sexta-feira, 23 de julho de 2010
III – Trivialidades
Foi por acaso que à chegada encontrei o meu amigo F na primeira esquina da avenida principal. F surpreendeu-me com uma série de perguntas para as quais parecia ter resposta, ou melhor, as perguntas eram de tal forma insondáveis à percepção do comum mortal que a resposta parecia residir unicamente ali: em F. F, a grande resposta, o da visão acutilante, atavismo do guerreiro que em tempos de paz afoga as mágoas no álcool, a pobre camponesa que na cidade perdeu o rosadinho das faces, isto, aquilo e mais aquilo, isto, isto e mais aquilo. Falou-me dos progressos da ciência e de como esta resvala paradoxalmente para o ocultismo, ciência e ocultismo, pois, porque a ciência sem a fé é cega, é cega, percebes? Fala-me das montanhas de vidro e de aço e de personagens e de cortes e de austeridade e de cintos que apertam e fronteiras que alargam e culpa! Meu Deus, a culpa...Se te calasses F, falar-te-ia de uma aldeia, uma olaria, um rio. Falar-te-ia de casas de louça, festas populares, vinhos a escorropichar da pipa, carne a assar, fé, porque não, mas não a grande fé, apenas a pequena, essa pequena fé de cada um que resolve os pequenos problemas do dia-a-dia: essa que cura as dores de costas, a que alivia as dores de dentes, que ajuda a vizinha a tirar a carta de condução. Falar-te-ia no bêbado da aldeia ( como os há em todas as terras que conheço), no padre que apela à abstinência (até da masturbação, vejam lá!), o solteirão e solteirona do sítio, e vá-se lá saber as razões porque nunca casaram. Depois, se fores um bom menino, F, e te calares um pouco, falar-te-ia das moças bonitas da aldeia e digo-te, meu amigo, que ainda que o não pareça são muito mais arrojadas do que as da cidade. Verias as motas e o seu soar estridente, os bois, o cheiro a estrume, as velhinhas, as mulheres bigodudas, as mal e bem casadas, a chegada dos imigrantes em Agosto, os sapatos de domingo brilhantes de verniz, a meia branca a contrastar, os rebuçados embrulhados em papel vegetal, as discotecas de domingo à tarde, os banhos no lago da aldeia, os amores de verão, esses, eternamente desavindos e eternamente desfeitos e refeitos. Falar-te-ia de todas essas coisas. Essa história interminável sem passado e sem futuro. Invejo a ignorância com que se passa pelas coisas, a magia com que todas as desgraças do mundo passam como leves brisas nos rostos inexpressivos. Tanto faz, rei ou presidente, que a bolsa desça, suba, rodopie, e a minha opinião do mundo fosse sempre essa, o lado histórico que une os crentes e acólitos. Descansa que será um dia essa mesma história que nos julgará a todos, sábios e tolos, na vala comum das datas e factos. O esquecimento. Amantes da mesma mulher, quiçá, o limbo dos apaixonados de onde apenas podemos sussurrar: sabes, querida, o que fazemos aqui, andamos praí, na luta. Somos sempre os mesmos e a causa também não inova, juntos, aqui, na luta. Seria melhor que nos cuspissem e insultassem na rua, esses ilustres desconhecidos, ou então violassem a nossa amada diante dos nossos olhos, ou nos sentássemos no comboio para a Ilha de Malmequer onde cultivaríamos o sorriso das revistas côr-de-rosa, ou o sorriso dos meninos esfomeados do Haiiti depois de uma bela refeição. Poderíamos visitar o Haiti, por acaso, o clima é bom. Se afinal o Bom Deus nos desse sol e praia e miúdas descascadas toda esta confusão tornar-se-ia clara como água. Pode ser que o estado nos ponha todos a passear, nós, os eternamente jovens, os resistentes, hein? Cerejeira fez um bom trabalho, apenas em vez de prostrarmos o joelho vaidoso na missa de domingo alardeamos títulos e prémios e coisas, coisas e coisas.
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