quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A fantástica viagem de Pedro ao país do nada

I

Faz pouco tempo que Pedro está nesta cidade, mas o pouco foi já suficiente para criar um pequeno núcleo de amigos. Mudou-se de uma pequena vila, não muito distante, para o núcleo urbano Y, em busca de um pouco de tudo, trabalho, cultura, amigos, amor (o que quer que isso seja).
Encontrou trabalho como vendedor de uma conhecida empresa de cosméticos, não obstante as suas reservas intelectuais ao culto do corpo. Depois de algumas visitas a certos estabelecimentos de estética, chegou, afinal, à conclusão, que as coisas do corpo não formam uma realidade tão horrorosa como a pintam os intelectuais. Há certas ocasiões em que a beleza vale por si, disso ninguém pode duvidar…
A cidade é pré-fabricada, e nem de perto se pode dizer que seja acolhedora, particularmente para quem vem de fora. O exotismo deixou de ser moda há já muito tempo nas cidades europeias. Tempos houve, pensa, enquanto come pausadamente a sua sandwich/almoço, em que as pessoas acharam piada à diferença. Ao provinciano, ao estrangeiro, ao sotaque, ao moreno, ao loiro, ao religioso, ao ateu. Mas ninguém acredita nisso nos dias que correm, o que não deixa de ser certa forma paradoxal em tempos de globalização, quando o superavit de informação deveria tornar a sociedade mais cativa à aceitação do estrangeiro. Enfim, não se pode exigir tudo, e mais vale aceitar o olhar carrancudo com que o olham as velhinhas que passeiam o cachorrito no jardim do que o deserto da sua cidade natal.
O seu grupo de amigos, restrito mas perfeitamente compatível consigo em termos de afinidades, partilha dessa opinião. Com efeito, inventou já toda uma gíria e institucionalizou toda uma ritualística em torno do assunto. Por exemplo, a teoria da folha branca. Segundo esta teoria, quem vem de fora deve fazer da sua mente uma folha branca à data da chegada à cidade. É aí que a experiência urbana deve imprimir a sua marca. Um exemplo, entre muitos outros, que iremos explanar à medida que o nosso enredo se for desenvolvendo.
Como não pode deixar de ser nestas coisas, o amor, que o nosso herói conhece já sobre contornos tortuosos, é sempre importante numa cidade onde a solidão é a regra. Mas a própria solidão encontra-se institucionalizada de tal modo que, mesmo assim, é facilmente colmatável. Basta ligar para um desses números que enchem os fóruns todos os dias, e o amor surge... Não que Pedro se deixe seduzir por essas formas fáceis e consumistas das relações afectivas, que o próprio sexo, por mais desinteressado que seja, leva inevitavelmente consigo. Aliás, é da opinião que deve ser a prática a ditar as regras à teoria, isto é, devem ser as necessidades do dia-a-dia, a espontaneidade, que levam a uma configuração mental das coisas, a enformar as nossas escolhas de vida. Daí que pense que o amor não se procura, o amor encontra-se, o que, sejamos honestos, não é uma posição de todo ingénua, indiciando mesmo algum tacto para a coisa…
Correndo o risco de ser profilático em relação à conduta deste nosso herói, podemos mesmo dizer que ele é um “bom”, no sentido mais quotidiano do termo, como já ironizaram muitas das personages que foi encontrando ao longo da sua vida. É nestas alturas em que o seu eu, a sua maldita cara e o seu maldito corpo, que envelhece todos os dias, lhe lembra a maldição de ser sempre o mesmo, ainda que em constante mutação, passando como um espelho ao longo dos espaços e diante das gentes, sempre esse presente.

II

Quando se começa a desenhar o esboço de um personagem, começa-se, e é por aí que se deve começar, pela vida afectiva. Primeiro, porque esta, quer queiramos quer não, é sempre a mais importante e determinante de tudo o resto. É o alicerce de bronze de todas as outras vertentes, de tal forma nos condenou a mãe natureza, diria Pedro, quando tiver voz na narração, o que acontecerá dentro de pouco tempo. Já nas suas conversas de café, Pedro não pode deixar de notar, e esta realidade é particularmente viva aos seu olhos, que o tema sexo é o único no qual todos podem participar com um nível bastante aceitável de profundidade, não obstante a sua origem social, sexo, idade, educação, estatuto. Daqui, não custa depreender a importância que o assunto tem na vida das pessoas. Também não custa compreender que esta tenha sido uma das primeiras preocupações de Pedro logo após estarem resolvidas as questões mais essenciais à sobrevivência: trabalho e habitação.
Foi nesta ordem sincrónica de escalagem da pirâmide das necessidades que Pedro conheceu Sissy. Antes de maiores desenvolvimentos quanto a esta personagem, que por certo conquistará a simpatia do leitor, é nosso dever acentuar, em jeito de prolegómeno, o seguinte: primeiro, não se deixem iludir pelo “ar” porno do nome Sissy, não só porque estamos a falar de um exemplar acabadinho da burguesia do século XXI, isto é, aquela que trabalha no sector dos serviços, a família trabalha no sector dos serviços, todos os seus amigos trabalham no sector dos serviços, e nem por sombras se lhe assomaria a ideia de escolher um companheiro que não um membro desse mesmo sector económico. Para Sissy, os frangos nascem das árvores já depenados e embalados, prontos a distribuir nos supermercados, e a fruta com caroço será objecto da investigação científica com vista à sua alteração genética. Segundo, se o nome indicia algo de ingénuo em relação à pessoa, partindo do princípio, às avessas no nosso grande Nobel Saramago, que o nome tenha alguma relação com a pessoa que identifica, desencantem-se já dessa ideia. Sissy, no decurso dos diversos encontros preliminares que teve com Pedro, esses encontros que servem de protocolo para “algo mais”, viria a demonstrar uma hábil racionalidade prática que nenhum Kant, nos seus monótonos passeios por Könisberg, poderia adivinhar.
Por tudo isto, e porque algumas situações, só por si, apenas pelo facto de existirem e serem reais e perceptíveis, são cómicas, chamaria a esta subdivisão do texto de “O alegre capítulo de Sissy”, não fôssemos nós, como somos, desprezadores natos da forma em prol do conteúdo.
Como já foi dito, Sissy era um membro, par excelence, dessa burguesia promovida a nobreza dos serviços, enriquecida muito antes desse mesmo sector dos serviços, também ele, se proletarizar, invadido pelas hordas de camponeses novos-ricos intelectuais. Era loura, de um louro que Sissy fazia questão de evidenciar ainda mais recorrendo à coloração e a tratamentos capilares, que Pedro sabia bem caros dada a sua experiência profissional no ramo. Media cerca de 1,78 de altura e revestia a sua ossatura de formas sumptuosas que, de forma algo invulgar, não evidenciava em demasia, o que agradou ao nosso herói. Abaixo da sua testa curta e pálida, que tentava disfarçar recorrendo a base de cor assentando-lhe uma tez trigueira de tom artificial, jaziam dois olhinhos pequenos e bem delineados de cor castanha e tom vago. Destaca-se o seu queixo bem desenhado, secundado por uma boca de lábios finos belíssimos, simplesmente belos. Pedro sabia que Sissy se encontrava livre para amar, sem namorado, há já um par de meses, e que desde então buscava novo amor, em jeito dessas vedetas que desfilam pelas páginas das revistas de socialite. De facto, Sissy pertencia a esse grupo de mulheres surpreendentemente grande, que quando não tem namorado o mundo desaba à sua volta. Tudo lhe parece solitário e ameaçador, hostil, foge-lhe o chão dos pés. Portanto, era este o estado de coisas que Pedro encontrou quando se fez ao mar revolto, onomatopeico símbolo da cabeleira loura de Sissy. Era também essa fragilidade emocional da nossa personagem feminina que lhe conferia uma certa receptividade a Pedro, não obstante o facto desta, em circunstâncias normais, nunca o ver como uma possibilidade real e efectiva, e foi com a mesma incerteza no valor das palavras e dos actos, que Sissy acedeu logo ao terceiro sms de Pedro de convite para um café. Como sabemos, nós, pessoas experientes na arte da sedução, a quem não aterrorizam todas essas descobertas draconianas da ciência que proliferam nos dias de hoje, procurando explicações e fenómenos bioquímicos para tudo, analisando de uma perspectiva animalesca os rituais de acasalamento dos mamíferos, incluindo os humanos, uma realidade que, de resto, os cientistas consideram tão evidente que nem sequer encontra oposição entre os membros mais conservadores da Igreja, o que não deixa de nos causar uma certa desilusão. Sabemos, dizia, que a assimetria de posições sociais conta nestas coisas, assim como outros factores. E sabemos que Pedro tinha perfeita noção disso quando resolveu “lançar o barro à parede”. Portanto, o embaraço que Pedro já sentia, naturalmente, com os exemplares do sexo feminino, agravou-se ainda mais quando deu de caras com Sissy, frente-a-frente, ali, para ele, para ele, Pedro, lutar por ela, conquistar, convencer, persuadir, que ele, Pedro, era o homem ideal para preencher a lacuna que o último namorado de Sissy havia deixado no seu coração. Esse facto, o de Pedro encarnar agora um potencial, entre outros, correctamente ordenado e de número de contacto actualizado na lista telefónica de Sissy, colocar-lhe-ia um outro peso sobre os ombros que o nosso herói não havia sentido até então. Expliquemo-nos melhor. Quando foram apresentados e se desenrolaram os primeiros fios de conversa, Pedro era ainda, na imagem simplificada de Sissy, um exemplar vindo de não-se-sabe- de-onde que, sem prejuízo do facto de ser bem parecido, parecia carregar nos ombros uma herança pesada, a mais pesada de todas, na opinião de alguns, a herança da pobreza. Ora, essa impressão em nada contou no desenrolar da conversa, que inserida no contexto de promiscuidade controlada de noites ébrias nada tem de acutilante. As coisas mudaram de figura com um vibrar inusitado quando Pedro enfileirou, como já referimos, a lista de potenciais. Aqui, recorrendo à preciosa ajuda da metodologia, podemos classificar alguns dos caminhos que Sissy empreendeu para dissecar a figura de Pedro.
Usou, em primeiro lugar, o método indiciário. O que é que isto significa afinal? Significa que Sissy construi o cv de Pedro usando um intricado e muito pessoal método maiêutico, do qual, suspeita-se, fazia uso por sistema. Começou pela identificação: nome e apelidos. Em tom de gracejo sobre certos apelidos de significado actual duvidoso, Sissy observou que o apelido de Pedro nada tinha de invulgar, tudo em tom de gracejo, como é óbvio, ou seja, que o seu apelido era compartilhado por mais uns milhões de portugueses, dito de outra forma, que uma parte nada despicienda da lusofonia possuía um apelido semelhante. Pedro levou-se em tom de brincadeira, embora não pudesse evitar que as suas faces se ruborizassem ligeiramente. Enquanto dizia isto, Pedro pensou que algumas mulheres, por mais estúpidas que sejam no sentido intelectual do termo, possuem um instinto feminino que lhes indica as perguntas certas na forma certa e no momento exacto. Sissy volta à carga. Chegamos à parte da residência, embora se confesse que, nesta sede, Pedro não saísse completamente desfavorecido aos alhos interessados de Sissy. Morava na baixa da cidade, e se bem que a baixa seja ainda associada à criminalidade, aos bairros, aos pobres, o inferno sissyano, havia recentemente uma tendência de os jovens de boas famílias e posses assentarem arraiais na baixa da cidade, em bairros especialmente requalificados para o efeito ou condomínios fechados. Por isso mesmo, esta parte não ofereceu particulares dificuldades. A parte da formação académica foi apenas ventilada, resumindo-se a pormenores fúteis de jantaradas e bebedeiras siderais. Passou-se à parte da competência linguística, quando Sissy lhe perguntou “que línguas falava”, ao que Pedro respondeu: Inglês, francês, italiano, espanhol e até um pouco de alemão, se bem que a sua preferida fosse a sua língua materna, o português, nacionalismo este que Pedro não sentiu nada abonatório em seu favor, já que Sissy era uma adepta incondicional e fervorosa do cosmopolitismo que as suas heroínas exibiam nas revistas. Foi a este propósito que falou nos países que gostava de visitar, na Índia e no TajMahal, onde, pelos vistos, segundo Sissy, se alojavam príncipes em mil e um quartos para mil e uma noites, nas piscinas fantásticas do México onde as suas referências biográficas se sentavam debaixo de um céu azul para beber água de coco. Gosta de italiano, Sissy, por isso mesmo pediu a Pedro que dissesse algo em italiano. Para lhe fazer o gosto, Pedro disse “ma che bella dona tu sei!”, o que agradou a Sissy, que lhe agradeceu com um sorrisinho plástico. Depois de uma breve passagem pela experiência profissional, Sissy chegou ao ponto mais almejado da construção do seu cv: o “Incomming”. Pedro sentiu isso quase imediatamente. Sentiu que a parte do Incomming era essa caixa de Pandora que lhe permitia tirar todos os segredos que Sissy, a começar, e principalmente, pelas roupas da moda que naquela tarde oprimiam de forma algo insolente as suas apetitosas carnes. Sentiu que, de facto, se esta parte fosse satisfatória aos olhos de Sissy, a menina burguesa amá-lo-ia com sinceridade. Perguntou se, vivendo Pedro a X quilómetros da localidade Z, onde trabalhava, lhe “compensava” fazer o trajecto casa-trabalho/trabalho-casa todos os dias. Pedro compreendeu que este “compensava” levava em si todas as coisas reais e toda a metafísica do mundo. Compreendendo que a conversa ficara subitamente pesada, Pedro falou um pouco do Natal que se avizinhava, e que bom que era, reunir com a família, as prendas e essas coisas todas. Sim, respondia Sissy, esperava que o Pai Natal, quando largasse da sua terra Natal, a Polónia, se lembrasse dela. Pois, o Pai Natal, da Polónia… Nesse momento, Pedro ensaiou um riso à Pai Natal meneando os ombros e rindo de forma idiota, o que soou ridículo aos olhos de Sissy, já que as coisas em si nunca são ridículas, tudo dependendo de quem as faz. A quem é rico é que fica tudo bem. Nesse gesto de meneio dos ombros, Pedro tocou ao de leve num dos mamilos vigorosos de Sissy, tendo recuado muito ligeiramente para trás com um sorriso espontâneo cheio de malícia, disparando imediatamente um clima erótico na sala, um templo asiático cheio de aromatizantes e opiáceos onde Sissy, a idiota das belas carnes, era a poderosa Afrodite.
Despediram-se poucos minutos depois, e Pedro ficou com a impressão que não voltaria a ter novas de Sissy. Nessa noite, dormiu um sono leve pejado de sonhos sem sentido. Sonhou com o Pai Natal, que desenlaçava uma das suas renas da porta principal do campo de concentração de Auschwitz. Pouco depois o Pai Natal sobrevoava a sua cidade com uma torrencial chuva de prendas. Na imagem seguinte surge Sissy no trenó, em vez do pai natal, semi-nua, belíssima, debaixo de uma tempestade de dinheiro. Oh Sissy! Como a beleza vale só por si, por mim, por todos os idiotas morais deste mundo. Quantas ideias nobres não abandonaria para poder morder a tua cervical, que de forma tão perfeita adorna e coroa o cume das tuas costas, essas costas que formam duas colinas despegadas. Percorreria esse vale com a língua até chegar à beleza erótica das tuas nádegas. Como eu mergulharia voluntariamente nessa mediocridade da vida a dois se pudesse suspender com os meus lábios o teu queixo, beijar fogosamente as tuas maçãs do tosto, morder levemente os teus mamilos, cheirar a tua carótida, percorrer levemente com as minhas orelhas frias o teu abdómen até chegar á beleza oculta do teu sexo, onde tocaria ao de leve com a ponta da língua as terminações nervosas do teu clitóris. Sissy percorria a minha cidade de trenó sob uma chuva torrencial de notas e moedas. Passado um pouco, encontrava-se já no meu quarto, onde inadvertidamente se lançou de pernas abertas para a minha boca.

III

Há já tantos anos que tenho a sensação de ouvir a mesma música. A mesma música em todo o lado, como se a história não tivesse imaginação, ou como se a imaginação, nestes tempos do Fim da História a abandonasse de uma vez por todas. Mas é a mesma, essa música terrível e monótona, que soa em todo lado, e há tanta gente e tanta coisa em todo lado, e tantas histórias na história, histórias de vida deveras admiráveis, de gente comum, que se banqueteia no início do mês e castiga o estômago lá para o fim, a história ressurge, na forma de uma música, um remix, uma voz isolada, uma orquestra, de início irreconhecível, mas que, mal os olhos se avivam, e estamos já prontos para a vomitar.
Por isso é sem surpresa que dou por mim nos cantos e nas esquinas, ouvindo os mesmos argumentos, gastos pelo tempo, mas que de alguma forma a estupidez generalizada não deixa de validar com os seus votos de gente. É também por isso que, se alguém me sorri, acredito na sinceridade do sorriso ainda que este leve em si toda a ignorância do mundo. Nesses cantos, onde me perco, recusam-me tudo o que não peço sem dizer uma única palavra. Além disso existem fases da vida, e clichés, e mais cedo ou mais tarde acabamos por encaixar em algum. É então que eu pego no meu e visto-o com todo o orgulho, como um soldado enverga o seu uniforme manchado de sangue inocente, e sabe que não deve sentir vergonha por isso, porque é precisamente vergonha que deveria sentir, e nada mais que a vergonha lhe agrada. Depois, é tão bom manter as aparências… O espaço social é, simultaneamente, o mais rico em estupidez e o mais importante. Daí que seja de todo honesto contar-vos que Pedro não sentiu vergonha, quando fizeram dele, aliás, com argumentos bastantes convincentes, um vencido-da-vida. Sim Pedro, eles riem-se de ti, e não fora a convenção social, cuspir-te-iam também. Sabes porquê? Tu és o seu inimigo natural, e eles sabem disso, e tu também, mas nunca ninguém to diz abertamente. Tal como hienas esfomeadas, esperam apenas o momento de dispersão dos leões para atacar, mas não atacam tão abertamente, dão-te apenas umas mordidas subtis para que vás sangrando até à morte. É o seu instinto, e não os podes recriminar por isso. No seu lugar farias o mesmo. Acredita que sim. Mesmo aqueles que te querem bem, ou que supostamente te querem bem, apenas transfiguraram o desejo que têm do teu sofrimento. O seu desejo sempre foi ver-te morto, ou então que desapareças, mas desaparecer completamente, até da memória dos outros, esse lugar cativo que sempre se assegurou aos nossos avós, mas que o tempo moderno, na sua crueldade ilimitada, deseja também ver proscrito. Para isso amigo, não apagarão a face do teu sarcófago, nem rasurarão o teu nome de todas as paredes do templo em jeito de danação ad eternum. Farão precisamente o contrário, repetindo o teu nome até à exaustão: nos bancos, na escola, na faculdade, no trabalho, no hospital, nas ruas. Em todo o lado, a palavra que serve de suporte verbal ao teu nome, esse conjunto articulado de sons, deixará de fazer qualquer sentido. Mas não julgues, por isso, que o fazem só por ti. Seria tolo pensar isso, uma vez que o mesmo acontecerá com eles. Não és assim tão especial, porque essa angústia que sentes, essa angústia e exasperação, essa é a angústia de todos, e quando todos mostram esse doce desespero de ver o seu nome escrito em toda a parte lutam apenas para não desaparecer. No futuro, todos lutaremos para não desaparecer definitivamente da memória dos homens, esse lugar comum disputado por tantos invulgares. Só acreditaremos nisso enquanto julgarmos que a história se compadece com estes ensejos pueris, porque mal daremos conta que já ninguém é nada, e aí aparecerá Berlusconi para nos salvar.
Se pudesse nomear de alguma forma este capítulo, seria como o “Elogio” a Berlusconi”, e embora eu saiba que todas as palavras são poucas para designar um homem providencial, não me cansarei de repetir o seu nome.
Cansados de discutir, de debater a verdade, de repisar os argumentos, de investigar as falácias do comportamento humano, de encher páginas e páginas de humanidade e civilização, nada mais restará do que a animalidade para definir um homem. Quando já todos estivermos tão cansados de tudo, e de pensar, e de fazer, chegará o homem que dirá: “Faça-se!”. Lembremo-nos da história do nosso ditador “de trazer por casa”, Salazar. Estamos nos anos sessenta, e foi constituída uma comissão para a feitura de um novo código civil. A dada altura do seu labor justiniano, o legislador depara-se com um obstáculo inesperado, uma perplexidade excruciante. O género do termo jurídico: “usucapião”. Suspendem-se todos os trabalhos para se encetar a discussão. Convidam-se para um grupo de trabalho todos os juristas mais prestigiados do país, filólogos e gramáticos de renome. O ilustre concílio durou meses sem qualquer resultado. A dada altura, já quando todos se mostravam visivelmente exaustos e frustrados com os parcos resultados obtidos, que não fosse uma aproximação à origem latina do termo, alguns contextos, alguns sentidos usados nas compilações legislativas anteriores. Parecia inacreditável, que sendo o direito civil o mais antigo direito existente, e a usucapião uma das suas mais vetustas instituições, ninguém tivesse sentido a necessidade de empregar um artigo, definido ou indefinido, que lançasse alguma luz sobre o seu género. Esse desleixo histórico, agora repercutido tão cruelmente na nação lusitana, que aguarda o seu código civil e coloca toda a sua fé nesse grupo de sábios. Foi então que uma voz iluminada disse: “Já sei! Vamos perguntar a Salazar!”. O tímido emissário avança, cauteloso, abre cuidadosamente a porta do gabinete do professor Salazar, e lança-lhe em breves reptos o problema em questão e o estado actual dos trabalhos. Com um desdém que é próprio a quem tem mais que fazer, Salazar responde-lhe, quase sem largar vista dos seus documentos: “É feminina!” Dois segundos apenas.
Oh! Berlusconi! Enche-nos com tudo aquilo que sabe tão bem! Faz palhaçada, orgias com adolescentes, escândalos de corrupção, manobras políticas sujas, discursos de charlatão, mas salva-nos de nós próprios!

IV

A primeira vez que Marília encontrou Pedro achou-o snob e pretensioso. De resto, Pedro encetou sinceros esforços por passar essa imagem. Por tudo isto, o título ideal que Marília encontraria para definir este capítulo seria “Estranheza”. Foi estranha a forma como Marília aceitou, a golpes de espada, o convite de Pedro para jantar. Foi estranha a conversa que tiveram nesse estranho jantar.
Falaram da Revolução no século XXI, da estética Holliwoodiana, da indiferença da bioquímica aos sentimentos humanos, entre outras coisas… estranhas. Desde logo, porque um tipo que se cobre de roupa de marca não deveria falar de forma tão acirrada dos direitos dos pobres, da escravatura no século XXI, da frustração de expectativas de toda uma geração, isto é, de todo aquilo de que ele próprio não sofria.
Pedro proferiu a frase mais do que gasta de que “este mundo é uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma”, depois falou na sua Revolução, que esta começa com o derrube dos muros mentais de cada um, e que aí reside o início de tudo, quando o fenómeno se generaliza. Por outro lado, continuava, acabava por agradecer às classes dominantes o irracionalismo e cegueira de valores, porque só assim, segundo ele, se reuniriam as condições ideais para a Revolução. Além disso, prosseguiu, seguindo a tendência evolutivo-dialéctica da história, o século XXI seria um século que iria conhecer a violência e brutalidade mais crua. Fim da História? Não lhe falem nisso… Isso é uma treta. Não teriam os ennuyés do século XIX razões para o seu pacato século se lhes assemelhar um Fim da História? No entanto, enquanto os barões se deleitavam com as cocottes, milhões e milhões de seres humanos eram escravizados. No entanto, não seria o mundo escravizado a assaltar o mundo hipócrita e civilizado, mas seria a sua própria implosão que provocaria a queda. A hiper-civilizada sociedade do século XIX morreria enterrada na lama das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Da mesma forma tendemos a ver o nosso mundo civilizado ocidental como um Fim da História, e julgamos que todo o universo é agora civilizado, ou em vias de o ser, apenas porque adoptou os nossos procedimentos democráticos estúpidos mas sabemos que isso não é verdade. A ideia de democracia é essencialmente ocidental, e as instituições nunca sobreviverão em lado nenhum quando impostas de cima. É a própria vida e realidade que leva os germes da mudança, e o caminho do avanço civilizacional é feito com um trilho de sangue, ou a dentes de siso, como queiram. Mas existem vozes sinceras nesses países que falam a favor da democracia? Sim, claro que sim. Vozes sinceras, mas o seu verdadeiro desejo e função é perecer. São fenómenos e ilhas isoladas, não raro educadas em países ocidentais com bolsas ocidentais. Fará algum sentido a sua inclusão nas suas sociedades de origem? Nenhuma. Ou apanharão uma desilusão de morte, ou então tornar-se-ão numa coisa pior, bastante pior… Não temos o exemplo dos líderes africanos dos movimentos de libertação?
Pedro falou ainda na irracionalidade dos sentidos, e que a vertente racional da nossa existência é apenas uma capa muito fina e frágil, derrogável a qualquer momento, também ela uma imposição do instinto de sobrevivência. A epopeia humana, mais concretamente, a masculina, mais não foi até hoje do que um desejo de, ora esquecer, ora combater a violência e indiferença da natureza em relação a tudo aquilo que o Ser-Humano constrói, e todo esse Babel de afectos de que se rodeia. Aí mesmo se projecta o sentido estético humano, nada mais do que um desejo de superação, ou, se quisermos, um desejo de domesticação da natureza, esse ensejo essencialmente masculino. Não seriam as mulheres essa violência, essa indiferença em relação às aspirações masculinas? Não seria, até essa, a violência masculina, uma forma desesperada de medo e de desmistificação da mulher, que mais do que qualquer outra coisa o homem teme?
Neste ponto da discussão, na qual Marília ainda não interviera a não ser através de olhares, ora pasmados, olha envergonhados, quando Pedro proferia exasperados palavrões que serviam de mata-borrão a algumas das suas ideias, para as quais julgava as palavras singularmente inadequadas ou inexpressivas. Quando se cansou do seu monólogo, Pedro voltou a fixar o olhar no miolo do pão, com o qual começou a fazer bolinhas. Nesse preciso momento, Marília olhou-o fixamente, olhar que Pedro nem sequer sentiu, porque olhava para o chão. Não estava seduzida, nem com a sua inteligência, nem com a argúcia da sua visão política. Apenas uma frase lhe acorria ao pensamento: “Queres-me comer! Isso é mais que óbvio, mas daqui não vais levar nada, nem levarias, nem que fosses o último homem à face da terra”!
Quando se despediram, na primeira esquina à saída do restaurante, Pedro sentiu em plenitude o fracasso da sua empresa. Talvez por isso mesmo nem tenha tentado a sua técnica habitual do beijo furtivo. Quando Marília virou costas, Pedro pensou: “Marília, és burra como uma porta, mas és a coisa mais linda que já vi. Por isso, amo-te”. Poucos segundos depois, Marília espreitava do escuro a esquina que Pedro já dobrava, e esse homem que não lhe inspirava o mais pequeno sentimento de amor fazia agora desaparecer a sua linha de perfil na escuridão. Marília sentiu uma enorme compaixão por ele, e só por isso seria capaz de o amar. Mais tarde, viria mesmo a admitir que verteu algumas lágrimas.

sábado, 5 de dezembro de 2009

A confissão de um homem-médio

Possibilidades limitadas

Conservo uma memória histórica de alguma forma limitada desses tempos de revolução em que tudo parecia possível. Limitada, desde logo porque é construída com base em pressupostos criados pela minha imaginação e interpretação dos factos, e não por uma vivência real. Talvez se a tivesse vivido na realidade, se tivesse marchado com Lenine da estação Finlândia ainda tivesse uma ideia mais deformada das coisas. O que é certo é que as coisas apenas mudaram de revestimento, porque o conteúdo é exactamente o mesmo. Era óbvio que os senhores da guerra, filhos de pastores e sapateiros, depois de ascenderem eles próprios ao poder teriam como função primordial, antes de todas as outras, impedir que os filhos de outros pastores e sapateiros ascendessem socialmente. Eles sabiam melhor que ninguém o perigo que representavam para si próprios. Daí que o século XX me pareça apenas uma forma perversa de destruição de si próprio, de aniquilação de possibilidades. Não é com grande surpresa, e até, confesso, uma certa complacência, com esses senhores das secretárias que num sistema de abolição da propriedade encaram os seus cargos como propriedade privada. Não é de estranhar que os senhores das empresas públicas e universidades, logo que assumem um cargo importante, tenham apenas duas preocupações em mente: primeira, puxar o tapete a todos aqueles que eventualmente lhe possam fazer sombra; segunda, puxar o tapete a todos aqueles que eventualmente possam vir a concorrenciar com os seus filhos no acesso aos cargos; terceiro: criar a sua própria Casta, a sua própria linhagem. Por isso vemos essas aberrações de nomes conjugados e patronímicos proposicionais acrescentados fora de tempo, como “de Silva”, “de Moreira”.
Certo é que voltamos à estaca zero em termos de mobilidade social, e o ódio com que o mujique citadino olha o senhor engravatado é o mesmo com que os paisans et vilains olhavam o senhor feudal. Mas diferentemente da Idade das Trevas, os sains coullottes de hoje não se podem organizar em massa para combater os seus inimigos de classe. De nada lhes vale organizarem-se em hordas estúpidas e esfomeadas, saqueando tudo o que encontram pelo caminho. O monstro que os oprime é uma colossal máquina burocrática, sem face e sem nome. Os relatórios constituem os seus tentáculos. As interpretações engenhosas da legislação que brotam aos jorros todos os dias fazem mais pela castração da sociedade civil do que qualquer decreto imperial. Cada jovem intelectual que lançam no desemprego faz mais pela censura do que qualquer index. Nem preciso pensar o que será da liberdade de expressão quando todos se puderem exprimir livremente, mas tão livremente que não existe ninguém para ouvir, não existe ninguém para reprimir, ninguém para abafar, nenhuma policia anti-motim, mas todos os dias que se deitarem na mediocridade das suas camas, se sentarem na miserescência das suas cadeiras de escritório, sentirão todo o peso da história, como a vida limita só por si, e tudo voltou a ser como dantes.








Casos pendentes

Quem é esse homem que tão apressado se dirige a parte alguma? Qual o seu nome? Qual a sua missão? Chama-se Joaquim, José, António, Manuel, Rodrigo, Frederico, Pedro, Adelino, Alberto, Cristiano, Carlos, Ricardo, Vítor, João, Tiago. Tem todos os nomes, todas as profissões e todos os desejos. Talvez porque todos os desejos, de toda a gente seja o seu, aderiu de forma hábil ao partido do governo. O partido que governa e que, de resto, é também o único. É um partido que pretende agregar todas as tendências e todas as aspirações dos cidadãos. Houve mesmo um teórico do partido que definiu a sua existência como anterior, mesmo em relação à própria sociedade. Antes dos homens se autorganizarem em grandes sociedades, as relações de força impunham já assunção de uma determinada política e uma vontade de poder a que podemos chamar partido. O partido é anterior a tudo e condição necessária de tudo. Chega então àquela fase da sua vida onde já não se pode ir muito além da perfeição, porque enfim, esse é o destino glorioso dos que enveredam pelo bom caminho. E o partido é isto, sou eu, tu, ele, as árvores, o chão que pisamos. Mas a política e as decisões que emana deverão, para que o povo nos ame, ser sempre algo de profundamente incógnito ao comum dos mortais. Diremos apenas esse FIAT, destruiremos, construiremos sobre o sangue dos nossos inimigos, façamos doutrina, separemos famílias, destruiremos vida, destruir-lhes-emos a vida, massacraremos, roubaremos até as o pão que têm sobre a mesa, as cuecas que têm para vestir, e eles adorar-nos-ão por isso. Por isso o homem só é capaz de amar aquilo que de alguma forma lhe é incompreensível.
Surgiu recentemente o rumor de que o partido quer refazer as suas bases, quer reorganizar a sua estrutura em ordem a prosseguir objectivos mais sólidos, sem recuos como aos que assistimos no passado. Só assim a nossa credibilidade sairá inabalável.
Quanto ao povo, a massa, o melhor é nem falar. Porque a vontade do partido é a vontade de todos, que se exprime na voz de um só homem. A voz de esse homem anunciou recentemente à porta fechada que é necessário refazer, reinventar. Disse que há alguns casos já decididos e outros pendentes.

Porque partem os comboios?

Porque partem os comboios a toda a pressa, e porque levam eles tanta gente? Porque há tanta gente tão apressada a ponto de viajar de pé, recusando inclusive o aquecimento, condição essencial num país tão frio como o nosso. Porque vão de armas e bagagens e as suas crianças choram, como se pressentissem que nunca mais voltariam? Porque é que se imprime nos olhos de todos uma expressão de abandono, de quem perdeu toda a esperança no que quer que seja. Se são já seres humanos, porque é que ninguém se contenta em ser simplesmente humano?
O nosso Querido-Líder compreendeu, antes de nenhum outro, que as pessoas devem estar em constante movimento. A única forma de estar do ser-humano é o constante movimento, e só esse movimento lhes permite fazer a limpeza histórica das suas memórias. Num território tão vasto como o nosso não parece ser difícil. A ingovernabilidade do nosso colossal país é apenas ilusória. Basta manter os comboios em movimento, e o tempo e o espaço farão o resto, tal como a natureza se governa por si própria.

Homens de gabardine

Quando Joaquim se levantou, cumpriu o seu hábito de correr as cortinas da janela do seu quarto que dá para a estrada. Foi sem surpresa e viu dois homens de gabardina preta, que fumam encostado a um carro do outro lado da estrada.
Tomou o seu duche do costume e defecou na sua não muito confortável sanita da minúscula casa-de-banho.
É escriturário, como toda a gente neste país… Este país vive de relatórios, e o relatório é a única coisa que parece alimentar a nossa imaginação. O relatório é uma espécie de rosário deste mundo moderno, onde a sua inalterável prosa constituiria, sem qualquer dificuldade, já um género literário menor. Tem a vantagem de transformar os homens em ilhas, ilhas remotas onde as únicas barcaças que nos permitem comunicar são esses relatórios em papel de imprensa, que circulam na segurança de envelopes lacrados transportados por fiéis mensageiros.
Quando sai para a rua sem que ninguém repare em si, não deixa de reter que o mundo moderno ensinou como nenhum outro a lição de cada um se meter na sua vida. Aprendeu, ele próprio, que as maravilhas da civilização são um pau de dois bicos – por exemplo, quantos tribunais não julgam hoje em dia pessoas inocentes? E não as condenam? E não as torturam? Quantas leis, regulamentos, directivas, circulares, não trazem mais a liberdade do homem pela lei mas a sua opressão sobre um tirano diferente? Não há duvida que o tirano é a espécie rara mais fácil de substituir, o que só por si é um paradoxo. Mas não há dúvida que a ciência e a tecnologia são um pau de dois bicos. Por exemplo, se não existissem automóveis não estavam agora aqueles dois sujeitos de gabardine encostados num; e se não existissem metropolitanos não me seguiam eles até ao metropolitano, sentando-se apenas alguns lugares atrás de mim, conversando baixinho, baixinho.

O telefone toca

Saiu do metro com bancos corridos almofadados, algo que penso ser um exclusivo da nossa cidade, ou melhor, da nossa sociedade. Pois foi aqui que o homem conheceu, primeiro que todos os outros o sabor da libertação do jugo das classes dominantes. Um poderoso fim de uma história repetida ad eternum nos séculos passados. Fossem os escravos, cansados da sua condição de objectos fungíveis que matavam os seus senhores para depois saborear o instinto da liberdade, esse que a sua condição de escravos desde o nascimento mantinha adormecido. Fossem os servos da gleba, caminhando sobre séculos de escuridão e de trabalho árduo, puxando o arado com a sua própria força sulcando o solo gelado das terras do senhor. De todos eles, cujos ossos jaziam em descampados após um massacre militar, novos valores e novos escravos e servos da gleba levantavam-se, lembrando-se que o homem fez-se para ser livre, que a exploração do homem pelo homem não é a condição da natureza, mas o seu oposto. Por isso eu amo o meu partido, porque foi o primeiro que deu o grito intelectual de todos esses nomes sacrificados pela história. Ainda que não tivessem nome, ainda que fossem apenas faces sem nome, nomes sem faces, corpos sem sombra, sombras sem corpos.
As escadas rolantes estendiam-se em direcção à rua num sentido vertical, demasiado vertical. O túnel do metropolitano fora criado fundo, demasiado fundo. Por isso quem subia pelas escadas rolantes tinha a sensação se ascender aos céus, neste caso à terra, o único céu possível. Mas porque não se contentam então em ser apenas humanos? Porque é que não chega ser humano?
É com o mesmo desejo de me fundir com a multidão, pois assim lograria o meu esconderijo, que me sento abespinhado na minha secretária, enquanto pensava em alguma razão válida para as coisas. Porque é que esta cidade, a Jerusalém dos tempos modernos, a Constantinopla das almas ateias, tem mais de dez milhões de habitantes e é precisamente para a janela do meu escritório que pasmam aqueles dois homens de gabardina? Porque é que esta chuva gelada de Outubro que começa agora a cair não dissolve tudo à sua volta, os seu edifícios e as caras das pessoas, tudo em desintegração, como que banhados por ácido. Talvez depois dessa chuvada esses homens já não estivessem aí e a minha alma teria algum descanso. Tudo é a tão indiferente a tudo, mas acredito que a única coisa que pode tirar o homem da indiferença é quando a sua vida corre perigo. Só um perigo mortal é capaz de provocar alguma reacção em alguém.
Sempre me ensinaram que esse perigo mortal provinha do exterior, e nós, o povo escolhido, encolhido no nosso enorme país continental seriamos sempre motivo de inveja e cobiça pelos nossos vizinhos. Que repetidamente tentariam anexar partes ou a totalidade do nosso território, e o perigo está em todo o lado. Está no Ocidente, está no Oriente, está no Norte e está no Sul. A Ocidente estão os outros que sempre invejaram a nossa prosperidade continental, e por isso nunca lhes invejamos a sua prosperidade ultramarina, que tão bem conhecemos sem conhecer. A Norte está o limite do globo, e aí o nosso inimigo é apenas o tempo, sempre ele, esse único e invencível que tudo devora. No oriente e no sul estão os bárbaros, que destruirão logo que possam a nossa próspera civilização que não conhecem.
Chega mais um relatório, e este traz uma pequena lombada vermelha, o que é sinal do alto grau de importância. O mesmo tempo que agarro com as duas mãos este relatório o telefone toca o seu uníssono estridente.
Atende, era o chefe, que diz que foi contactado essa mesma manhã para se apresentar na esquadra que o assunto era urgente, muito urgente, o caso grave, muito grave.

Uma ténue luz amarela

Quando cheguei ao escritório com as minhas mãos empapadas em suor apesar do frio que se faz sente já nesta altura do ano, a primeira coisa que me chamou a atenção foi um candeeiro pendendo to tecto com uma lâmpada de luz amarela, que iluminava de uma luz ténue as parede branco-sujo da esquadra. Porque é que nos momentos limite fixamos a nossa atenção nestes elementos sem importância? Porque é que as pedras e os muros e os edifícios e as casas e as estradas são indiferentes ao sangue e sofrimento que por eles passa? Olho para a Praça Vermelha, e onde precisamente hoje se faz uma esmagadora parada militar já morreram centenas de milhares de pessoas empaladas. O que é que significa tudo isto afinal?
No início, já sabíamos que confiávamos em alguns homens onde depositamos todas as angústias que trazíamos acumuladas. Fizemos do sofrimento o nosso modo de viver e da luta a nossa máscara. Quando pensávamos que era a hora de tirar a máscara já nos tínhamos desencantado de tudo, já tudo era igual, homogéneo, e haverá algo pior que ser homogéneo? Haverá dor maior que a de ser vulgar?
Essa ténue luz amarela que se instala nas almas, nos atrofia toda e qualquer palavra, que irradiada por essa luz parece pequena ou insuficiente. Foi essa luz amarela a primeira coisa que vi quando entrei naquele escritório. O mobiliário sóbrio e os símbolos pungentes do partido parecem indiciar aquilo que já todos sabemos. Que a vida é o partido e nada existe além do partido. Deus morreu, mas sabemos que ainda podemos contar com o partido, esse céu terreno que um dia se abaterá sobre nós.

Sobre certas e determinadas coisas

O chefe Parménides arrastou levemente a cadeira sentando-se confortavelmente. Olhei nos olhos os bustos dos nossos padroeiros, contemplei as suas testas longas e a forma como se demoravam ao fitar-me. O chefe dirigiu-se a mim num tom sereno, sem amor nem ódio. Apenas aquilo que deveria ser. Nesse mesmo tom calmo informou-me que tinha sido informado de certas e determinadas coisas que me comprometiam seriamente em relação à minha fidelidade com o partido e com a nação. Não respondi. “De maneiras que”, continuou, tenho aqui um documento que circunstancia todos os factos relativos a essa situação. Como pode reparar, aqui, no final, encontra-se um termo de responsabilidade, o qual deve assinar. Um confissão, portanto. O que pretendem é que eu assine uma confissão, um termo de culpa por certas e determinadas coisas.

Para quê, a culpa?

Acabada a sua prelecção, o chefe perguntou-me se tinha algo a dizer sobre o que ali constava. Os escrivães debruçam-se diligentemente sobre os seus cadernos para iniciar o relato. Respondi que não tinha conhecimento de nada do que ali constava. Respondi que sempre tinha sido inteiramente fiel ao partido e aos seus princípios, que tinha cumprido escrupulosamente tudo o que me tinham ordenado, inclusive, alguns processos semelhantes àquele a que agora me submetem. Sim, também eu, em tempos, fui encarregado deste tipo de processos. Na altura, tratou-se tão só de “despachar” X número de burgueses da região Y, que, não obstante o seu comportamento anti-social e inimizade para com toda a causa humana, refugiando-se apenas nos seus interesses pessoais, foram submetidos ao due process of Law, porque o nosso país é um país civilizado, não como esses países bárbaros de mongóis onde se mata por tudo e por nada. Aqui matamos, mas os acusados têm a oportunidade de apresentar as respectivas observações.
“Se conheces assim tão bem o nosso procedimento”, acrescentou o chefe, “sabes melhor do que ninguém o que aqui está em causa…”. Sim, sei o que está em causa, o que está em causa é o meu desaparecimento. Precisam que eu desapareça… Mas se eu sempre fui fiel ao nosso partido e à nossa causa… “Se és assim tão fiel ao teu partido e à causa, assinarás este termo de culpa, ainda que sem culpa, porque é isto que o teu partido exige de ti”. Se os meus superiores e o meu partido exigem de mim esta confissão, se eles determinaram que eu deveria ser alvo deste processo, certamente que terão boas razões para isso. Eles sabem o que fazem. Assinei.