Exmº Senhor,
Encontro-me perdido. A verdade sobre toda a perfídia
do meu carácter acaba de se revelar em numerosos romances, antigos e modernos.
Acredite que, por muito queira convencer-me do contrário, não passo de um
arrivista miserável. Bebi no leite materno a ambição de aspirar a um lugar que,
pela natureza e ordem das coisas, não me cabe, e tudo que à natureza pertence à
natureza volta. Não passo de um biltre.
Por muitos e variados artifícios procurei disfarçar
a minha cobardia de racionalidade, altos princípios que tudo fazem tremer,
Hoje, acredite, é mais honrado que eu o insignificante filho de aristocrata
empobrecido, pela natureza das coisas.
A luta de classes existe e é plausível. Fui um
agente activo, aos olhos da história, dessa infatigável luta pela poder. Os
livros marxistas revelaram, para além de toda e qualquer dúvida razoável, que
pertenço a uma classe social condenada. Os pobres serão sempre pobres e os
lacaios serão sempre lacaios.
Vi os filmes da Nouvelle
Vague de fio a pavio, conheço as subtilezas do cinema noir, encontro-me perfeitamente adestrado a identificar as
diferentes as características do cinema mudo alemão.
Porém, (e como esta adversativa pesa como chumbo na
minha vida), adoro os filmes do Brian de Palma e todo aquele sangue a jorrar.
Compreendo o Scarface, como esse
vulgar criminoso, cuja vida inteira foi um enorme bluf, chegou ao topo da
cadeia alimentar e como se viu tão só numa mesa do restaurante mais caro de
Miami, com a mulher mais bela dos arredores, fumando puros de duzentos dólares, embriagado de dinheiro da cabeça aos pés
e se perguntou: “Mas a vida é isto?”, como quem diz: foi por isto que vendi a
alma ao diabo, que matei, violei, corri o perigo das ruas? Hoje compreendo Tony
Montana. Não aguentou o topo, como não aguentam o excesso de oxigénio todos
aqueles que fazem uma escalada vertiginosa na cordilheira dos Andes. O que é da
natureza, à natureza volta.
Admito que a máquina a vapor apenas obnubilou uma
realidade insofismável. Serei sempre um miserável camponês que um dia foi à
cidade e se fascinou com os carros de alta gama, com as mulheres de faces
frescas e longas pernas bronzeadas, com as casas de fachada kitsch e conforto fácil.
É mil vezes merecido esse conforto, mas apenas aos que o merecem pelo seu
nascimento. Nunca poderei apagar o estigma de bosta do meu nascimento.
Impressionou-me demasiado a violência com que as coisas se dizem e fazem nos
meios rurais. Fragilizaram-me o alto magistério dos padres, as saladas de vinho
que os pobres faziam (que belo espécimen culinário este, hein?), as caminhadas
dos patetas alegres ao longo da praia nos domingos pachorrentos.
A realidade, com toda a justeza, empurra-me de volta
para o meu lugar e eu não gosto disso. Queria outra coisa, algo diferente, e
por isso estou em vias de organizar um sindicato de assistentes administrativos
para abalar as fundações deste mundo e do outro.
Queria outra coisa. Queria não ter horários para
acordar e para deitar. Desejo ardentemente o ócio, as longas tardes solarengas
nas esplanadas de Lisboa a beber licor e ver as estrangeiras a passar.
O Império estúpido das máquinas a que hoje chamamos
capitalismo, prolongou a vida a pessoas inúteis como eu. A vida artificial
engana assim a verdadeira vida, aquela que a natureza elege, mas o que à
natureza pertence à natureza volta. “Ela” acabará por cobrá-lo.
Têm razão os filhos do papá disfarçados de
revolucionários que dizem que não passo de um pelintra de fato e gravata,
apenas de presente histórico. Dizem que a minha missão será conduzir a
resolução durante breves momentos até à vitória final do proletariado. Aqui
chegado, dizem eles, será meu dever e de grande honra oferecer a minha cabeça à
guilhotina.
Têm razão os puristas que asseveram que a pintura
morreu com Rafael, que a arte pertence a Rafael, que é coisa mui nobre e que se
encontra irremediavelmente corrompida desde a Revolução Industrial, que a
Revolução Industrial só produziu agiotas, guerras e nados mortos. Que era
melhor a vida quando as mulheres se limitavam a ser mães e esposas, os moços de
cavalariça a ser moços de cavalariça e os nobres a ser nobres. Os nobres
deveriam e têm direito a exigir. É neles que reside a alma da pátria. A Igreja
só o será, portanto, enquanto cumprir a sua missão ancestral de secundar e
justificar os direitos de nobreza. A Revolução Industrial é má, os Suevos, os Visigodos
e outros povos altos e loiros são bons. Os povos do sul são maus. O próprio
Átila não aguentou com a máquina do Império… Não admira, não passava de um
mongol a tentar conduzir um Ferrari.
Despeço-me, Exmº Senhor, desejando-lhe que a
presente o encontre de saúde e perdoe a este humilde servo quaisquer excessos
que pela minha natureza possa encontrar nesta missiva.
Com redobrados cumprimentos,
Seu, M.