I- Uma vida série B
Já vi tantas coisas estranhas que no entanto conheço tão bem…
Quando não temos dinheiro, até os cães nos mijam nas pernas. Isto é mais verdade em Nápoles do que em qualquer outra cidade que conheço.
Nasci em Génova, famosa cidade do Norte de Itália. Apaixonei-me por Nápoles ainda sem a conhecer. Sempre me disseram que Nápoles era um lugar de perdição, por isso, talvez a força centrípeta que me atraía a Nápoles fosse o meu próprio desejo de auto-esquecimento. O paraíso e o inferno, o tudo e o nada, no mesmo lugar. Poderá haver algo mais fascinante do que isto?
A minha paixão por essa Nápoles ainda desconhecida fez com que galgasse num comboio apertado a península Itálica em direcção ao sul. Cheguei à Estação Garibaldi em plena hora de ponta numa tarde de Outono. O céu estava muito nublado e o tempo seco, como que a adivinhar chuva.
Apenas duas breves impressões da primeira vez que coloquei os pés em solo napolitano: primeira, não fui assaltado, como advertiram insistentemente os meus amigos mais zelosos. Segunda: a agradável confusão – a calma azáfama da Piazza Garibaldi. Ainda hoje me parece impossível como o caos pode ser tão calmo, como todo aquele amontoado de carros sem direcção definida, peões abnegadamente prostrados na estrada, o barulho ensurdecedor do rufar das motos, a poluição… meu Deus, a poluição! Tudo flui numa calmaria incessante, como se o tempo não existisse ou fosse uma coisa puramente suprível, como se a cidade tivesse a sua própria noção de tempo.
Saí do recinto da estação e apanhei um táxi na praça adjacente. Bom, quando disse que não fui assaltado em Nápoles estava a ser benevolente com a fama desta cidade que tanto amo. Na verdade, fui assaltado, mas não de arma em punho e rangeres de dentes ameaçadores. Antes com sorrisos e conversas corriqueiras intercaladas com palavrões e maldições em dialecto: o taxista. No curto percurso que vai da Estação Garibaldi à Via dei Tribunali, onde tinha o quarto reservado, o maldito (com um palito na boca e um sorriso desdentado) cobrou-me nada menos que 40 euros! Mamma mia! Che coglione! Primeiro pensei dizer-lhe que não pedira uma visita turística, depois pensei perguntar se o preço incluía uma noite com a sua esposa. Calei-me. Paguei.
Não trazia na mala nenhum objectivo ou aspiração, quando cheguei a Nápoles (nem era suposto que assim fosse). Pretendia apenas deixar-me fluir na multidão e deixar que as intricadas malhas do acaso me envolvessem. Trazia alguns “trocos” juntos de Génova, amealhados com o suor do meu trabalho e algumas pequenas privações. O plano era simples: fruiria do meu dinheirito acumulado, depois logo se via. Se gostasse, pensaria arranjar trabalho e ficar por lá “uns tempos”. Se não gostasse, voltaria para Génova com o rabo entre as pernas.
Empreendi assim, de imediato, o meu auspicioso “não-plano” de dolce fare niente. O meu trabalho seria esse: não fazer nada. O tempo viria a mostrar-me que Nápoles é uma cidade mais dura do que generosa, mesmo para quem não faz nada.
A primeira vez que me fiz ao caminho na minha rua, a via dei Tribulani, excluindo o dia em que cheguei, em que a vi apenas de relance, esse primeiro dia, nunca o esquecerei. Era estranha a sobreposição de realidades que comportava aquele espaço. As belas e decadentes arcadas à minha esquerda, o comércio tradicional, os motorini a toda a velocidade, passam tão perto de mim que me basta erguer o braço para assoar o nariz para lhes tocar. Virei à esquerda na Via Nilo, cercada de altos palazzi com a roupa a secar, alguns de estrutura estalada pelo terramoto dos anos 30. Cheguei à Spacanapoli. A primeira vez que ouvi o nome dessa famosa avenida napolitana pareceu-me ouvir “scapanapoli”! Uma avenida enorme cortando a cidade antiga em duas, cheia de vida, estudantes, turistas, motorini, pedinchões, ociosos… um pouco de tudo. Segui um pouco em frente e encontrei a Piazza Gesú. Continuei e encontrei a não menos famosa Via Toledo ou Via Roma, como lhe chamam os locais. Dei o meu primeiro passeio na Via Roma, apinhada de gente caminhando a passo de caracol (o que me custou, uma vez que tenho o hábito de andar rápido), com o vetusto quartier Spagnolo à minha direita. Já no fim, encontrei a Piazza Trento e Trieste, e a via Chiaia à minha direita. Mesmo em frente, o Palazzo Reale e a Piazza Plebiscito. Que monumentalidade! Que imperialismo! Caía a noite. Fui jantar ao restaurante com a melhor relação qualidade/preço que o meu guia recomendava: O restaurante Nennella, no Quartier Spagnolo. Muito bom, de facto.
Costuma também dizer-se que Nápoles pertence à chamada “Itália série B”. Logicamente que este chavão pressupõe que a Itália série A seria a Itália do Norte, de Roma para cima, bem entendido. Temos assim uma Itália do Norte industrial, cosmopolita, esquecida das suas origens para abraçar unicamente o italiano como língua. A Itália do Sul, a Itália dos terrani, será aquela Itália a que alguns também chamam de esquecida, não só porque o poder central, o Estado, essa categoria de facto tão estranha a tantos italianos, a tinha esquecido, a da industrialização incipiente, crime organizado, a pizza, o falar aparatoso. Não interessa! Optei pela Itália série B.
De resto, a minha escolha não é assim tão estranha no cômputo geral das minhas opções de vida. Sou aquilo a que poderiam chamar: um falhado bem sucedido. O que será isso de um falhado bem sucedido? Em que consiste? Consiste precisamente no facto de que, desde o fundo da minha alma, nunca desejei outra coisa a não ser o falhanço. Poder-se-ia dizer que este tipo de opções irreflectidas são coisas de juventude, devaneios… Não me parece! Tão simplesmente pelo facto de que nesta altura do campeonato levo já 28 anos de idade e nenhuma perspectiva de vida, pelo menos no sentido vulgar do termo. O facto essencial é que, por via popular ou erudita, o termo falhado assenta-me como uma luva. O meu pai disse-me que eu era o típico caso da montanha que pariu um rato. Não o censuro… A extraordinária sensação de conforto que sinto na pele de falhado até a mim me apavora. Imagino então o que suscitará aos que me rodeiam.
Começo mesmo a imaginar-me neste papel como um estóico resistente ao sistema, esse que nos impõe objectivos, metas, modelos de vida. A inteligência desta opção consistirá precisamente nessa resistência passiva. Imaginava-me já a passar junto aos meus companheiros de luta, isto é, os amigos de faculdade, e todos me cuspiam, ou pior, olhavam com piedade. Dir-lhes-ia: “Isto sou eu!”. Afinal, serão as nossas angústias muito diferentes? Será diferente a angústia do que não tem dinheiro para uma refeição decente, daquele outro que não tem dinheiro para comprar o fato de marca, mas tão só a imitação? Não me parece. Qual será então a diferença, comparando a angústia do tédio do italiano do norte daquela do italiano do sul, privado de oportunidades, ostracizado no próprio país, imerso na precariedade e na insegurança? Nápoles ensinou-me que esta pode ser extremamente tonificante - quiçá, a vida em risco não é o nosso estado etéreo de felicidade?
Na manhã seguinte saí para comprar um pouco de pão e um bilhete postal para enviar à minha querida Francesca. Cheguei à padaria e pedi cinco pães. Fui enganado descaradamente. Vi perfeitamente que o funcionário me cobrou mais sessenta cêntimos pelo pão, pelo menos segundo as minhas contas e tendo em conta o preço que havia cobrado ao cliente que me antecedeu. Como se não bastasse a infâmia, tentou ainda enganar-me no troco. Não aguentei. Reclamei. Depois de alguma hesitação e alguns franzires de cara pró-forma, o funcionário lá concordou em devolver-me o troco justo, ainda que não do preço justo. Saí irritado. Fui ao pequeno quiosque comprar o postal que já havia visto no dia anterior. Tinha duas pessoas à minha frente. Uma terceira pessoa chegou e tomou a dianteira de todas as outras. O espantoso é que, enquanto o fazia, não mostrou qualquer pudor, qualquer hesitação. Fê-lo como se, de facto e de iure, estivesse pré-destinado a fazê-lo., como se fosse tão natural como as leis da física. Desta vez não reclamei. Pois os meus dois consortes tomaram a iniciativa, irrompendo em vociferações violentas. Facto espantoso: o prevaricador não se acanhou, não vacilou (como seria de esperar). Antes contra-argumentou como se, ainda na ordem natural das coisas, existisse algum argumento válido no direito natural ou positivo, capaz de sustentar tal atitude.
Ainda um pouco aturdido pelo sucedido, empreendi caminho em direcção ao autocarro, via Garibaldi. Quando entrei no autocarro, munido do respectivo título, introduzi-o na maquineta para efectuar a respectiva validação. Feito isto, voltei a face para os ocupantes do autocarro e percebi que muitos deles olhavam para mim esboçando um leve sorriso. Confesso que fiquei um pouco perplexo com isto, pelo menos até ao momento em que compreendi a razão de ser daquela empatia inusitados dos passageiros para comigo. Compreendi quando o revisor entrou no autocarro, já a poucas paragens da estação Garibaldi, e em virtude disto a maioria dos ocupantes do autocarro se precipitou apressadamente para a saída. Viajavam sem bilhete. Curiosamente, como quem já sabe o que o espera, o revisor aguardou mesmo alguns momentos junto ao motorista que os prevaricadores saíssem, como se também isso estivesse na ordem natural das coisas. Tudo isto me leva a pensar que, em Nápoles, o prevaricador goza de um reconhecimento e compreensão que não se encontra em mais lado algum. O acto de prevaricação é encarado como um reflexo legítimo de sobrevivência. Não consigo encontrar outra razão para tal reconhecimento.
II – C’e festa à Pagani
Encontrei a estação Garibaldi de sempre, ambígua entre um burburinho de gente interminável em desolação constante. Apanhei o próximo circunvesuviano em direcção a Pagani. Era dia de festa lá, pelos vistos. Era a chamada festa popular da Madona dei Galini. Segundo a lenda, algumas galinhas embrenhadas na sua rotina animal descobrira o quadro de uma Madona enquanto bicava laboriosamente o chão. Alguns testemunhos da piedosa cena teriam atribuído tal facto a um milagre, de maneira que todos os anos, por essa altura, se organizava a procissão da Madona dei Galini.
Apenas algumas curiosidades em relação a esta festa. Em primeiro lugar, é sabido que a fé não se renova sem o elemento de culto por excelência: o milagre. Ora, o milagre da festa consistia precisamente na procissão. O andor em que era transportada a Madona era constituído por uma base, espécie de mini-capoeira. Segundo as fontes locais, as galinhas não se moveriam durante toda a procissão, mantendo-se assim submissas, aninhadas durante todo o cortejo. A assegurar-se do regular funcionamento do milagre, um grupo de varões zelava em torno do andor durante toda a procissão tapando-o com os seus corpos. Assim que algum espectador temerário se aproximava de forma um pouco mais suspeita do andor, este olhavam-no com um olhar furioso, tapando-o com zelo redobrado. Alguns espectadores afluíam ao andor a passo apressado, desejosos de lhe tocar, tocar na Madona. Assim que o faziam benziam-se logo de seguida. A procissão seguia assim a passo não apressado ao som do ribombar dos tambores e do som estridente da orquestra. Era curioso ver a coexistência pacífica entre o entusiasmo, o barulho caótico e o espírito piedoso. Pareciam dois mundos completamente inconciliáveis que aqui, em Pagani, coexistiam. Falo, pelo menos, em comparação com as suas congéneres mediterrânicas, nomeadamente as ibéricas, que tive oportunidade de conhecer de perto. Nestas, o espiritual, o profano e o piedoso parecem conter-se, mostrando dificuldades em micigenar-se. Veja-se um procissão na semana Santa em Espanha, nas localidades mais conservadoras. Nela tudo é pesar, negro, desejoso de sangue e de sofrimento. A alegria é mesmo vista com rancor. Algo de semelhante se poderia dizer em relação às procissões da Semana Santa em Portugal. Nestas, não é tanto o desejo de sangue e de sofrimento que se respira, mas uma piedade algo diferente, pejada de lágrimas, beata.
Portanto, aqui em Pagani, sagrado e profano pareciam conviver lindamente. A Madona avança pelo meio da multidão entre aplausos e confeitos prateados lançados das varandas. Os confeitos brincam e reluzem com o trovoar do fogo de artifício caseiro lançado por alguns dos moradores dos bairros adjacentes. Aliás, neste último caso, isto é, dos moradores lançarem fogo-de-artifício, o andor parava e voltava-se respeitosamente para o benfeitor como que em reconhecimento pelo esforço piedoso. Já no fim da procissão, quando a Madona já completou um círculo perfeito em torno do núcleo principal da vila, a multidão dispersa-se em todas as direcções em busca de crepes quentes, limão cortado com gelo (engenhoso refresco, possivelmente com ascendência romana, que combina a extrema simplicidade com o sabor magnífico), sandes de carne assada e outras iguarias.
Outra nota em relação a Pagani que havia já sido aflorada na nota anterior. Se existe um local, no vetusto mediterrâneo, onde se pode observar o fulgor reminiscente da antiguidade pré-cristã, esse local é, sem dúvida alguma, Pagani. A festa é cristã, e embora não tenha lido absolutamente nada sobre a efeméride, posso dizê-lo, sem medo de errar, que a festa outrora pagã fora assimilada com o advento do cristianismo, mantendo ainda hoje muitas das suas características ancestrais. Diga-se que o próprio nome da localidade, Pagani, indicia que, possivelmente, esta fora um último reduto de antigos habitantes da península Itálica que se recusaram a abraçar a jovem religião do cristianismo quando esta começara a ganhar honras de cidade. Não posso afirmar categoricamente nada do que estou a insinuar até porque, como já disse, não li nada de erudito ou minimamente fiável sobre o assunto. Mas a verdade (e isto sim, sei-o de fonte segura) é que o cristianismo inicialmente, proibido do elenco de cultos romanos e perseguido pelos imperadores Nero e Adriano, foi posteriormente tolerado e até, finalmente, consagrado como religião oficial por Constantino. Sei também que este reconhecimento oficial do cristianismo fora seguido da concessão de privilégios aos cristãos, e da retirada de muitos mais aos velhos pagãos. Estes últimos resistentes da velha crença seriam, muito provavelmente, auto ou hetero-isolados numa espécie de guetos onde velhos rituais sobreviviam aos tempos.
É precisamente nesta linha de ideias que vi grupos de jovens e adultos envergando castanholas e pandeiretas. Embora me parecesse que o som que emitiam era um pouco anacrónico e sem sentido, notei porém, mais tarde, uma certa ordem nesse conjunto de sons, dúvidas estas que se dissiparam por completo quando constatei que existia uma dança.
Não é necessário um golpe muito engenhosos de imaginação para entrever nestas danças a antiguidade clássica, grupos de mulheres semi-nuas que tocam, não castanholas mas conchas unidas por atilho. A concha, símbolo da feminilidade e fertilidade, um possível atavismo matriarcal. Quem tiver oportunidade de visitar o Museu Arqueológico de Nápoles, e aí observar os frescos preservados de Pompeia, não terá qualquer dificuldade em ver em Pagani um quadro vivo de outros tempos.
Vi mesmo, com os meus olhos corruptos, uma pagã perdida, pandeireta na mão e castanholas noutra, saia comprida e cabelos selvagens, de cabeça baixa, talvez nunca recuperada do tiro fatal desferido pelo Deus Cristão.
domingo, 15 de novembro de 2009
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