sábado, 5 de dezembro de 2009

A confissão de um homem-médio

Possibilidades limitadas

Conservo uma memória histórica de alguma forma limitada desses tempos de revolução em que tudo parecia possível. Limitada, desde logo porque é construída com base em pressupostos criados pela minha imaginação e interpretação dos factos, e não por uma vivência real. Talvez se a tivesse vivido na realidade, se tivesse marchado com Lenine da estação Finlândia ainda tivesse uma ideia mais deformada das coisas. O que é certo é que as coisas apenas mudaram de revestimento, porque o conteúdo é exactamente o mesmo. Era óbvio que os senhores da guerra, filhos de pastores e sapateiros, depois de ascenderem eles próprios ao poder teriam como função primordial, antes de todas as outras, impedir que os filhos de outros pastores e sapateiros ascendessem socialmente. Eles sabiam melhor que ninguém o perigo que representavam para si próprios. Daí que o século XX me pareça apenas uma forma perversa de destruição de si próprio, de aniquilação de possibilidades. Não é com grande surpresa, e até, confesso, uma certa complacência, com esses senhores das secretárias que num sistema de abolição da propriedade encaram os seus cargos como propriedade privada. Não é de estranhar que os senhores das empresas públicas e universidades, logo que assumem um cargo importante, tenham apenas duas preocupações em mente: primeira, puxar o tapete a todos aqueles que eventualmente lhe possam fazer sombra; segunda, puxar o tapete a todos aqueles que eventualmente possam vir a concorrenciar com os seus filhos no acesso aos cargos; terceiro: criar a sua própria Casta, a sua própria linhagem. Por isso vemos essas aberrações de nomes conjugados e patronímicos proposicionais acrescentados fora de tempo, como “de Silva”, “de Moreira”.
Certo é que voltamos à estaca zero em termos de mobilidade social, e o ódio com que o mujique citadino olha o senhor engravatado é o mesmo com que os paisans et vilains olhavam o senhor feudal. Mas diferentemente da Idade das Trevas, os sains coullottes de hoje não se podem organizar em massa para combater os seus inimigos de classe. De nada lhes vale organizarem-se em hordas estúpidas e esfomeadas, saqueando tudo o que encontram pelo caminho. O monstro que os oprime é uma colossal máquina burocrática, sem face e sem nome. Os relatórios constituem os seus tentáculos. As interpretações engenhosas da legislação que brotam aos jorros todos os dias fazem mais pela castração da sociedade civil do que qualquer decreto imperial. Cada jovem intelectual que lançam no desemprego faz mais pela censura do que qualquer index. Nem preciso pensar o que será da liberdade de expressão quando todos se puderem exprimir livremente, mas tão livremente que não existe ninguém para ouvir, não existe ninguém para reprimir, ninguém para abafar, nenhuma policia anti-motim, mas todos os dias que se deitarem na mediocridade das suas camas, se sentarem na miserescência das suas cadeiras de escritório, sentirão todo o peso da história, como a vida limita só por si, e tudo voltou a ser como dantes.








Casos pendentes

Quem é esse homem que tão apressado se dirige a parte alguma? Qual o seu nome? Qual a sua missão? Chama-se Joaquim, José, António, Manuel, Rodrigo, Frederico, Pedro, Adelino, Alberto, Cristiano, Carlos, Ricardo, Vítor, João, Tiago. Tem todos os nomes, todas as profissões e todos os desejos. Talvez porque todos os desejos, de toda a gente seja o seu, aderiu de forma hábil ao partido do governo. O partido que governa e que, de resto, é também o único. É um partido que pretende agregar todas as tendências e todas as aspirações dos cidadãos. Houve mesmo um teórico do partido que definiu a sua existência como anterior, mesmo em relação à própria sociedade. Antes dos homens se autorganizarem em grandes sociedades, as relações de força impunham já assunção de uma determinada política e uma vontade de poder a que podemos chamar partido. O partido é anterior a tudo e condição necessária de tudo. Chega então àquela fase da sua vida onde já não se pode ir muito além da perfeição, porque enfim, esse é o destino glorioso dos que enveredam pelo bom caminho. E o partido é isto, sou eu, tu, ele, as árvores, o chão que pisamos. Mas a política e as decisões que emana deverão, para que o povo nos ame, ser sempre algo de profundamente incógnito ao comum dos mortais. Diremos apenas esse FIAT, destruiremos, construiremos sobre o sangue dos nossos inimigos, façamos doutrina, separemos famílias, destruiremos vida, destruir-lhes-emos a vida, massacraremos, roubaremos até as o pão que têm sobre a mesa, as cuecas que têm para vestir, e eles adorar-nos-ão por isso. Por isso o homem só é capaz de amar aquilo que de alguma forma lhe é incompreensível.
Surgiu recentemente o rumor de que o partido quer refazer as suas bases, quer reorganizar a sua estrutura em ordem a prosseguir objectivos mais sólidos, sem recuos como aos que assistimos no passado. Só assim a nossa credibilidade sairá inabalável.
Quanto ao povo, a massa, o melhor é nem falar. Porque a vontade do partido é a vontade de todos, que se exprime na voz de um só homem. A voz de esse homem anunciou recentemente à porta fechada que é necessário refazer, reinventar. Disse que há alguns casos já decididos e outros pendentes.

Porque partem os comboios?

Porque partem os comboios a toda a pressa, e porque levam eles tanta gente? Porque há tanta gente tão apressada a ponto de viajar de pé, recusando inclusive o aquecimento, condição essencial num país tão frio como o nosso. Porque vão de armas e bagagens e as suas crianças choram, como se pressentissem que nunca mais voltariam? Porque é que se imprime nos olhos de todos uma expressão de abandono, de quem perdeu toda a esperança no que quer que seja. Se são já seres humanos, porque é que ninguém se contenta em ser simplesmente humano?
O nosso Querido-Líder compreendeu, antes de nenhum outro, que as pessoas devem estar em constante movimento. A única forma de estar do ser-humano é o constante movimento, e só esse movimento lhes permite fazer a limpeza histórica das suas memórias. Num território tão vasto como o nosso não parece ser difícil. A ingovernabilidade do nosso colossal país é apenas ilusória. Basta manter os comboios em movimento, e o tempo e o espaço farão o resto, tal como a natureza se governa por si própria.

Homens de gabardine

Quando Joaquim se levantou, cumpriu o seu hábito de correr as cortinas da janela do seu quarto que dá para a estrada. Foi sem surpresa e viu dois homens de gabardina preta, que fumam encostado a um carro do outro lado da estrada.
Tomou o seu duche do costume e defecou na sua não muito confortável sanita da minúscula casa-de-banho.
É escriturário, como toda a gente neste país… Este país vive de relatórios, e o relatório é a única coisa que parece alimentar a nossa imaginação. O relatório é uma espécie de rosário deste mundo moderno, onde a sua inalterável prosa constituiria, sem qualquer dificuldade, já um género literário menor. Tem a vantagem de transformar os homens em ilhas, ilhas remotas onde as únicas barcaças que nos permitem comunicar são esses relatórios em papel de imprensa, que circulam na segurança de envelopes lacrados transportados por fiéis mensageiros.
Quando sai para a rua sem que ninguém repare em si, não deixa de reter que o mundo moderno ensinou como nenhum outro a lição de cada um se meter na sua vida. Aprendeu, ele próprio, que as maravilhas da civilização são um pau de dois bicos – por exemplo, quantos tribunais não julgam hoje em dia pessoas inocentes? E não as condenam? E não as torturam? Quantas leis, regulamentos, directivas, circulares, não trazem mais a liberdade do homem pela lei mas a sua opressão sobre um tirano diferente? Não há duvida que o tirano é a espécie rara mais fácil de substituir, o que só por si é um paradoxo. Mas não há dúvida que a ciência e a tecnologia são um pau de dois bicos. Por exemplo, se não existissem automóveis não estavam agora aqueles dois sujeitos de gabardine encostados num; e se não existissem metropolitanos não me seguiam eles até ao metropolitano, sentando-se apenas alguns lugares atrás de mim, conversando baixinho, baixinho.

O telefone toca

Saiu do metro com bancos corridos almofadados, algo que penso ser um exclusivo da nossa cidade, ou melhor, da nossa sociedade. Pois foi aqui que o homem conheceu, primeiro que todos os outros o sabor da libertação do jugo das classes dominantes. Um poderoso fim de uma história repetida ad eternum nos séculos passados. Fossem os escravos, cansados da sua condição de objectos fungíveis que matavam os seus senhores para depois saborear o instinto da liberdade, esse que a sua condição de escravos desde o nascimento mantinha adormecido. Fossem os servos da gleba, caminhando sobre séculos de escuridão e de trabalho árduo, puxando o arado com a sua própria força sulcando o solo gelado das terras do senhor. De todos eles, cujos ossos jaziam em descampados após um massacre militar, novos valores e novos escravos e servos da gleba levantavam-se, lembrando-se que o homem fez-se para ser livre, que a exploração do homem pelo homem não é a condição da natureza, mas o seu oposto. Por isso eu amo o meu partido, porque foi o primeiro que deu o grito intelectual de todos esses nomes sacrificados pela história. Ainda que não tivessem nome, ainda que fossem apenas faces sem nome, nomes sem faces, corpos sem sombra, sombras sem corpos.
As escadas rolantes estendiam-se em direcção à rua num sentido vertical, demasiado vertical. O túnel do metropolitano fora criado fundo, demasiado fundo. Por isso quem subia pelas escadas rolantes tinha a sensação se ascender aos céus, neste caso à terra, o único céu possível. Mas porque não se contentam então em ser apenas humanos? Porque é que não chega ser humano?
É com o mesmo desejo de me fundir com a multidão, pois assim lograria o meu esconderijo, que me sento abespinhado na minha secretária, enquanto pensava em alguma razão válida para as coisas. Porque é que esta cidade, a Jerusalém dos tempos modernos, a Constantinopla das almas ateias, tem mais de dez milhões de habitantes e é precisamente para a janela do meu escritório que pasmam aqueles dois homens de gabardina? Porque é que esta chuva gelada de Outubro que começa agora a cair não dissolve tudo à sua volta, os seu edifícios e as caras das pessoas, tudo em desintegração, como que banhados por ácido. Talvez depois dessa chuvada esses homens já não estivessem aí e a minha alma teria algum descanso. Tudo é a tão indiferente a tudo, mas acredito que a única coisa que pode tirar o homem da indiferença é quando a sua vida corre perigo. Só um perigo mortal é capaz de provocar alguma reacção em alguém.
Sempre me ensinaram que esse perigo mortal provinha do exterior, e nós, o povo escolhido, encolhido no nosso enorme país continental seriamos sempre motivo de inveja e cobiça pelos nossos vizinhos. Que repetidamente tentariam anexar partes ou a totalidade do nosso território, e o perigo está em todo o lado. Está no Ocidente, está no Oriente, está no Norte e está no Sul. A Ocidente estão os outros que sempre invejaram a nossa prosperidade continental, e por isso nunca lhes invejamos a sua prosperidade ultramarina, que tão bem conhecemos sem conhecer. A Norte está o limite do globo, e aí o nosso inimigo é apenas o tempo, sempre ele, esse único e invencível que tudo devora. No oriente e no sul estão os bárbaros, que destruirão logo que possam a nossa próspera civilização que não conhecem.
Chega mais um relatório, e este traz uma pequena lombada vermelha, o que é sinal do alto grau de importância. O mesmo tempo que agarro com as duas mãos este relatório o telefone toca o seu uníssono estridente.
Atende, era o chefe, que diz que foi contactado essa mesma manhã para se apresentar na esquadra que o assunto era urgente, muito urgente, o caso grave, muito grave.

Uma ténue luz amarela

Quando cheguei ao escritório com as minhas mãos empapadas em suor apesar do frio que se faz sente já nesta altura do ano, a primeira coisa que me chamou a atenção foi um candeeiro pendendo to tecto com uma lâmpada de luz amarela, que iluminava de uma luz ténue as parede branco-sujo da esquadra. Porque é que nos momentos limite fixamos a nossa atenção nestes elementos sem importância? Porque é que as pedras e os muros e os edifícios e as casas e as estradas são indiferentes ao sangue e sofrimento que por eles passa? Olho para a Praça Vermelha, e onde precisamente hoje se faz uma esmagadora parada militar já morreram centenas de milhares de pessoas empaladas. O que é que significa tudo isto afinal?
No início, já sabíamos que confiávamos em alguns homens onde depositamos todas as angústias que trazíamos acumuladas. Fizemos do sofrimento o nosso modo de viver e da luta a nossa máscara. Quando pensávamos que era a hora de tirar a máscara já nos tínhamos desencantado de tudo, já tudo era igual, homogéneo, e haverá algo pior que ser homogéneo? Haverá dor maior que a de ser vulgar?
Essa ténue luz amarela que se instala nas almas, nos atrofia toda e qualquer palavra, que irradiada por essa luz parece pequena ou insuficiente. Foi essa luz amarela a primeira coisa que vi quando entrei naquele escritório. O mobiliário sóbrio e os símbolos pungentes do partido parecem indiciar aquilo que já todos sabemos. Que a vida é o partido e nada existe além do partido. Deus morreu, mas sabemos que ainda podemos contar com o partido, esse céu terreno que um dia se abaterá sobre nós.

Sobre certas e determinadas coisas

O chefe Parménides arrastou levemente a cadeira sentando-se confortavelmente. Olhei nos olhos os bustos dos nossos padroeiros, contemplei as suas testas longas e a forma como se demoravam ao fitar-me. O chefe dirigiu-se a mim num tom sereno, sem amor nem ódio. Apenas aquilo que deveria ser. Nesse mesmo tom calmo informou-me que tinha sido informado de certas e determinadas coisas que me comprometiam seriamente em relação à minha fidelidade com o partido e com a nação. Não respondi. “De maneiras que”, continuou, tenho aqui um documento que circunstancia todos os factos relativos a essa situação. Como pode reparar, aqui, no final, encontra-se um termo de responsabilidade, o qual deve assinar. Um confissão, portanto. O que pretendem é que eu assine uma confissão, um termo de culpa por certas e determinadas coisas.

Para quê, a culpa?

Acabada a sua prelecção, o chefe perguntou-me se tinha algo a dizer sobre o que ali constava. Os escrivães debruçam-se diligentemente sobre os seus cadernos para iniciar o relato. Respondi que não tinha conhecimento de nada do que ali constava. Respondi que sempre tinha sido inteiramente fiel ao partido e aos seus princípios, que tinha cumprido escrupulosamente tudo o que me tinham ordenado, inclusive, alguns processos semelhantes àquele a que agora me submetem. Sim, também eu, em tempos, fui encarregado deste tipo de processos. Na altura, tratou-se tão só de “despachar” X número de burgueses da região Y, que, não obstante o seu comportamento anti-social e inimizade para com toda a causa humana, refugiando-se apenas nos seus interesses pessoais, foram submetidos ao due process of Law, porque o nosso país é um país civilizado, não como esses países bárbaros de mongóis onde se mata por tudo e por nada. Aqui matamos, mas os acusados têm a oportunidade de apresentar as respectivas observações.
“Se conheces assim tão bem o nosso procedimento”, acrescentou o chefe, “sabes melhor do que ninguém o que aqui está em causa…”. Sim, sei o que está em causa, o que está em causa é o meu desaparecimento. Precisam que eu desapareça… Mas se eu sempre fui fiel ao nosso partido e à nossa causa… “Se és assim tão fiel ao teu partido e à causa, assinarás este termo de culpa, ainda que sem culpa, porque é isto que o teu partido exige de ti”. Se os meus superiores e o meu partido exigem de mim esta confissão, se eles determinaram que eu deveria ser alvo deste processo, certamente que terão boas razões para isso. Eles sabem o que fazem. Assinei.

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