domingo, 12 de maio de 2013

Cartas Anonimas a Saint-Beuve



Exmº Senhor,

Encontro-me perdido. A verdade sobre toda a perfídia do meu carácter acaba de se revelar em numerosos romances, antigos e modernos. Acredite que, por muito queira convencer-me do contrário, não passo de um arrivista miserável. Bebi no leite materno a ambição de aspirar a um lugar que, pela natureza e ordem das coisas, não me cabe, e tudo que à natureza pertence à natureza volta. Não passo de um biltre.

Por muitos e variados artifícios procurei disfarçar a minha cobardia de racionalidade, altos princípios que tudo fazem tremer, Hoje, acredite, é mais honrado que eu o insignificante filho de aristocrata empobrecido, pela natureza das coisas.

A luta de classes existe e é plausível. Fui um agente activo, aos olhos da história, dessa infatigável luta pela poder. Os livros marxistas revelaram, para além de toda e qualquer dúvida razoável, que pertenço a uma classe social condenada. Os pobres serão sempre pobres e os lacaios serão sempre lacaios.
Vi os filmes da Nouvelle Vague de fio a pavio, conheço as subtilezas do cinema noir, encontro-me perfeitamente adestrado a identificar as diferentes as características do cinema mudo alemão.

Porém, (e como esta adversativa pesa como chumbo na minha vida), adoro os filmes do Brian de Palma e todo aquele sangue a jorrar. Compreendo o Scarface, como esse vulgar criminoso, cuja vida inteira foi um enorme bluf, chegou ao topo da cadeia alimentar e como se viu tão só numa mesa do restaurante mais caro de Miami, com a mulher mais bela dos arredores, fumando puros de duzentos dólares, embriagado de dinheiro da cabeça aos pés e se perguntou: “Mas a vida é isto?”, como quem diz: foi por isto que vendi a alma ao diabo, que matei, violei, corri o perigo das ruas? Hoje compreendo Tony Montana. Não aguentou o topo, como não aguentam o excesso de oxigénio todos aqueles que fazem uma escalada vertiginosa na cordilheira dos Andes. O que é da natureza, à natureza volta.

Admito que a máquina a vapor apenas obnubilou uma realidade insofismável. Serei sempre um miserável camponês que um dia foi à cidade e se fascinou com os carros de alta gama, com as mulheres de faces frescas e longas pernas bronzeadas, com as casas de fachada kitsch e conforto fácil. É mil vezes merecido esse conforto, mas apenas aos que o merecem pelo seu nascimento. Nunca poderei apagar o estigma de bosta do meu nascimento. Impressionou-me demasiado a violência com que as coisas se dizem e fazem nos meios rurais. Fragilizaram-me o alto magistério dos padres, as saladas de vinho que os pobres faziam (que belo espécimen culinário este, hein?), as caminhadas dos patetas alegres ao longo da praia nos domingos pachorrentos.

A realidade, com toda a justeza, empurra-me de volta para o meu lugar e eu não gosto disso. Queria outra coisa, algo diferente, e por isso estou em vias de organizar um sindicato de assistentes administrativos para abalar as fundações deste mundo e do outro.

Queria outra coisa. Queria não ter horários para acordar e para deitar. Desejo ardentemente o ócio, as longas tardes solarengas nas esplanadas de Lisboa a beber licor e ver as estrangeiras a passar.

O Império estúpido das máquinas a que hoje chamamos capitalismo, prolongou a vida a pessoas inúteis como eu. A vida artificial engana assim a verdadeira vida, aquela que a natureza elege, mas o que à natureza pertence à natureza volta. “Ela” acabará por cobrá-lo.

Têm razão os filhos do papá disfarçados de revolucionários que dizem que não passo de um pelintra de fato e gravata, apenas de presente histórico. Dizem que a minha missão será conduzir a resolução durante breves momentos até à vitória final do proletariado. Aqui chegado, dizem eles, será meu dever e de grande honra oferecer a minha cabeça à guilhotina.

Têm razão os puristas que asseveram que a pintura morreu com Rafael, que a arte pertence a Rafael, que é coisa mui nobre e que se encontra irremediavelmente corrompida desde a Revolução Industrial, que a Revolução Industrial só produziu agiotas, guerras e nados mortos. Que era melhor a vida quando as mulheres se limitavam a ser mães e esposas, os moços de cavalariça a ser moços de cavalariça e os nobres a ser nobres. Os nobres deveriam e têm direito a exigir. É neles que reside a alma da pátria. A Igreja só o será, portanto, enquanto cumprir a sua missão ancestral de secundar e justificar os direitos de nobreza. A Revolução Industrial é má, os Suevos, os Visigodos e outros povos altos e loiros são bons. Os povos do sul são maus. O próprio Átila não aguentou com a máquina do Império… Não admira, não passava de um mongol a tentar conduzir um Ferrari.

Despeço-me, Exmº Senhor, desejando-lhe que a presente o encontre de saúde e perdoe a este humilde servo quaisquer excessos que pela minha natureza possa encontrar nesta missiva.
Com redobrados cumprimentos,
Seu, M.