entanto, continuamos a viver… Continuamos a sonhar… só já não sei se ainda estamos vivos ou apenas num sono sem sonhos.
- Pois… sono sem sonhos…
A conversa continuou mais uns minutos, o tempo de acabar o cigarro. Juha voltou a encapuçar a cabeça do ratinho e voltou ao trabalho com Inês. Entretanto, o céu continuava cinzento e ameaçava chuva.


Afinal é um palhaço!
Já regressada ao trabalho, conduzindo um grupo de turistas, Inês deparou-se com um amontoado de crianças que soltava gritinhos e palmas. Ao centro destacava-se um palhaço. Será possível? Um palhaço? Mas nos Parque não existem palhaços… existem ratinhos, cachorrinhos, periquitos e cowboys, mas não palhaços. Seria algum trapaceiro ou algum freelancer em busca de rendimento extra? Teria entrado no Parque com farda civil, ter-se-ia infiltrado com a roupa de palhaço escondida, ter-se-ia vestido e maquilhado rapidamente para ganhar os seus próprios trocos. É uma questão de tempo até ser descoberto.
À parte de ser, muito provavelmente (e excluindo ainda a possibilidade do Parque admitir palhaços ao seu serviço), um palhaço impostor, o seu aspecto em nada diferia de um palhaço qualquer. Encontrava-se trajado com roupas largas, de um vermelho, verde, amarelo e roxo berrantes, sapatos castanhos enormes, a cara pintada de branco com um enorme sorriso desenhado. Os olhos prolongavam-se artificialmente num desenho que acrescentava algumas lágrimas. O nariz era uma bola vermelha. Fazia pequenas figuras com balões: cabritos, flores, cães, etc. Inês parou no meio da multidão e observou mais algumas das suas façanhas. Quando este terminou seguiu-o cautelosamente. Viu que ele se escondera numa casa-de-banho. Intrepidamente, Inês entrou na casa-de-banho masculina e viu, numa das repartições, os sapatos enormes do palhaço. Não resistiu e empurrou a porta. Era Pablo.

Enquanto a noite não cai

-Ah, és tu, disse Pablo,
- Pablo ! Que pensas que estás a fazer ? Porque estavas vestido assim ? Que vem a ser isto? Não sabes que não são permitidos palhaços no Parque?
- Sei,
- Então?!
- Bem, qualquer parque precisa de palhaços. Antigamente precisavam de os contratar. Agora, como podes ver, já os há voluntários.
- Bem vejo,
Nisto, ouviram que mais alguém entrava na casa-de-banho. Pablo puxou Inês com força para si e fechou a porta do compartimento. Neste acto, Inês encostou instintivamente a cabeça ao seu peito.
- Faz pouco barulho, antes que nos descubram, disse Pablo.
- Isto é uma loucura Pablo! Se nos descobrem eu sou, no mínimo, despedida, e tu vais preso, com toda a certeza! Sussurrou Inês.
Dito isto, Pablo agarrou o seu pescoço com ambas as mãos e beijou-a, ainda com os lábios pintados da máscara. Inês não ofereceu resistência. Era um fulgor de pensamentos que não diziam nada, gestos que falavam, toques apaixonados, gritos mudos. Se se ouvisse alguma vez naquele aperto mudo que leva em si todo o sentido que as coisas possam ter, dir-se-ia, beija-me, e que a tua saliva seja como um ácido que escorre no meu interior, que apaga todas essas memórias sujas do mundo.
- Será uma questão de tempo até os descobrirem, Pablo,
- Sim, eu sei… já não estamos em tempo de palhaços.
Entretanto a noite caía.