quarta-feira, 23 de novembro de 2011

9- A Gaiola Dourada

No dia em que desapareceu A. Tomic, ninguém estranhou a sua falta no café da esquina, que religiosamente visitava às quinze horas. Apenas o copeiro, o virtuoso Sr.K, alçou a mão para tirar uma imperial no momento exacto em que Tomic a costumava pedir, mas dando falta do freguês logo se entreteve com outras coisas.
Podemos dizer que na pacata cidade de J. a ausência prolongada e, por vezes definitiva, de um dos paisanos, é considerada normal, senão mesmo desejável aos olhos de quem manda lá no sítio. A este propósito, convém acrescentar o vigor e persistência com os líderes apregoam as vantagens do desaparecimento. Mas a verdade é que são raros os testemunhos do além que nos possam afiançar do que quer que seja. Os poucos que regressam limitam-se a pronunciar uma ou outra palavra sem nexo, e são ainda menos os que podem formar uma frase completa como: “ninguém nos vê, ninguém nos conhece”.
Precisamente pelo seu carácter dúbio, estas asserções não nos permitem pôr em causa a versão oficial. Pois se são tantos os que não voltam, é quase seguro que algo de muito especial existe para aquelas bandas.
Há quem prefira ficar, mas sublinhe-se, duas vezes, quem quiser partir é sempre livre de o fazer.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

8- Just like a Game

Tudo correu como o previsto. A neve caiu, o inverno foi-se, voltou a primavera com as minhas crises alérgicas irritantes. Não é maravilhoso quando tudo corre como previsto? Nem me espantou de ver durante o sono o implacável coordenador da empresa Y saltar à corda. Parecia divertir-se. Com um sorriso indicava um pequeno ecrã de fundo negro no centro da sala. Nele saltitavam sequências de números e equações a um ritmo vertiginoso. Uma sala enorme, diga-mos que com umas boas centenas de lugares (pergunto-me se os da retaguarda viam o que se passava no ecrã). Assistiam os homens impávidos. De resto, nada de especial… como previsto. O cão persegue o gato, o gato persegue o rato, o rato o escaravelho. E a toupeira? Diz-se que nos dias felizes oferece o lombo a umas mordidas. Mas regra geral, diga-se, regra geral, não tem predador na imensa cadeia alimentar.
Entre toda esta monótona violência, apenas o coordenador implacável goza um bom bocado: « Bora lá rapazes”, “Just like a game”, diz extasiado.

domingo, 6 de novembro de 2011

7- Os dissabores de um vencedor

Ninguém escreve nada para si próprio. Ninguém o é para si próprio.
Posto isto e por isto, depois de um acidente que me molestou severamente as pernas, resolvi dar um revés no destino. Procurar dentro de mim as forças que são a chave de saída do impasse físico. Mas não o fiz só por mim. Fi-lo por todos.
Resolvi adoptar a luminosa ética empresarial em todos os componentes da vida de um Ser-Humano. Assim como é possível optimizar os recursos de uma empresa com vista à melhoria até ao infinito, a vida quotidiana pode tirar proveito dessa maravilhosa lógica.
Encontrar a redenção em diagramas de felicidade. Foi assim que nasceu o coaching e os seus frutuosos rebentos: o polígono da vida, o pentágono do amor, o trapézio dos negócios. Foi assim que me autopromovi em especialista da felicidade. Foi assim que a minha noiva me deixou depois de termos feito amor um sem-número de vezes. Na nossa última conversa, insinuou que quando o fazíamos, tudo não passava de uma espécie de masturbação a dois, sem verdadeira entrega – aqueles momentos – que entre nós se tornaram numerosos e permanentes, em que vemos o outro como uma realização da nossa fantasia. Tudo muito complicado, não é verdade?
Depois… depois era vê-la passar na rua… perdida… irremediavelmente perdida, perguntando-me que força era essa que me impedia de a beijar e apalpar-lhe o rabo, coisa que nem vinte e quatro horas antes eu faria impunemente. Tudo muito complicado, não é verdade?