Eu e a minha miúda gostamos muito um do outro. Porém, ao contrário do que se possa pensar (e pensa-se tanto hoje em dia!), esta relação a que eu chamo, sem mais delongas, de uma relação de amor, não nasceu espontaneamente, como uma flor de alecrim brota da terra nas condições mais inóspitas. Foi apenas depois de uma aturada reflexão, e sobretudo muito civismo de ambas as partes, que chegamos a um ponto que em economia chamamos de “ponto óptimo”.
Passo a contar.
Desde muito cedo compreendemos que éramos profundamente diferentes. Ela gosta de pintura. Eu sei disso. Eu tenho um fascínio genuíno por dinheiro e gente rica. Ela também sabe disso. Embora tudo apontasse para um choque imediato de personalidades, as nossas almas sentiram que ninguém, por si só, é compatível com um único ser humano em todo o nosso vasto e azul planeta. Cognoscentes desta realidade, resolvemos alargar deliberadamente as nossas esferas de individualidade, unindo-nos apenas nas ocasiões estritamente necessárias, digo, estritamente necessárias. Quando quero sair saio. Não dou satisfações a ninguém. Ela tem a mesma liberdade. Por isto mesmo, o tempo que passamos juntos é sempre maravilhoso e cheio de novidades, incólume a toda essa pestilência sentimental de que se nutrem as relações doentias.
Não contamos as nossas desilusões, nem os nossos desejos. Mesmo as nossas virtudes parecem sair discretamente pela porta das traseiras quando nos inebriamos apenas com a presença um do outro. Foi desta engenhosa maneira que racionalizamos a nossa relação.
Às vezes ela chega tarde e embriagada. Deduz, presumo, que àquela hora já estarei a dormir o sono dos justos. Mas não. Tenho o péssimo hábito (que nunca lhe contei), de acordar todos os dias, pontualmente, às seis horas da manhã, deixando o meu corpo repousado na cama até à hora de ir para o trabalho, enquanto a minha mente vaguei pelos locais mais insuspeitos. Sinto que ela se aproxima da cama e me observa, embora eu não a veja. Quando finalmente se deita, depois de arrastar vagarosamente as suas roupas para fora do corpo, uma miscelânea de cheiros invade o nosso leito quase conjugal: álcool, tabaco (muito) e sexo (muito). Percebo imediatamente que anda a dormir com outro ou outros homens. Não lhe pergunto nada nem a censuro por isso. Afinal também não sou nenhum santo.
Recordo que acontece também o contrário. Quando chego a casa e a encontro prostrada no sofá, sei imediatamente que algum dos seus encontros furtivos falhou à última da hora, facto que, por um milésimo de segundo me provoca aquilo a que vulgarmente se chama prazer. Ela pergunta-me qualquer coisa muito rápida, e quando ouve uma qualquer sms chegar vitoriosa ao meu telemóvel, sinto no seu olhar algo a que podemos chamar ciúme, embora se desvaneça rapidamente.
Foi num desses momentos em que, não há muito tempo, resolvi partilhar o sofá com ela. Coloquei-me por detrás e abracei-a. Tentei-a beijar e ela recusou. Conformado, encostei o meu ouvido ao seu peito, e pareceu-me mesmo que ouvia uma espécie de gotejar inaudível na sua respiração. Essa cadência fluía para um charco sem fundo, de onde se esvaía uma fumaça que rapidamente inundava a sala de estar. Nela pairavam nomes sem corpo, corpos sem nome… vidas e indulgências fingidas. Senti-me como que aturdido. Levantei-me bruscamente e dirigi-me à varanda para fumar um cigarro. Enquanto assim fazia, pensava em como as grandes cidades e civilizações forjaram os seus gloriosos impérios em planícies e vales ricos em água, que só por um grande acaso normalmente se localizam sobre falhas tectónicas, locais de risco elevado para a ocorrência de sismos e erupções vulcânicas. Pensava também nos mistérios do corpo e do ser humano, e de como neste século em que graças às maravilhas da ciência médica, nos achamos condenados a uma longa vida. Na minha mente, milhares de terminações nervosas e fluxos arteriais teciam o labirinto infinito do ciclo vital, enredado num fluxo agora muito bem conhecido da ciência, ao mesmo tempo que pensava que fenómenos raros como a alergia à água (algo insólito tendo em conta que o nosso corpo é constituído em sessenta por cento deste elemento), continua tão misterioso como há quinhentos anos atrás.
O último episódio que guardo destas demonstrações de fraqueza aconteceu quando há pouco ela se cruzou comigo. A pobre não me viu, nem podia ver uma vez que uma larga avenida nos separava. Reparei nela por acaso. Vi que se entretinha a olhar para uma montra qualquer, com ar inocente e distraído. Nesse momento senti um abalo e um aperto enormes no peito que por pouco não me fez desfalecer. Nauseado, agarrei-me a um poste de iluminação pública e tentei recuperar o equilíbrio. Durante breves segundos, o meu cérebro implodiu num turbilhão terrível, até que me restabeleci. Voltei a cabeça para o local onde a vira, recobrei os sentidos e a vida voltou ao seu trilho.
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
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